SINAI

vashonhavurah.wordpress.com

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AQUI É TERRA SANTA

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O Monte de Moisés (www.portalsaofrancisco.com.br)

Terra Santa vista do céu

Terra Santa vista do céu

Melhor do que a definição de Deus, impossível: “Tira as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é terra santa”. Estamos ao pé do monte Horebe, no deserto do Sinai. Um silêncio profundo, poentes sangrentos, montanhas majestosas, o sol abrasador e as dunas de areia — ou o paraíso, um oásis: a água doce, fresca, e a sombra das palmeiras e tamargueiras. Camelos e cabras pastando.  Beduínos imóveis, contemplando. Uma Terra Santa, como dizia Deus a Moisés, há mais de 3.200 anos, revelando-se “numa chama de fogo do meio de uma sarça”.

O que se avista é o cenário do Êxodo. Ou a terra da lua, a terra dos gigantes, a casa de Deus — um triângulo de 61 mil quilômetros quadrados, com o mar Mediterrâneo em sua base, e o mar Vermelho e o Golfo de Suez banhando cada ponta, ligando África e Ásia.

O Sinai, 25ª província do Egito, foi devolvido por Israel, em 1979, em troca da paz. Por aqui andou Abraão. E José se tornou escravo. Foi onde o povo judeu passou 40 anos perdido em busca da Terra Prometida. E recebeu as tábuas da Lei. Por aqui também passaram Jesus Cristo e a Virgem Maria, caminhando para Palestina. E onde ainda hoje se refugiam eremitas, cruzam andarilhos peregrinando para Meca e Medina, iluminam-se os hippies, maravilham-se os ecólogos, e clic, clic: chegaram os turistas. Os nudistas estão proibidos pelas leis islâmicas.

Uma Terra Santa, sim, e para as três grandes religiões monoteístas. Antes de ser assassinado, o presidente egípcio Anwar El Sadat sonhava com a construção de uma mesquita-sinagoga-igreja ao pé do monte Horebe, o monte Sinai, ou Jebel Musa – a montanha de Moisés. Para os cristãos, aqui os anjos depositaram o corpo de Santa Catarina, a mártir decapitada em Alexandria. O mosteiro construído em sua homenagem e com seu nome, no ano de 530, pelo imperador Justiniano I, continua aberto aos visitantes. Logo á entrada, na porta conhecida por Bab El Rais, está escrito: aqui é a porta do eterno. É por ela que os justos entrarão”. Em outra porta, encontra-se Estevão, só ossos: ele morreu em 580 vigiando o ossuário de três mil monges. Seu esqueleto mantém ainda a mesma posição, e a função.

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O Mosteiro de Santa Catarina (en.wikipedia.org)

O mosteiro de Santa Catarina é protegido dos intrusos por uma alta muralha de granito cinzento. Lembra uma fortaleza. Era antes, no século IV, ao tempo de Constantino, apenas uma capela e uma torre de refúgio para os cristãos que escapavam das perseguições romanas. Depois de concluído, ganhou uma pequena mesquita. A cruz e a meia-lua têm a montanha de Moisés como fundo, com seus 2.285 metros acima do nível do mar. São o monumento mais importante do deserto do Sinai.

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Os monges do mosteiro de Santa Catarina não sabem com certeza qual foi o motivo que lhes rendeu os vizinhos, na mesquita, na época do califado Fatímida, que coincidiu com os primeiros anos do reino cruzado. Seria uma demonstração de irmandade entre muçulmanos e cristãos, hoje perdida no Líbano? Ou haveria alguma razão política justificando a aproximação? Intrigas do deserto: se consultados agora, os solitários monges recusariam o projeto de construção de um templo triplo como idealizado pelo presidente Sadat, em 1979. Das comemorações da paz eles só aprovaram mesmo aqueles aparelhos telefônicos que puderam compartilhar com os jornalistas, conectando a Terra Santa ao resto do mundo. Os habitantes deste deserto bíblico já viram passar por aqui as tropas hititas, assírias, persas, gregas, romanas, árabes, francesas, turcas, cruzadas, inglesas, egípcias, israelenses e varias outras nacionalidades que compõem o exército de paz das Nações Unidas.

Wadi el Tor (commons.wikimedia.org)

Wadi el Tor (commons.wikimedia.org)

Uma lenda localiza a sarça-ardente que não se consumia onde se encontra, exatamente, a igreja do mosteiro. E 1.500 metros acima, ou 3 mil tortuosos degraus, no topo do monte Sinai, o lugar em que Moisés falou com Deus, recebendo os Dez Mandamentos. Conta-se que, gago, quando perguntado para onde queria levar seu povo, respondeu: “Ca…ca…ca… E a voz divina completou:

— Canaã!

(Moisés queria dizer Ca…ca…ca…li…fór…nia, mas não conseguiu. Uma dissidência afirma que, na verdade, seria Canadá.)

Os muçulmanos sempre foram mais interessados na história e em seu significado ético do que na geografia histórica. E é por isso que não identificariam a montanha de Moisés, a sua Jebel Musa, com nenhum ponto particular no mapa. Mas isto não quer dizer que não a reverenciem profundamente, esteja onde estiver.

A biblioteca do mosteiro, uma das mais antigas e ricas do mundo, contém uma carta do profeta Maomé aos monges, confirmando a forte influência da história de Moisés sobre o islamismo. E para protege-la de um provável ataque dos bandos de beduínos, junto com o verdadeiro tesouro representado por 1.500 pinturas e 2 mil ícones, os imperadores bizantinos foram buscar os guardas ideais na Bósnia. Tornaram-se muçulmanos, e uma nova tribo no deserto do Sinai, conhecida como Al-Jibaliá, ou os montanheses.

“Sobe a mim na montanha, e lá espera” ordenou Deus a Moisés. Nos últimos 150 anos, 12 diferentes montanhas foram cotadas como o local certo do encontro: cinco no sul do deserto do Sinai, quatro ao norte, uma no centro e duas do outro lado da península triangular, na Arábia Saudita e na Jordânia.

No topo do Monte Sinai (www.gopixpic.com)

No topo do Monte Sinai (www.gopixpic.com)

Um geografo alemão, Burckhardt, foi um dos primeiros a seguir os rastros de Moisés e o povo de Israel, montado num camelo. E acabou apontando, em 1819, uma montanha ao lado de Jebel Musa e de seu mosteiro como o mais provável, por causa de algumas inscrições, “Jebel Sarbal”. Quase 50 anos depois, em 1870, Henry Spencer, chefiando uma grande expedição, pesquisou a região com geólogos, zoólogos e botânicos. E escolheu o pico oeste do Monte Sinai: Jebel Tzuftzufa, no vale de Er-Raha. De 1920 a 30, o governador inglês do Sinai, C.S. jarvis, defendeu a teoria de que Moisés teria viajado para a Terra Prometida seguindo o Mediterrâneo. Ele ficou fascinado por Jebel Hillal, perto do oásis de Cades Barnéia, alcançado dois anos depois da fuga da escravidão no Egito. A travessia do Mar Vermelho, assim, ficaria localizada na lagoa de Bardawil, perto de El Arish, cidade de exilio para criminosos.

A mais recente teoria sobre a rota do êxodo e a localização de Jebel Musa, ou Montanha de Moisés, pertence a um geógrafo israelense, Menashe Harel. Ele não acredita que os israelitas tenham tomado o “Caminho dos Filisteus”, pelo nordeste, por um simples motivo: encontrariam o exército egípcio facilmente. Assim, passaram por Ismailya, dando a volta pelo golfo de Suez e descendo por Wadi Sudar para chegar a Refidim. Aqui, Moisés, com seus 80 anos, poderia subir o Jebel Sin-Bishr, de apenas 618 metros acima do nível do mar, e receber de Deus as tabuas da lei, com os Dez Mandamentos.

Os turistas, como o próprio presidente Anwar El Sadat e os monges do mosteiro de Santa Catarina, visitam Jebel Musa, a Montanha de Moisés, o monte Sinai, como sendo o local certo do encontro sagrado. Sobe-se de madrugada ainda, para alcançar o topo durante o alvorecer, quando o calor não é insuportável. Um espetáculo grandioso, anunciado por agências de turismo como “a visão de uma paisagem lunar”. Vai-se a passos curtos, em fila de um, com guias beduínos que carregam galões com água. No alto, no “portão do céu”, encontra-se uma capela e uma casa de uma só peça, geralmente fechadas. Dependendo da época do ano pode ser vista ali uma senhora que se apresentava como “a monja do Sinai”, até 1984. A quem chegava, ela oferecia uma bala. Vestia-se toda de branco, dizia que escutava Deus e tinha um discípulo, um Iugoslavo encarregado de “limpar a montanha”. Andavam descalços: pisavam a Terra Santa.   

(www.walkopedia.net )

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Líbano dos mártires

Praça dos Mártires, 1982.

Praça dos Mártires (redzijs.wordpress.com)

Duas mulheres de mãos dadas (foto), uma com véu, muçulmana, e a outra cristã, simbolizavam a unidade do Líbano, na Praça dos Mártires, desde 1930. Entre elas, uma urna com as cinzas de 21 enforcados, o marco do longo martírio libanês. Em setembro de 1948, as duas mulheres foram atacadas a machadadas. Depois, sumiram. Só reapareceram, de repente, em 2001, no Museu Sursoq, em Beirute.

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A mulher de bronze perfurada de balas abraça um jovem de braço amputado. A outra mão levanta uma tocha, como a estátua da Liberdade. Os dois refletem o sol laranja mergulhando no Mediterrâneo. Estão à beira de um precipício em que um homem, entre mortos, clama por vida. Homenageiam 21 libaneses cristãos e muçulmanos enforcados em 1916, na Praça dos Mártires, em Beirute.

Mas o martírio libanês é feito de muito mais cadáveres. Em 15 anos e 6 meses, até 1990, foram mortos 152 mil maronitas, sunitas, greco-ortodoxos, drusos e xiitas, em batalhas que ainda tiveram a participação extra de palestinos, israelenses e sírios.

Estátuas feridas, o braço da união mutilado, elas são agora uma monumental lição aos libaneses que estão tentando reconstruir o país e a identidade nacional esfacelados: ninguém venceu a guerra.

 Este monumento à união do Líbano, uma vez já sequestrado e escondido, vai sobreviver metralhado e aleijado na nova Praça dos Mártires. Mas em volta, no coração de Beirute, outras ruínas, esqueletos de prédios e ruas serão definitivamente arrasados por tratores numa nova batalha – agora, pela paz.

O projeto prevê uma avenida dez metros mais larga do que a Champs-Elysée, em Paris. Diante do mar se erguerão duas torres de 40 andares inspiradas nas do World Trade Center de Nova York (que ainda existiam). Uma ilha de lixo que emergiu no Mediterrâneo ganhará uma Ponte Vecchio, como em Florença, e se transformará num jardim de 60 mil metros quadrados. A reforma do governo libanês pretende apagar os vestígios da guerra; não restaurar os fragmentos que restaram. “Vamos ressuscitar a Suíça do Oriente Médio”, disse-me o ministro da Habitação, Mahmoud Abou Hamdane. Um provérbio popular o ampara: “Jogue um libanês ao mar, e ele voltará com dois peixes na boca”.

  Os turistas já fazem pose ao pé do casal de bronze na Praça dos Mártires devastada. Estão reaparecendo aos poucos em Beirute tranquilizados por três anos de silêncio dos canhões. O último obus foi disparado em 13 de outubro de 1990, agora também o aniversário do primeiro acordo entre a OLP e Israel. É o turismo de uma tragédia ainda cheirando a pólvora. A guia explica em alemão: “Aqui era a Embaixada dos Estados Unidos, destruída por um suicida com um carro-bomba em 1983”. As câmeras miram a carcaça do prédio em que 67 pessoas morreram. Cozinhas e quartos improvisados pelos novos “diplomatas”, os sem teto da guerra, estão expostos como se abertos a serrote. Crianças brincam entre os escombros já verdejantes de musgo e mato. E em frente, a praia do Mediterrâneo verde-azulado. Voam aviões, e não são mais caças F-16 despejando bombas. “Aqui morreram 300 americanos e franceses das Forças Multinacionais de Paz”, continua a guia. Mais ao sul estão os campos de Sabra e Shatila, onde dois mil palestinos foram massacrados por milícias falangistas em 1982, enquanto cercados por tropas israelenses. Mas neles turistas ainda não entram.

  O termômetro do otimismo durante a guerra era o movimento dos vidraceiros. Se vendiam vidros para janelas, projetavam a esperança de que acabariam os booms supersônicos que estilhaçavam as vidraças. Agora são os cartões de crédito. “Que país os aceitaria à beira de uma guerra?” – desafia Rachid Fayed, diretor da Sociedade Libanesa para o Desenvolvimento e Reconstrução do Centro de Beirute (Solidere). E ele acrescenta com muita certeza: “O mundo está confiando no futuro do Líbano”. Mas é bom ser precavido, como a própria Middle East Airlines (MEA). Sua passagem mostra, com desenhos didáticos, o que os passageiros não devem levar na bagagem: revólveres, espingardas, gases comprimidos ou venenosos, ácidos corrosivos, munição e até material radioativo. Nada mais natural no Líbano. Afinal, numa conferência de paz em Genebra, na Suíça, os delegados libaneses chegaram fortemente armados, e foram barrados nos detectores de metal.

1982: Israel cerca Beirute.

1982: Israel cerca Beirute.

“Crazy beoble”, explica um curioso armênio que faz ponto toda noite no saguão do hotel Cavalier, o substituto para a imprensa do memorável hotel Commodore, destruído no final da guerra. “O povo aqui é louco”, ele comenta para justificar um conselho pessoal: “Se fosse você diria que me chamo Pedro, não Moisés. Pedro é melhor”. No aeroporto de Beirute o guarda da imigração, depois de ler no passaporte, e certificar-se perguntando-me o nome, preferiu não acreditar: “OK, Maurice. Pode passar”. O armênio me propôs logo no primeiro contato: “Você me vende um passaporte brasileiro por US$ 5 mil, e ainda lhe dou outros US$ 5 mil”. Depois, inflacionou o pedido com mais outros cinco passaportes. “Quero dos bons”, avisou, “porque falsos compro ali na esquina por US$200”. Era talvez um agente sírio suspeitando de uma identidade falsa, como concluiu um funcionário da Embaixada do Brasil, veterano no Líbano. Beirute é uma cidade em que todos ainda são suspeitos. Quando o porteiro xiita viu o aperto de mãos com um druso, aconselhou: “Agora, conte os dedos”.

  Olha-se a destruição em volta, e concorda-se: “crazy beople”. Em “A Morte de uma Nação”, a cientista política americana Sandra Mackey lembra uma estatística de um amigo libanês: “50 por cento dos libaneses consideram-se líderes naturais, 25 por cento acham que são profetas, e 10 por cento imaginam-se deuses”. O presidente da Assembleia Nacional, Nabih Berri, explicou uma vez: “Se você nos toma como indivíduos, somos muito civilizados. Mas se você nos toma como um grupo, vai pensar que está de volta à Idade Média”. 

  Cada um dos dois predominantes grupos no Líbano, muçulmanos e cristãos, subdivididos em 16 seitas oficialmente reconhecidas, tentou aniquilar o outro, numa violenta e autodestrutiva competição pela identidade nacional desde a independência da França, em dezembro de 1943. Deveriam viver em harmonia com um presidente cristão maronita, um primeiro-ministro muçulmano sunita, e um xiita como presidente de um Parlamento de maioria cristã, com a proporão de 6 por 5 entre 128 deputados. Era o Pacto Nacional. Mas o balanço de forças sofreu uma reviravolta quando os muçulmanos e drusos tornaram-se 2/3 da população, e os cristãos encolheram para 1/3, em 1970. Os xiitas passaram a ser a maior comunidade do país. Os muçulmanos exigiram reformas. E os cristãos resistiram. Cada grupo se armou e criou sua própria milícia. Num Líbano em pé de guerra palestinos e israelenses começaram a travar um combate extra, pela Palestina.

  A guerra civil libanesa começou em 13 de abril de 1975. O estopim foram os disparos saídos de um carro em alta velocidade contra uma igreja no bairro de Ain Rummane. Com quatro mortos, os cristãos decidiram ir à forra. Horas depois, emboscaram e mataram 27 palestinos dentro de um ônibus. A escolha nada teve de casual. A liderança cristã via a Organização de Libertação da Palestina (OLP), já a maior milícia em Beirute, aliada dos muçulmanos, como a principal ameaça à soberania libanesa. Morteiros e foguetes riscaram o céu numa imediata reação da OLP. Canhões miraram das colinas os campos palestinos. Levantaram-se barricadas nas ruas. Grupos que compunham o exército debandaram para aderir às milícias comunitárias. Bairro contra bairro, duelos pelas janelas dos prédios, sequestros, carros-bombas, kamikazes, franco atiradores, e o Líbano mergulhou em fogo e cinzas. Os sírios tentaram garantir a paz com a força de suas tropas, em 1976, e continuam ainda hoje acampados por todo o país. Israel invadiu o sul libanês atrás da OLP em 1978, cercou Beirute em 1982, quando expulsou o líder Yasser Arafat para Tunis, e retirou-se em 1984, sem criar uma “nova ordem” que ampliaria a paz isolada com o Egito. E continua retendo uma “faixa de segurança” dentro do Líbano, ao longo de sua fronteira.

  “Beije a mão que você não pode morder, e peça a Deus para quebrá-la”, diz outro provérbio libanês. Nenhum dos grupos no conflito do Líbano acabou impondo a sua vontade. O Pacto de Reconciliação Nacional de 1989, assinado em Taif, na Arábia Saudita, manteve um cristão na Presidência e um sunita como primeiro-ministro, estabeleceu a igualdade parlamentar e legitimou a presença militar síria. Mas os combates ainda prosseguiram por mais um ano até a derrota do general cristão Michel Aoun, que desde 1988 travava uma “guerra de liberação” contra a Síria. O diretor da Solidere, Rachid Fayed, gosta de explicar que “os libaneses prolongaram a guerra, ao se adaptarem a ela tão bem no dia-a-dia”. Os fios nas ruas são um impressionante exemplo. Brotam dos postes e se reproduzem como trepadeiras. Formam pencas, se entrelaçam e cruzam Beirute pelo ar. Alguns vendem energia de geradores particulares. São as mini-centrais elétricas particulares. Outros ligam bairros com horários de racionamento opostos. Assim ninguém fica sem luz. O bairro a ser apagado de 4 às 8 horas é iluminado pelo que apagará de 8 às 12 horas, e vice-versa. Ainda há fios de roubo de energia e os de telefone, muitos sem uso.

Carros luxuosos se misturam aos atingidos pela guerra no trânsito caótico de Beirute. Não existe um único farol. Houve um tempo em que se disparava ao alto para atravessar um cruzamento. Não mais. A cidade ganhou guardas de trânsito chiquérrimos, todos com luvas brancas. Levantam a mão, e ela se destaca das ruínas sempre ao fundo, por toda a parte. Talvez por isso a usem: para que os motoristas a vejam. Mas os próprios guardas não sabem ao certo. “Deve ser por elegância”, arriscou um diplomata. Alguns pontos da “linha verde” que antes dividia a cidade ainda estão guardados por tanques estacionados sobre calçadas. Nos bloqueios militares, soldados carregam lançadores de granadas às costas. Posters com os rostos de aiatolá Khomeini, do presidente iraniano Ali Akbar Rafsanjani e do íman Mussa Sadr, líder libanês do Amal (Esperança) que sumiu enquanto viajava para a Itália, em 1978, enfeitam os bairros dominados pelo Hezbollah, o Partido de Deus. As guaritas sírias ostentam a foto de um sorridente presidente Hafez Assad. Para completar, bandeiras pretas tremulam sobre os escombros dos campos de Sabra e Shatila em sinal de luto pelo aperto de mãos entre o “presidente” Yasser Arafat e o primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin. A impressão é a de que uma nova guerra está por explodir. Mas os libaneses vão vivendo e repetindo: “Al hamdallah”, graças a Deus. Os restaurantes de Jouniê lotam todas as noites, as mesas fartas com os variados pratos do mezzeh, e o cheiro adocicado do Arak e do narguilé.

  Deitado numa cadeira da piscina do outrora luxuoso hotel Saint-Georges, hoje um esqueleto vazio, o torrefador de café Maher Haddad queima-se ao sol como uma de suas sementes, enquanto admira as ruínas de Beirute. Bem em frente estão dois outros hotéis destruídos: o charmoso Phoenicia e o americano Holiday In. Linda paisagem, não? “Esta é a imagem de mais de 15 anos de guerra”, ele diz. “Esperamos que tudo seja agora mudado. Se você vive sem esperança, não pode ser feliz”. O futuro de paz no Oriente Médio o perturba só num outro front, o comercial. “Se não corrermos, perderemos o mercado árabe para Israel”. Esta será uma guerra difícil para os israelenses. 

  Os libaneses são imbatíveis nos negócios. Eles têm uma tradição que começa com os fenícios, em 2.800 AC. Então, o principal produto no Líbano era o cedro, hoje o símbolo nacional. Dele extraíam uma tinta púrpura, que simbolizava riqueza e dignidade social, e um óleo e uma resina para a conservação dos mortos. Os faraós do Egito enviavam compradores a Byblos e Tyre. Cada egípcio morto dava um lucro certo. Vocação precoce… Quando o professor perguntou quanto é um mais um, o aluno libanês respondeu: “Você está comprando ou está vendendo?” Sim, os libaneses vendem tudo, e com lucro. Mesmo em guerra, aumentaram de 342.584 para 1.041.216 o número de carros no país. Instalaram mais 200 mil linhas telefônicas, embora só a metade esteja funcionando. (Um minuto de ligação para o Brasil custa US$6, por uma linha especial que não é libanesa, nem cipriota, mas – surpresa! – norte-americana.) A renda média individual caiu de US$1.869, em 1974, para US$1.112, em 1990, e já registrou um crescimento de 15 por cento em 1992. O setor elétrico deu um salto de 260 por cento em 19 anos. O ministro das Finanças, Fouad Siniora, está conseguindo a proeza de reduzir em 8% o déficit público ao mesmo tempo em que aumenta em US$250 milhões o orçamento para 1994. A inflação chegou a 117% contada desde o começo do ano passado pela Confederação Geral dos Trabalhadores do Líbano. E isso num país que teve um estrago de US$ 25 bilhões só em sua infraestrutura de água, esgoto, gás, eletricidade, telefone, ruas e jardins públicos. O dólar, que valeu até 3 mil libras libanesas na guerra, estabilizou agora em 1.700

  Tostando ao sol, Maher Haddad se ufana: “Somos suíços”. Os libaneses estão mais para “a delicadeza do relógio do que para a máquina da guerra”. E ele repete, quase ofendido: “Nunca fomos guerreiros”. Que o desmintam os 67 quilômetros quadrados de destruição ao pé do Monte Líbano, entre os rios do Cão e Damour, os limites da Grande Beirute. As barricadas de areia ainda diante de muitas casas. O casal de bronze furado de balas. E que o confirmem a competição de iates dando a largada na baía de Saint George, os carros luxuosos estacionados diante do Iacht Club, a badalação noturna e o boom da construção. “Temos mais segurança aqui, hoje, do que na Europa”, garante uma funcionária na nova loja da Middle East Airlines, no centro da cidade. Ela só não entende porque os aviões libaneses não podem ainda decolar para os Estados Unidos. E nem porque um visto norte-americano deve ser pedido em Damasco, a hora e meia de carro de Beirute. O presidente Bill Clinton está esperando do Líbano uma prova a mais de confiança: a paz com Israel. A livraria Internationale se beneficia com o terceiro ano de cessar-fogo. Cada dia surge um novo livro explicando o que aconteceu ao país das mil e uma versões.

  O rio Adônis desce vermelho o Monte Líbano, sagrado para fenícios e romanos. Foi nele que Adônis teria morrido nos braços de Vênus. A cor talvez seja a do minério de ferro lavado pela neve derretida. Por 15 anos e meio muitos libaneses fantasiavam que a verdadeira nascente era o Líbano sangrando. Mas os poetas também podem estar certos: o sangue deve ser mesmo o de Adônis, ferido por um javali.

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OS BATRÍCIOS

VALE DE BEKAA – Bem-vindo ao Brasil do Oriente Médio. Aqui vivem nossos “batrícios”. Eles são a maioria em várias aldeias incrustadas entre o Monte Líbano e as montanhas Antilíbano, perto da Síria e Israel. Falam “bortuguês”, tomam guaraná, plantam feijão roxinho, improvisam feijoadas com carne de carneiro, torcem apaixonadamente pela Seleção, às vezes captam novelas repassadas por um canal de televisão da Turquia, e importam abacaxis e manga.

  — Ministro, o Líbano está confiando na paz?

  Hamdane – Com o acordo de reconciliação nacional passamos a planejar seriamente a reconstrução. Agora, no governo do primeiro-ministro Rafic Hariri, entraremos na fase de execução. Não digo que estejamos verdadeiramente cem por cento confiantes na paz. Mas os partidos e religiões se uniram no Líbano. É esta união, o reencontro de todos os libaneses, que vai permitir a reconstrução, já partir do ano que vem. Estamos todos trabalhando juntos. Recomeçamos unidos.

  — O Líbano pode pagar a reconstrução?

  Hamdane – Trabalhamos com empréstimos do Banco Mundial, do Banco Islâmico e de vários países árabes. Já temos contratos assinados que ultrapassam US$1 bilhão. Os italianos também prometeram ajudar. Não estamos mais em dívida no Líbano. Retificamos o orçamento para 1994  (cerca de US$2,5 bilhões, ou US$200 milhões a mais que o de 1993).

  — Os jornais de hoje estão publicando que os Estados Unidos condicionaram o envio de ajuda ao Líbano à paz geral no Oriente Médio. Verdade? O Líbano deverá esperar a paz entre Síria e Israel?

  Hamdane – Os Estados Unidos procuram criar um status no mundo árabe, do qual fazemos parte. Em todo o caso, o governo americano não dará dinheiro de graça aos libaneses. Emprestarão. E pedirão que os amigos árabes ajudem o Líbano. Isto com certeza vai acontecer, mas aos poucos. O Líbano e a Síria estão fora da paz com Israel. Esperamos que este e outros problemas logo se resolvam. Aqui no Ministério não trabalhamos com política.

  — Noto um certo otimismo. Engano?

  (A tradutora, antecipando-se: “Sim, o ministro é otimista”.)

  Hamdane – Com a situação econômica do Líbano sou mais ou menos otimista. Mas com a região, incluindo o Líbano, não é ainda seguro dizer que tenhamos alcançado verdadeiramente a paz.

  — Quinze anos para destruir, quantos para reconstruir?

  Hamdane – Dentro de três anos viveremos sob condições razoáveis. Depois, seremos de novo como a Suíça. Esperamos que as condições o permitam. É preciso levar em conta também o papel do Líbano no desenvolvimento do Oriente Médio. Veremos o que lhe caberá. De qualquer modo, em três anos, se trabalharmos seriamente, teremos condições de vida muito aceitáveis.

  — Os libaneses do Brasil podem ajudar?

  Hamdane – A partir de amanhã, se quiserem.

  — Pode-se dizer aos libaneses no Brasil que o Líbano voltou a ser um país seguro, e que eles podem vir visitá-lo sem medo?

  Hamdane – Diga-lhes: não há nenhum problema.

Eu vi Cícero Dias

O painel Eu Vi o Mundo... (foto divulgação)

O painel Eu Vi o Mundo… (foto divulgação)

A obra mais celebrada do pintor pernambucano Cícero Dias pode ter seu título, enfim, completado:

Eu Vi O Mundo… Ele Começava No Recife… e Acabou em Paris 

Acabou em Paris, no apartamento-ateliê da Rue du Longchamp, 123, com vista para os telhados do Trocadéro, aos 95 anos de uma vida para a arte compartilhada com a nata dos artistas, escritores e compositores europeus e brasileiros do século 20.

O mundo acabou de morte natural, sem doença, ao lado da mulher, filha e dois netos, e interrompeu as memórias  Eu Vi O Mundo, até então só pincelado em cores vivas, mas agora brotando em palavras e fotos para um livro depois completado e lançado pela editora Cosac Naify.

Nós Vimos O Mundo, capítulo final de Eu Vi O Mundo, acrescenta o olhar da mulher francesa de Monsieur Dias, Raymonde, que ele conheceu em abril de 1941, na Paris ocupada por tropas nazistas. O Nós no título deve incluir o editor Augusto Massi, que finalizou as memórias inacabadas em uma operação tão bem executada que ficou imperceptível, os vazios costurados com pesquisa e sensibilidade.

Eu Vi Monsieur Dias com 92 anos, bem agasalhado com cachecol, paletó de lã e cobertor nas pernas em seu apartamento inundado de sol da primavera. “Fui a vida toda um friorento”, lembrou em suas memórias. Uma noite, ele encheu a lareira com tanta lenha que a concierge do prédio telefonou para avisar: “Há um incêndio em sua chaminé”. Os bombeiros que vieram apagar o fogo ficaram para jantar. Apesar do frio em dia morno, encontrei-o bem humorado, memória afiada, encantado com a internet, atualizado sobre o Brasil e o mundo — e ainda um bom copo: “Que vamos tomar?”, perguntou sorvendo uma pequena dose de uísque, a garrafa ao alcance da mão, como a inseparável bengala. As paredes do corredor de entrada até a sala onde passava parte do dia sentado o expunham em sua fase abstrata, geométrica, colorida de Pernambuco — o “colorido insolente” detectado pela amiga Rachel de Queiroz.

Cicero Dias-Picasso-Sylvia-a-Vallauris-1952-

Cicero Dias-Picasso-Sylvia-a-Vallauris-1952-

O amigo Pablo Picasso deixou para C.D., só assim identificado na campainha à entrada do prédio, uma obra invisível, porém onipresente: o próprio apartamento, trés chic. Não fosse aquela natureza-morta… Quando a ganhou, Cícero chegou a reclamar, e por pouco, merci beaucoup, não a devolveu:

— Quero quadro para ver todo o tempo, e não para guardar dentro de um cofre.

Pendurar um Picasso já era um enorme risco, atraía assaltantes. Mas o presente fora dado com uma intenção explícita: “Venda, e compre um lugar para você viver”. Assim se fez: a natureza-morta pagou a entrada da natureza viva dos Dias. Quem procurar ainda achará no apartamento preciosos picassinhos, se é que algo que Ele tenha feito permita um diminutivo. São desenhos em pedras, ossos, madeira, caixa de fósforos e rolha de champanhe como os que fazia, apaixonado, brincando, para a musa e amante Dora Maar, fotógrafa surrealista pintada Adormecida, Na Praia, Chorando, De Unhas Verdes, com O Minotauro e de Perfil Sentada. Estão bem ali no corredor, dentro da maquete de três andares de um museu “ideal”, único vestígio da carreira de arquitetura de Cícero abandonada em 1928, no Rio. E atenção: acompanham-nas outras miniaturas feitas especialmente por Vasarelly, Calder e Léger.

Eu Vi Cícero Dias… o “Cicinho dos canaviais de Jundiá”, no litoral de Pernambuco. Ele me contou que atendeu o telefone para Picasso por 12 anos. Sorri malicioso, e explica: “O homem tinha três, quatro mulheres, e estava sempre metido em tremendas brigas com pelo menos duas delas”. Com zelo desempenhava o papel de protetor da intimidade do amigo. Blindava-o ao sabor das paixões do momento, que variavam como o vento. A amizade rendeu um bônus para o Brasil: a viagem pioneira do célebre painel expressionista Guernica para a Segunda Bienal de São Paulo. “Consegui convencê-lo durante um almoço, mas confesso: saí com indigestão”. Uma revelação lhe vem à lembrança. Mas ele pede: “O que vou contar agora fica por sua conta, e se alguém vier me pedir para confirmar, desmentirei”. Falava sério: em Eu Vi O Mundo, o livronem toca no assunto, resumido apenas a um diálogo entre soldados da Gestapo e Picasso.

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— Quem fez isso? — perguntou um SS apontando para Guernica, o retrato da destruição da aldeia basca de Guernica pela aviação alemã, em 1937, durante a guerra civil espanhola, a pedido do general Francisco Franco.

— Ué, não foram vocês? — respondeu Picasso.

Eu Vi O Mundo… Ele Começava No Recife, o afresco, de 15 metros de largura por 2,5 metros de altura, foi pintado entre 1926 a 29. Ficou pronto quando Cícero fez 21 anos, e foi sua obra-prima. Nas memórias ele resgata  o clima, a ansiedade e a excitação que vivenciava enquanto a produzia: “Toda hora andava pra baixo e pra cima, de Santa Teresa para o bar Nacional. Tudo se mexia na cabeça. Imagens do começo da minha vida. Tantas coisas: mulheres, histórias fantásticas, escada de Jacó, as onze mil virgens. Levaria todas essas imagens para dentro de um grande afresco? Executar um afresco era uma realização material impossível. Impraticável. Pensei então em executar uma grande tela. Decidi colocar tudo num painel, onde o imaginário se espalhasse para todos os lados. O mais representativo seria a realidade onírica. Eu pintaria a própria vida numa superfície de mais de 50 metros. Tudo teria grandes proporções. Corri todo o Rio de Janeiro à procura do material. Mas, por volta dos anos 20, não se encontrava nada disponível na praça: tela, papel, tintas, pincéis. Tudo era difícil.Passei no Teatro Municipal, onde havia aqueles panos de boca, mas fiquei desiludido. Nas casas de tintas da rua São José também não encontrei a solução. Enfim, indicaram-me um depósito de papéis, perto da Central do Brasil, passagem obrigatória de todo mundo devido ao célebre mangue. No depósito achei papéis, confetes, serpentinas, artigos de carnaval, lança-perfume. Encontrei-me diante do proprietário. Largos bigodes, de tamancos, grande lenço de rapé: — O que quer o rapaz? — perguntou. Avistei-me com uma valentona bobina de papel com dois metros de altura. Gritou o bigodudo: — Papel de primeira, papel kraft, venda em grosso para as indústrias. Tudo resolvido. Uma feliz solução. Faltava resolver somente as tintas e a cola, que terminou por ser de peixe. Mãos à obra. Um porre a mais no bar do Palace Hotel.”

Ao fim de cada dia de trabalho, Cícero se sentia um náufrago, encharcado de suor. Pelo painel, começaram a desfilar procissões, danças, sonhos, delírios, Recife, o nordeste brasileiro, fantasias, carros-de-boi, engenhos, bichos, senzalas, até um autorretrato, e tudo sob a luz amarela da caatinga e do canavial. Atribuíram-lhe certa influência  de Marc Chagall, então desconhecido no Brasil. Surrealista, rotularam-no. “Surnudista”, inventou o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre. Um “fenômeno inexplicável a desafiar a geografia, a cronologia e a genealogia”, descreveu o jornal francês Le Monde. “Maluco!”, elogiou Mário de Andrade, no Diário Nacional. Em carta a Tarsila do Amaral, ele acrescentaria depois, em 1931: Cícero Dias está fazendo com que “rachassem as paredes da Escola Nacional de Belas Artes”. E, no entanto, a primeira exposição aconteceu num hospício, a Policlínica, na Praia Vermelha, porque nenhuma galeria do Rio se interessava por arte moderna, ou tinha espaço para acomodar obra tão gigantesca, decantada como a maior da América Latina. Literalmente, coisa de louco.

Quando Cícero foi ao hospício pedir espaço para Eu Vi O Mundo, armado com os poderosos amigos Graça Aranha, Di Cavalcanti, Murilo Mendes e Ismael Nery, um dos loucos os saudou, gritando: “Os senhores estão em casa”. Lar doce lar que projetou o painel em sua órbita de sucesso e onde foi apreciado, ou analisado, nos primeiros dias, por psicanalistas internacionais, alguns diretamente ligados a Freud e Jung, reunidos na Policlínica, para um congresso. Havia ali material de sobra para seu autor deitar-se num divã por muitos anos. A exposição seguiu depois para o Recife e Escada, a cidade natal, num mergulho na infância que “iluminou-me o espírito”. Foi difícil obter a bênção do vigário Pedrosa para aquela obra do diabo, “uma afronta a Deus”. Nada, porém, que a imponente presença de Gilberto Freyre não pudesse superar. E ao som de viola, cheiro de folhas de canela espalhadas no chão e foguetes espocando no céu, o povo humilde do sertão viu o mundo que um dos seus via — mundo que mais tarde foi castrado por vândalos em três metros, do lado esquerdo, para livrá-lo das exuberantes e pecaminosas mulheres nuas, com seus sexos realçados. Justificando-se, ele diria: “Não cultivo a penumbra, mas a resplandecência. Nada é obscuro na minha obra”.

Eu Vi O Mundo… Ele Começava (e terminava) No Recife. Não ia além do Brasil.  Mas em 1937, Cícero estendeu suas fronteiras e seu horizonte, embarcando para Paris. “O  Groix não era um navio como o Andes ou o Alcântara, mas uma expressão francesa em alto-mar. A começar pelo paladar, pela liberdade, um à vontade que não se encontrava em outros vapores. A bordo, logo procurei o comandante. Fui indiscreto apenas para me informar que a rota ou derrota do navio não passaria pelas costas nordestinas (…) Rumávamos pelo Atlântico, fugindo à ditadura de Vargas. Peixes voadores ao lado do vapor. Baleias soprando seus esguichos. Ilhas perdidas. Íamos a caminho de Dacar.” E da Europa sob o nazismo.

Eu Vi Cícero Dias… E ele era um Louvre de artistas amigos, uma biblioteca de escritores com os quais se dava. Pensemos em alguém improvável: Albert Einstein? Sim, estivera com ele, que se vestia de vaqueiro, no bar do Glória, no Rio. Guimarães Rosa? Ficaram presos juntos em Baden-Baden, na Alemanha, em 1941. Villa-Lobos? Ah, ele saía de noite para jogar bilhar; depois fazia a via sacra pelos bares. “Quando o víamos com seu chapelão e um taco na mão, como se fosse a sua bengala, aplaudíamos”. James Joyce? “Conheci-o em circunstâncias dramáticas em Vichy”. Pintou pratos com Braque, Cocteau, Dupont, Françoise Gillot, Lebowitz, Leonor Fini, Man Ray, Miró e Vasarely. Picasso foi companheiro de todos os dias e padrinho de sua filha, Sylvia. Numa foto dos três juntos, escreveu: “A mi filhinha y com um beso”. Marc Chagall? Era sempre convocado para opinar se Guernica deveria ser colorido ou mantido em preto e branco. “Deixa como tu fizeste. Deixa, não toca, deixa como está”. Eu Vi O Mundo é repleto de nomes, links para outras histórias e dimensões: Manuel Bandeira, Mário e Oswald de Andrade, Di, Tarsila, Malfati, Oscar Wilde, Le Corbusier, Lúcio Costa, Klee, Modigliani, Gertrude Stein… e mais, muito mais…

Eu Vi Cícero Dias… E ele protagonizou uma obra histórica que lhe valeu a medalha azulada estelar da Ordem Nacional do Mérito da França, recebida das mãos do então primeiro-ministro Edouard Balladur, em 1998, na Unesco. A obra foi uma chuva de papel com o poema Liberté, de Paul Éluard, disparada por aviões ingleses sobre a Europa ocupada por tropas nazistas, em 1943. “Se os alemães me pegassem, pá!, me matavam” —  então ele sorve mais um gole de uísque, empolgado com as lembranças que ainda o deixam orgulhoso. Para começar sua “missão”, ele cortou a primeira e a última palavra-chave escrita na muamba, Liberté. Era um perigo de morte, liberdade. Depois, a salvo, as reescreveria.

O poema ficou guardado dentro de uma mala na prateleira de bagagens vazia de um vagão de trem com refugiados espanhóis e portugueses. Dias sentou-se distante. Se a revistassem, não saberiam a quem pertenceria. Veio a Gestapo. Um soldado lhe pediu o passaporte. Gritou para outro, na frente: “Brasília!” Mas o devolveu. E não revistaram o maleiro. Já na Espanha, um susto: “A polícia quis saber como eu, brasileiro, tinha cruzado a fronteira”. Não havia o que discutir, só lembrar que “o Brasil não está em guerra com a Espanha”. E assim ele chegou à Lisboa, de onde a embaixada britânica despachou o poema direto para o poeta surrealista Roland Penrose, piloto da Royal Air Force, a RAF. Alguns dias depois, caía poesia das nuvens em todo o front europeu.

Eu Vi O Mundo… Ele Começava No Recife e jaz, desde 2003, no cemitério de Montparnasse, em Paris.

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Noivos em Recife

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Com a mulher, Raymonda, durante a ocupação alemã.

Cícero Dias

No ateliê, em Paris

BEM-VINDA, CORRUPÇÃO!

Aceitamos corruptos e corruptores de portas abertas no Museu da Corrupção (MuCo). Mas estamos com um sério problema: a atual supersafra do Petrolão é muito maior do que podemos absorver.

O MuCo nasceu da constatação de que a corrupção que faz a manchete dos jornais de hoje relega a do dia anterior ao esquecimento. Vamos adiante, desmemoriados. Mas expor passado e presente escandalosos pode corrigir o futuro. É ferramenta para pesquisadores. Intimida corruptores.

O MuCo nasceu em 21 de abril de 2009, mais para coincidir com o dia seguinte, o do Descobrimento do Brasil, do que com o Dia de Tiradentes. A repórter Kássia Caldeira já pesquisava havia seis meses os processos e investigações da Polícia Federal, os arquivos de CPIs, da Justiça e dos jornais, e aprofundava mais em nosso passado imprevisível. Assim montamos o primeiro acervo.

O arquiteto Rodrigo Moreira

O arquiteto Rodrigo Moreira

Um historiador deu o mote para precipitar a estreia do MuCo: “A corrupção começou com as primeiras caravelas”. Portugal desterrava seus trambiqueiros em Pindorama. O editor de web Luiz Octávio formatou o conteúdo dentro do espaço projetado pelo arquiteto Rodrigo Araújo Moreira. A curadoria foi assumida por Regiane Bochichi, ex-AOL.

Em dois meses, o MuCo alcançou 1.839.765 page views. Em seis meses, ganhou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa. Foi convidado a se exibir numa reunião da ONU, para o Mercosul, no Paraguai. Um grupo de Paris pediu, e ganhou, uma sala para expor la corruption française.

    Com um Congresso pródigo em corrupção, o MuCo teve que abrir uma galeria só para expor a produção diária de Brasília. Em outras salas, estão as operações da PF, o trabalho de CPIs, uma galeria especial para a arte apreendida com corruptos de bom gosto, uma biblioteca com integra de livros para baixar, alguns já esgotados, a pizzaria da ex-deputada Ângela Guadagnin em que a Sarney, o bigode feito de anchovas, é a mais apreciada. Há também uma lojinha, como em todo museu. Ela foi até disputada por interessados em vender produtos reais. Mas continua só vitrina, com cueca própria para esconder dólares, algemas preciosas, máquina de lavar dinheiro, camisas de colarinho branco, kit para escutas clandestinas e camisetas da hora. Cartões postais da Casa da Dinda e da mansão de Palocci, brasilienses; da refinaria de Pasadena, no Texas; e da Petrobras, no Rio e Pernambuco, entre outros, podem ser enviados do próprio MuCo. A Copa do Mundo deste ano ganhou uma área especial, alimentada pelo jornal Lance. Na sala de cinema passam vídeos e som coletados de várias fontes, inclusive da web. No depósito de ferramentas estão os telefones e e-mails de todos deputados e senadores.

O MuCo nunca teve nenhuma verba, ou investimento. E é uma pena que esteja hoje paralisado ante tanta corrupção jorrando da Petrobras. A alguns jornais, nas principais capitais do país, foi oferecido um anexo próprio, num conjunto de torres projetadas em torno do prédio inicial, já pequeno. Antes hospedado no recém-extinto Diário do Comércio, da Associação Comercial de São Paulo, era um espantalho: por que um jornal ia avalizar outro? E a concorrência? Agora liberado, o criador abdicando à sua criatura, ele poderia ser de todos, tipo Wikipédia. A forma de administrá-lo está aberta. Bobagem pensar em patrocínio. O Google o encamparia? Não, por incompatibilidade à sua operação no Brasil. Alguma empreiteira? Só por humor.

Agora, o MuCo (www.muco.com.br) também entrou no Facebook. Só como obra de todos, poderá crescer, digerir a corrupção que, de tanta, o imobilizou. Algumas ideias que aguardam condições de serem executadas: duas novas salas, uma para a Papuda, outra em homenagem a Paulo Francis, com a memória de suas denúncias sobre a Petrobras. Um museu de cera com os nossos corruptos mais conhecidos — forma eficaz de dissuadir futuros corruptores. Alguns suspeitos absolvidos revelaram o poder da memória preservada, pedindo à curadoria para acrescentar que foram julgados inocentes em casos de muita exposição. Em pouco tempo, a 9 de dezembro, será comemorado o Dia Mundial Contra a Corrupção. Hoje, o Brasil pode comemorar certo avanço contra a impunidade. Mas, e contra o esquecimento?DSC00429

Hong Kong 8888

Skyline em Victoria Harbour

Skyline em Victoria Harbour

Ao final de quatro dias passados em cenários cinematográficos de assassínios, sequestros, atentados terroristas, tráfico de drogas, prostituição, espionagem, tiroteios e guerra de gangues, o repórter encontrou sobre sua cama no Hotel Langhman um bilhetinho: “Responda, por favor: o que mais o impressionou em Hong Kong?”

O repórter respondeu, sem titubear: A SEGURANÇA!!

Ilha poderosa, como Manhattan; financeira, como Wall Street; turística, como Paris; lotada, como a 25 de Março em São Paulo; com chiques e famosos sem guarda costas nas ruas; Rolls-Royces no trânsito; um vasto Porto Cheiroso (a tradução de Hong Kong); mas… nenhum trombadinha. Nenhum!

  Crime, em Hong Kong, é ficção. Só nas telas de cinema. Victoria Harbour, a vista mais espetacular da cidade banhada a néon, foi o cenário de 007 Contra o Homem com a Pistola de Ouro, com grande elenco dizimado por James Bond. No SoHo estão os pontos de traficantes do filme Chungking Express. Do arranha-céu mais alto da cidade e 5º do mundo, Lara Croft salta para Caçadores de Tumbas II. Sequestros e atentados começam já no aeroporto Chek Lap Kok em Hora do Rush II. A prostituição se espalha em O Mundo de Suzie Wong e Adeus Minha Concubina, do cineasta Leslie Cheung, que se atirou do 24º andar do Mandarin Oriental Hotel. O endereço de tiroteios e gangues é a Pottinger Street, escolhida para Infernal Affairs – Infiltrados. E o encontro do Ocidente com o Oriente ficou há 54 anos marcado pela lacrimosa história de amor entre um jornalista americano e uma médica chinesa, A Love Is A Many Splendored Thing, ou Suplício de uma Saudade, filmado em Repulse Bay.

  Não é por acaso que muito turista desbrava a ilha com a sensação de que já viu o filme. Hong Kong é cinematográfica. Uma de suas novas atrações, a Avenida das Estrelas, em Tsimshatsui, celebra os 20 mais famosos do cinema chinês, como Jackie Chan e Bruce Lee, numa réplica de 440 metros do Calçadão da Fama, em Hollywood. Legiões de chineses do continente invadem a cena diariamente: são uma cultura milenar se deslumbrando com o mundo livre e altamente tecnológico em seu próprio outro país. O encontro do comunismo com o capitalismo; do aroma de incenso e da flor nacional, a bauhínia, a origem do nome Porto Cheiroso, com a multidão de celular no ouvido ou no olho, sob o fog que persiste apesar do fim do mandato britânico de 99 anos.

  Os ingleses partiram em 1º de julho de 1997. Conquistaram Hong Kong, com outras 235 ilhas, em duas Guerras do Ópio (1839-42 e 1856-60) impostas aos chineses, e a devolveram sob condição de que, por 50 anos, até 2047, ela será administrada pela China sob a fórmula “um só país, dois sistemas” – uma ilha de economia de mercado num oceano comunista, refletindo a ambiguidade do Yin e do Yang. Hambúrgueres e carrões são vendidos na China continental, mas o jornal New York Times, não – só em Hong Kong.

  Foi mesmo o que previram os hong-kongoneses – ou hong-kongers, em inglês: os negócios precedem a política. Tanto que o debate político desde a reintegração se limitou a questões tipo galinhas e poluição. Um anticlímax para o resto do mundo, que temia um assalto imediato à liberdade individual. Na Região Administrativa Especial da China, agora o prenome oficial de Hong Kong (SAR, na sigla oficial), os jornais estão sob censura invisível, mas a internet é livre, ainda, e as livrarias vendem até mesmo livros anunciando que está chegando o colapso da China, como The Coming Collapse of China, de Gordon Chang.

Chão de estrelas

Chão de estrelas

HK ou LA?

HK ou LA?

  AS ESTRELAS no Calçadão da Fama são ofuscadas pelo hotel das mil e uma estrelas, The Peninsula, por duas vezes “o melhor do mundo” dos guias Zagat, Travel & Leisure e Condé Nast Traveler. Alguns jornalistas brasileiros, convidados pelo grupo The Leading Hotels of the World, foram recebidos com champanhe na suíte de US$ 5.065 a noite, recentemente ocupada por Tom Cruise.

Avista-se Hong Kong brilhando dourada até da suntuosa banheira. Do balcão, por telescópio. Ou do quarto, deitado na cama. O prédio do Banco da China sobe ao céu com uma série de triângulos que culminam num prisma, mudando inteiramente de cor a cada momento. Toda noite, de 8h às 8h18, 18 dos prédios espetaculares no horizonte exibem A Symphony of Lights, com explosões de roxo, verde, vermelho e amarelo, flashes brancos e fogos de artifício (o chinês gosta tanto do 8, soando como a palavra “prosperidade”, que marcaram suas Olimpíadas para 8/8/2008, com início as 8h). Tradicionais sampans e balsas zarpam com turistas para um espetáculo a mais, as luzes do skyline efervescente refletidas nas águas do Victoria Harbour. Liga-se do celular para um número, e ouve-se a sinfonia que as acompanha. Rádios e um portal na internet também a transmitem.

  O chá das 5h no lobby do Peninsula é lendário. A sopa de barbatana de tubarão, no restaurante Spring Moon, alguns andares acima, um requinte. Mas há um programa duvidoso no exuberante bar Félix, no topo do hotel: fazer xixi sobre Hong Kong. Foi ideia do arquiteto Philippe Starck. É a impressão que dá aos homens sem vertigem mirando telhados, ruas e pedestres lá embaixo, embora um vidro sirva de escudo quase invisível e um canalete leve o rio de emoções para o esgoto. As mulheres fazem fila para entrar nos intervalos em que o banheiro fica vazio. Mas não podem “curtir” o programa. Só imaginá-lo.

  Todos os pontos de vista são cartões-postais em Hong Kong. Mas qual o mais arrebatador? Eis a questão! Hors-concours é a travessia de balsa entre a ilha de Hong Kong e a península de Kowloon. “Espetacular”, “soberbo” – ouve-se a bordo. O preço é incrivelmente ridículo, como em todo transporte público local: 2,20 dólares hong-kongoneses, menos de R$ 1, para um lugar na primeira classe no segundo andar do Star Ferry, que zarpa a cada 10 minutos, entre 6h30 e 23h30.

A visão do alto dos 373 metros do Victoria Peak, no meio da ilha, também é fantástica. Sobe-se em sete minutos num bondinho existente desde 1888, por R$ 10,30. Lá em cima, uma atração extra: um rickshaw para fotos. Mas, atenção: o chinês sorridente sentado ao lado cobra cada clique. E dá uma quádrupla resposta para tudo e todos, em inglês, levantando e baixando a cabeça: “ok, ok, ok, ok”. A deslumbrante arquitetura dos prédios desponta de qualquer ângulo. Vendedores de relógios e souvenires montam bancas pelas passagens estratégicas. Você os encontrará em todos os pontos turísticos.

O show das 8h

O show das 8h

YES, YES, YES, YES: Hong Kong vai ter uma Disneylândia a partir de 12 de setembro. Mickey, Pato Donald, Pluto, Margarida e Minie, personagens geralmente encontrados no prato dos chineses, serão mais um teste à ocidentalização da China. Por prudência, o Reino Mágico se submeteu à mágica chinesa do feng shui para atrair harmonia e boa sorte. É famoso e muito fotografado o exemplo de um grande prédio levantado perto de Stanley, um subúrbio ao sul de Hong Kong, que só vendeu todos seus apartamentos depois de reformado segundo o feng (vento) shui (água). Elementar: o construtor tinha esquecido de abrir uma passagem para o dragão. Aquele enorme buraco no meio do prédio resolveu todo problema.

A Disney ainda promete cardápio chinês na sua versão para Hong Kong. Os chineses comem tudo que tenha pernas, exceto móveis. Tudo que nada, menos submarino. E tudo que voa e não seja um avião. Se tem caloria, engolem. Os turistas que não comem nada cortado acima do pescoço e abaixo da cintura se deliciam com “o toque do coração”, ou dim sum. São bolinhos de carne, peixe ou vegetais, refogados ou cozidos no vapor, servidos no café da manhã, almoço, jantar, ceia, brunch e na hora do chá. O jornalista R. W. Apple Jr., do New York Times, encontrou o nirvana do dim sum em Hong Kong. Uma porção de bolinho de ninho de passarinho, rara iguaria, sai por R$ 24. Os populares podem ser comprados na rua e em fast foods. Entre os mais de 10 mil restaurantes da cidade, vale a pena visitar o Jumbo, “o maior flutuante do mundo”, em Aberdeen. Aqui você escolhe o peixe, o camarão e a lagosta vivos em tanques, depois os recebe prontos à mesa. Será que os chineses precisam mesmo de uma Disneylândia?

Hong Kong também é o nirvana do consumo. A última máquina fotográfica digital a US$ 399 no free shop de Guarulhos sai por US$ 299 nas lojas da Nathan Road, antes de qualquer barganha. Há shoppings só de computadores, gadgets, filmadoras, celulares e MP3. As peças com invisíveis defeitos de grifes multinacionais são desovadas por ninharia em bancas montadas nos túneis do metrô. Ternos sob medida ficam prontos em 12 horas. Há mercados só para seda, jade, artesanato, relógios, souvenires e pássaros… O preferido dos turistas é o de Stanley. Algumas lojas fecham às 23 horas.

Hong Kong recende a religião, incenso e superstição. São mais de 600 templos budistas, taoistas e confucionistas – oásis fora do tempo e da agitação dos 6,8 milhões habitantes e mais cerca de 1,5 milhão de turistas/mês. Entra-se no mosteiro Chi Lin, cercado de prédios e trânsito, e todo o burburinho cessa de repente. O lago de lótus em flor, fontes de água, jardins meticulosamente cuidados, monges meditando — e chega-se naturalmente à saída, onde um presente espera o visitante: um mantra gravado. No templo Sik Sik Yuen Wong Tai Sin, ao contrário, reina o fervor das oferendas, o balançar de varetas para prever o futuro e a espessa névoa de incenso diante do altar de Confúcio. Fica-se defumado para o resto do dia. À beira do mar, pela ilha afora, surgem minitemplos.

OS NÚMEROS são a obsessão dos chineses. O celular 133 3333 3333 foi leiloado, recentemente, por US$ 215 mil. O seu comprador não o atendeu quando chamado por jornalistas que queriam entrevistá-lo. É que o 3 dá sorte, embora também represente conflito. O 2, azar, mas pronuncia-se como a palavra “fácil”. O 4, amor, sexo, conhecimento, e também, principalmente, soa como morte. Então, fuja do 24, que forma “morte fácil”. 5: desgraça. 6: dinheiro. 7: comunicação, espiritualidade. 8: prosperidade (a combinação 28 é ótima, “dinheiro fácil”. 9: sucesso no futuro. O 1 não tem um significado específico. Em 174, por exemplo, forma um tsunami: “todos morrendo juntos”. No feng shui os números valem cada um por si, enquanto na numerologia eles são somados e reduzidos a um dígito. Uma distração chinesa é ficar interpretando as placas de carros e os números de casas e edifícios pela ilha. Todos evitam o 4. A Disney até adiou sua estreia na China, marcada originalmente para 2004, porque antecipou que “não seria um ano bom”.

O repórter voltou bastante influenciado pelos números de Hong Kong. E é por isso que ele está esperando dar 18h18 para colocar o ponto final nesta sua reportagem, que tem 18 parágrafos e vai completar o total de 8.888 caracteres, sem contar os espaços, exatamente neste ponto final, bem aqui.

São Gaudí

E la nave va

en.wikipedia.org

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Da tumba na igreja da Sagrada Família, em Barcelona, o arquiteto Antoni Plàcid Gaudí i Cornet poderá passar para o altar. “São Gaudí, o arquiteto de Deus”, começou a ser promovido por um grupo de devotos que já obteve a bênção do cardeal espanhol Ricard Maria Carles para iniciar o processo de beatificação.

  Uma comissão histórica e outra teológica estão investigando a vida de Gaudí para o padre Lluis Bonet i Armengol, pároco da Sagrada Família que foi nomeado vice-postulante do processo de beatificação pelo arcebispo de Barcelona, cardeal Carles. O postulante deverá ser nomeado pelo Vaticano, se o processo, sempre longo, podendo durar décadas, for além do estágio inicial de coleta de dados.

  Gênio, louco e santificável, Gaudí é a glória de Barcelona, o “arquiteto universal catalão” e “gigante do gótico” que marcou a arquitetura do século XX. Ele está enterrado na cripta de sua última e inacabada obra, a Igreja Expiatória da Sagrada Família, visitada por 1 milhão de turistas em 1998. “Os despojos de um homem tão grande esperam aqui a ressurreição dos mortos”, diz uma inscrição na lápide, decorada com flores de plástico.

  Outra tumba na mesma cripta é a do livreiro Josep Maria Bocabella i Verdaguer, que teve a ideia de construir a Sagrada Família para protestar contra a industrialização e a perda de valores tradicionais, já em 1866. No início da guerra civil espanhola, em 1936, os soldados do general Franco a saquearam. Mas não tocaram na de Gaudí. “Não é milagroso?”, pergunta o arquiteto José Manuel Almuzara, fundador e presidente da Associação Pró-Beatificação de Gaudí.

  Uma tetraneta de Bocabella, Teresa Dalmases, continua hoje a coletar fundos para a obra da Sagrada Família, 117 anos depois de assentada sua primeira pedra. A US$ 5,40 o ingresso inteiro, com descontos para grupos e estudantes, ela arrecadou cerca de US$4,5 milhões em 1998. Nesse ritmo, a igreja estará pronta em mais 50 anos, empregando 50 operários, a maioria artesãos, e as máquinas mais modernas. Para o final de 2000 programou-se a primeira missa na igreja que passou a ser de Gaudí em 3 de novembro de 1883, ao se demitir o arquiteto da diocese, Francisco de Paula de Villar.

  Gaudí dedicou-se à Sagrada Família por 43 anos – os últimos 12 anos em tempo integral e os dois finais morando num estúdio dentro do canteiro de obras. Toda tarde, pelas 5 horas, lá ia ele a pé rezar na igreja de San Felipe Neri, ao lado da catedral, no centro de Barcelona. Era uma boa caminhada, recomendada contra recaídas de uma febre reumática que já tinha lhe tirado a infância na rua com outros meninos. Parecia um eremita, a barba branca e a roupa puída. O guarda Silverio Silvestre achou que ele fosse um mendigo ao registrar sua entrada na emergência do Hospital Santa Cruz, em 7 de junho de 1926. O condutor do bonde da linha 30 contaria mais tarde, diante de um juiz: “O velho cruzava a Gran Via na esquina de rua Bailén e voltou ao ver outro bonde na direção contrária, sendo então atropelado”. Três táxis recusaram-lhe socorro.

  “Amén Déu meu! Déu méu!” – foram as últimas palavras de Gaudí, em catalão, três dias depois do atropelamento. Não quis que o transferissem a outro hospital, ao recobrar a consciência. “Só lhe faltava, para ir direto ao céu, morrer como um pobrezinho de Cristo” – escreveu o cronista F. Folch num elogio fúnebre no Diário de Barcelona. “Arquiteto de Deus”, chamou-o um famoso liturgista da Catalunha, Manuel Trens, no jornal La Publicitat. Espalhando numa mesa várias folhas amarelecidas com fotos e textos do enterro de Gaudí, realizado na cripta da Sagrada Família “por autorização  direta do papa” (Pio XI), padre Bonet conclui: “Já o consideravam santo; nós não inventamos nada”.

  Padre Bonet, de 67 anos, constrói com muita fé a imagem de São Gaudí. E um irmão dele, Jordi Bonet, executa-lhe a obra, concretamente. É o atual arquiteto responsável pela construção da Sagrada Família. Também devoto, diz: “Para mim, Gaudí já é um santo”. Ele dá um motivo a mais para a beatificação: “A igreja precisa de santos laicos”. E o momento não poderia ser melhor, lembra padre Bonet: “O papa está promovendo beatificações e canonizações”. Os dois irmãos foram influenciados por um arquiteto muito amigo de Gaudí, Lluis Bonet i Gari, o próprio pai.

  Entre a maioria de prédios baixos e marrons de Barcelona, a herança de Gaudí atrai pelas formas inesperadas, ousadas, curvas, salientes, enfeitadas, coloridas, caprichosas e harmoniosas. Ele ensinava que “a curva é a linha de Deus”. Em seu mundo, não havia retas. “Originalidade”, dizia, “é voltar as origens”. Na origem, filho do caldeireiro Francesc Gaudí i Serra, era um menino de Reus, uma cidade industrial ao lado de Tarragona moldada sob fortes influências maçônica e nacionalista. Estudou num colégio de padres. Às vezes, em crise de febre reumática, com dor em todo o corpo, ia para a aula montado num burrico. Foi vegetariano a vida toda, por ordem médica. Tinha pendor para detalhes. Interrompeu uma professora que explicava que os pássaros voam porque têm asas para dizer que “as galinhas não voam, embora tenham asas”. A mãe, Antònia Cornet i Bertran, morreu quando ele tinha 24 anos e já estudava arquitetura em Barcelona. 

  Gaudí não teve uma vida digna de santo até 1900, aos 42 anos, quando o comparavam a São Francisco de Assis e a Gandhi, ou até 1911, ao voltar de uma estadia de cura de febre reumática nos Perineus decidido a abandonar tudo e se dedicar obsessivamente à “catedral dos pobres”, Sagrada Família. Não há um momento-chave de revelação na vida do “Arquiteto de Deus” aceito por seus biógrafos. Adorava a fama, conquistada com a construção da Casa Vicens e de edifícios para o conde Eusebi Güell, amigo e mecenas. Fumava charutos de qualidade. Tinha pavio curto e era arrogante. Vestia-se com elegância, mas só usava sapato já amaciado pelo irmão, que os novos o machucavam. Frequentava os melhores restaurantes. E nunca se provou que tenha tido uma paixão. Teria amado em segredo uma mulher, não correspondido. E um amigo que só se casou depois de sua morte levantou a suspeita de uma relação homossexual. Para os devotos, o arquiteto de linhas curvas divinas, ou sensuais, morreu casto.

  Ascético, profundo conhecedor da liturgia católica, religioso de missa e comunhão diários, aprendiz de canto gregoriano, arquiteto precursor do modernismo, pobre e humilde no final da vida, Gaudí não fez milagres. É o que lhe falta para ser elevado a São Gaudí. Uma mulher de Valência pediu-lhe que o marido ganhasse um concurso, e foi atendida. Outra, para passar numa prova na universidade, e passou. E mais uma, ainda, para se livrar de uma pedra no rim, e se diz curada. Uma doente terminal está agora pedindo por vida, e a Associação Pró-Beatificação de Gaudí a acompanha, com fé de que terá mais um relato milagroso para o padre Bonet, o vice-postulador da beatificação. A pediatra brasileira Cecilia Maria Pereira assina uma carta no último boletim O Arquiteto de Deus antecipando “um grande milagre que beneficiará milhares de pessoas enfermas em meu país e no mundo”, se Gaudí atender as suas orações.

  Nas ruelas de Barcelona, Época perguntou ao acaso se Gaudí deveria ser beatificado. Dez em dez pessoas disseram sim. Mas São Gaudí não chega a ser unanimidade. Entre artistas e intelectuais prevalece a opinião do escritor Manuel Vázquez Montálban: Gaudí é um patrimônio cultural de todos, não uma propriedade da igreja. Editorialista do jornal La Vanguardia e escritor com 28 livros publicados, José Luis de Vilallonga é mais radical: “Vou lhe dizer a verdade, Gaudí não me agrada nem um pouco, nem como arquiteto, nem como santo – um absurdo.” O historiador da Arte e diretor do Spazio Gaudí, Daniel Giralt-Miracle, ironiza a campanha pró-beatificação: “Nem eu apoio”. Mais próximo de Gaudí do que os céus, para ele, estaria Picasso. Mas para o diretor da Cátedra Gaudí na Universidade de Barcelona, Juan Bossegada Nonell, “as condições para a santificação estão aí…”

  O único artista jamais canonizado foi São Lucas. Além de pintor ele foi um dos quatro apóstolos. “O céu não precisa de arquitetos, Deus já fez tudo”, brincam com o arquiteto Almuzara. Longe de desistir, ele vai adiante, descobrindo sempre novos indícios de milagre. As conversões, por exemplo. O coreano Jun Young-Joo converteu-se do budismo no último Natal, depois de visitar a Sagrada Família. “Não é qualquer um; é o diretor da Câmara de Comércio e Indústria de Pusan, na Correia”, ele diz. Enviou-lhe um bilhete: “Através das obras de Gaudí e do toque divino que têm, me convenci da existência de Deus”. Ao arquiteto japonês Kenji Imai bastou um encontro com o próprio Gaudí, em 1926: a conversão foi instantânea.

  O outro convertido é o escultor japonês Etsuro (“homem feliz”) Sotoo. O que o atraiu na Sagrada Família, quando a visitou em julho de 1978, aos 25 anos, foram blocos virgens de pedra da Galizia. Sentiu uma irresistível vontade de esculpi-los. Com o tempo, o arquiteto Almuzara e “o convívio com a obra de Gaudí” acabaram esculpindo sua fé cristã em sua alma budista. Tão devoto, ele já pensa em casar-se de novo, com a mesma esposa, no ritual católico. Hoje ele ainda faz os anjos sem asas da “fachada do nascimento”, no lado de trás da igreja. E vai precisar de mais sete anos para acabar seu trabalho e voltar a Fukuoka, onde três grandes blocos de pedra o esperam diante do museu, armadilhas com que a prefeitura local pretende recuperá-lo.

  “Antes, tínhamos que explicar aos turistas que Gaudí não era louco, mas alguém excepcional, quase louco”, diz Sotoo, em espanhol com sotaque, uma toalha enrolada como turbante na cabeça. “Agora, vamos descobrir se ele era santo, ou ao menos alguém como Salomão e Davi – um construtor do Templo”.

 

Oração para Gaudí

 

   “Santissima Trindade, que infundiste a teu servo Antoni Gaudí,

arquiteto, um grande amor à tua Criação e um ardente afã de imitar os mistérios da infância e paixão de teu Filho;

faça que eu saiba também entregar-me a um trabalho bem feito, e digna-te a glorificar

teu servo Antoni, concedendo-me, por sua intercessão, o favor que te peço (aqui o pedido). Amém.

  Jesus, Maria e José, dê-nos a paz e protegei a família (três vezes)

Voe, Dilma, voe para salvar o Brasil.

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beatlesbible.com/people/maharishi-mahesh-yogi/

Perguntei ao guru dos Beatles,

Maharishi Mahesh Yogi,

como salvar a economia brasileira.

Foi em 1991, mas vale ainda hoje.

51KL0hsg0KL._SY344_BO1,204,203,200_O guru indiano Maharishi Mahesh Yogi concluiu que a crise econômica brasileira só será resolvida quando o presidente Fernando Collor for capaz de “voar” com a própria energia mental para “o nível supremo da inteligência que administra o Universo”.

O venerando guru da década de 60 e dos Beatles vislumbra um “milagre econômico em seis meses” se o Brasil adotar o programa “simples” que propôs durante uma consulta exclusiva de 45 minutos, por telefone, entre Vlodrop, na Holanda, e Washington, DC.

“A troca de ministros é uma mudança superficial” – ele comentou, a voz fina e fanhosa. “Uma doença nas folhas e frutos das árvores deve ser tratada pela raiz”. Maharishi Mahesh Yogi significa “Grande Profeta”, ou “Destruidor da Ignorância”. Aos 79 anos, a vasta barba branca, ele introduziu a Meditação Transcendental no Ocidente, conquistou 25 mil discípulos pelo mundo e construiu um império avaliado em US$ 3 bilhões. Muitos já o consideram “um novo Ghandi”, ou “o próximo prêmio Nobel da Paz”.

Maharishi começou a falar da economia brasileira a partir de uma constatação: “A inteligência humana não será capaz de resolver a crise no Brasil”. E acrescentou: “O Brasil chegou ao nível supremo da ineficiência e inadequação de pensamento e de organização”. Ele contou que já advertiu os líderes brasileiros. “Mas acharam que se eu tivesse alguma solução para a economia do mundo, por que a situação economia no meu país, a Índia, não seria melhor?”

A economia do Universo é administrada por “um nível supremo de inteligência”, garante Maharishi, que se formou em Física antes de sair pelo mundo pregando paz e amor. “Baseio-me numa descoberta científica quando digo que a natureza trabalha sob o princípio da mínima ação, do mínimo esforço. A natureza não desperdiça inteligência, que organiza a diversidade infinita. Ela usa todo o seu potencial. Um universo infinitamente ordenado é o ideal supremo da economia. Temos abundância de inteligência criativa, a inteligência da natureza que a inteligência humana explora através da Meditação Transcendental”.

O Brasil está precisando do “Efeito Maharishi”. Ele é produzido pela energia liberada quando um meditador tenta levitar. Não é necessário que o presidente Fernando Collor saía voando pela janela do Palácio do Planalto, nem que se alce à altura da inflação. Basta o desejo de “voar”, em duas sessões diárias de 20 minutos de TM, sigla da meditação Transcendental em inglês.

O presidente Collor pode até delegar o trabalho de “voar” ao novo ministro Marcílio Marques Moreira, ou a um grupo de meditadores profissionais. “As vibrações emitidas coletivamente são maiores do que a soma de suas partes”, explica o guru. Ele acredita que foi um grupo de pilotos da TM que acabou com a Guerra Fria, unificou as Alemanhas e já produziu comprovadas altas em bolsas de valores. A guerra no Golfo só começou mesmo porque o presidente George Bush não apoiou a mobilização de um exército de 7 mil meditadores, ou 1 por cento da raiz quadrada da população mundial, que seria capaz de transformar o mundo ao custo de US$ 4 a 5 milhões de dólares por ano, se toda a mão de obra fosse contratada por salários mais baixos no terceiro mundo. Nem o presidente Saddam Hussein escaparia ao “Efeito Maharishi”.

O guru foi informado da preferência do presidente Collor por corridas. Voar, por esporte, só em aviões de combate. Então, reagiu: “Os exercícios físicos nada têm a ver com o ordenado movimento do dinheiro. Isso requer uma mente ordenada”. Ao ouvir que a um povo com fome ele está oferecendo meditação, lembrou: “Sim, sim. Há dois mil anos que as orações dos homens a Deus pedem o pão de cada dia. O pão não é um dom dos homens. A vida requer um nível supremo de inteligência”.

Maharishi acrescentou: “Há alguns anos o Brasil saiu de um regime militar para o civil. O que aconteceu? Os problemas foram adiados para uma próxima geração. Os brasileiros adiam muito. Para o próximo ano. Para a próxima estação. Mudar o problema não é sinal de inteligência. Há uma solução permanente a todos os problemas, que são causados pela violação das leis naturais. Temos um programa: meditação transcendental e prática grupal de voo. Estes são os valores que promovem a vida de acordo com a lei natural. Felizmente, muito simples. Uma solução a todos os problemas. É como quando um povo está vivendo na escuridão. Só resolve acender a luz. E todos os problemas da escuridão desaparecem”.

O violento confronto entre os latinos e a polícia perto da Casa Branca, no bairro de Mont Pleasant, deu ao Maharishi o argumento para uma nova campanha. Ele agora quer o fechamento de todas as embaixadas americanas no mundo até que passe o perigo de contágio da violência, como se fosse malária. “Uma quarentena”, está propondo. As decisões do presidente George Bush, com certeza, estão contaminadas pela alta criminalidade em Washington. Por isso, a quarta viagem de paz do secretário de Estado James Baker ao Oriente Médio “não poderá dar certo”. Por que?

“É muito simples: ele partiu carregado da criminalidade de Washington. As embaixadas americanas também estão influenciando o mundo com tendências criminosas. Quando alguém pega uma gripe poupa os amigos do contágio. Essa etiqueta da amizade deve valer para os governos”.

Maharishi não duvida que foi uma forte gripe que levou os Estados Unidos à guerra com o Iraque. “Isso é completamente óbvio”, ele reforça. “Se Washington não fosse a capital mundial do crime, o governo teria aceitado o meu conselho de criar um grupo de sete mil meditadores pela paz. Mas não pôde tomar uma saudável decisão”. Algumas vezes, durante o longo telefonema, gravado nas duas pontas, era claramente audível o coro dos discípulos de Maharishi, apoiando alguma declaração, ou apenas rindo.

“Você pode informar ao governo brasileiro”, pediu Maharishi, ao fim da conversa: “Não siga o padrão econômico dos outros governos. Não siga o padrão político dos outros governos. Apenas alinhe a consciência nacional com a inteligência natural. Então, ocorrerá uma transformação. Todos os problemas desaparecerão. Aconselhe ao governo a adotar meu plano master para criar o céu na terra”. Então, despediu-se com duas palavras inaudíveis.

Ps.: O guru Maharishi morreu em 5 de fevereiro de 2008, na Holanda.

Romeu (palestino), Julieta (israelense): beijo da paz?

Romeu e Julieta, por Frank Dicksee, 1884.

 Duas famílias nobres e inimigas,

em Verona, onde vai passar-se o drama,

renovam lutas por questões antigas

em que o sangue do povo se derrama.

Dessas duas famílias que o ódio afasta

implacável, nasceu um par de amantes

cuja má sorte, trágica e nefasta,

levou a paz às casas litigantes.

Desse ódio de família e seus extremos,

E o infausto amor, que ainda ao morrer, mais forte

do que o ódio, sepultou o ódio na morte,

no palco, em duas horas, trataremos.

Queira o auditório dar-nos atenção

E relevar a nossa imperfeição.” 

(William Shakespeare, prólogo de Romeu e Julieta, tradução de Onestaldo de Pennafort, MEC, 1940. 

  O palestino Romeu toma a israelense Julieta nos braços, e a beija apaixonadamente. Depois se matarão de amor, enquanto fora do teatro, palestinos e israelenses continuam se matando com pedras, bombas e balas.

  Em árabe, ao descobrir que Julieta é da inimiga família Capuleto, espanta-se Romeu: “A uma inimiga devo a minha vida!”

  Em hebraico, ao descobrir que Romeu é da inimiga família Montéquio, espanta-se Julieta: “O meu único amor, nascer de um ódio antigo!/ (…) Que monstruoso amor nasceu em mim:/ Devo odiar a quem amo, amar a quem odeio!” 

  Numa sacada no pomar dos Capuleto, Romeu e Julieta trocam juras de amor em diálogos hebraico-árabe, com legendas projetadas no palco em inglês, francês ou português, dependendo do público.

  Mortos na romântica tragédia de Shakespeare, em Verona, Romeu e Julieta enfim unem as famílias Montéquio e Capuleto, que tanto se odiavam. Mortos no trágico cotidiano palestino-israelense, em Jerusalém, eles renovam uma esperança de paz – “mas sem otimismo”, como contou a promotora internacional da coprodução palestino-israelense de Romeu e Julieta, Paula Karelic, numa entrevista em Tel-Aviv.

  Não falta só o aperto de mão conciliador do final imaginado por Shakespeare há 400 anos. “Falta-nos percorrer um longo caminho até um acordo definitivo entre nossos povos” – antecipou Karelic, que tinha um convite para apresentar Romeu e Julieta do Oriente Médio em São Paulo, em setembro de 1994. Faz 10 anos que os paulistas estão À Espera de Godot, mais para Samuel Beckett do que Shakespeare da Terra Santa.

  No mesmo dia histórico em que o líder da OLP, Yasser Arafat, e o primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin, deram-se as mãos nos jardins da Casa Branca, em Washington, o 13 de setembro de 1993, o beijo da paz entre Romeu e Julieta foi acertado entre duas companhias de teatro dos extremos de Jerusalém – a palestina Al-Kasaba e a israelense Kahn.

  De Verona para Jerusalém, os inimigos Capuleto e Montéquio mostrariam que israelenses e palestinos podem conviver numa mesma terra, e em paz. Ou dividir um palco. A OLP deu sua bênção. “Tratados não são apenas um pedaço de papel” – observou Ahmed Tibi, conselheiro de Yasser Arafat, ao jornal The Jerusalem Post: “A paz tem que ser implementada pelos dois povos”. Mesmo abençoado, o Al-Kasaba foi acusado de “precipitação”, e os “colaboracionistas”, ameaçados de morte.

  Os radicais do Hamas se opuseram por razões religiosas. Pressionado pela comunidade judaica, escandalizada com as cenas de amor entre um palestino e uma judia israelense, o Festival de Berlim suspendeu o patrocínio de parte do US$ 1,4 milhão dos custos da produção. Por onde passaram, e passam, Romeu e Julieta do Oriente Médio deixam um rastro de atentados anunciados, nunca ainda acontecidos.

  “Aceitei fazer Romeu e Julieta porque acho que o banho de sangue e o ódio devem ter um fim, e também porque, se nosso destino é vivermos juntos, temos que começar a conhecer uns aos outros” – explicou o diretor artístico do Al-Kasaba, George Ibrahim, que no palco representa o velho Montéquio, quando entrevistado na época da estreia num antigo galpão da Companhia Elétrica de Jerusalém, em 16 de junho de 1994.

   “A única alternativa para a paz é a morte” – foi o que também declarou o diretor artístico do Khan, Eran Baniel, que perseguiu por cinco anos, como a uma miragem no deserto bíblico, a ideia da montagem binacional de Romeu e Julieta. Marcaram os ensaios grandes atentados. Os atores se encontraram mesmo sob o impacto do massacre de 29 árabes em Hebron por um lunático judeu norte-americano, ou das explosões sangrentas em Afula e Hadera que mataram 13 israelenses, ou dos frequentes toques de recolher e da tensão beirando a conflagração de uma guerra geral. Às vezes, nem ensaiavam. Apenas conversavam até diluir as barreiras que cresciam isolando mais ainda os Montéquios e Capuletos médio orientais.

  George Ibrahim só foi adiante amparado pela própria mensagem da tragédia de Romeu e Julieta, que ele diz ser “contra o ódio sem sentido”. Então, convenceu-se: “É nosso dever prosseguir”. Os palestinos Montéquios não recorreram a recursos óbvios de identificação, como o tradicional kefiah, o turbante enrolado na cabeça. Já são naturalmente diferentes dos Capuletos. O diretor Fuad Awad, que nasceu em Nazaré, na Galileia, e estudou teatro na Universidade de Tel-Aviv, aproveitou Shakespeare para estabelecer uma ponte entre os atores árabes que são cidadãos israelenses e os palestinos da Cisjordânia e Gaza. “Formamos um mesmo povo”, contou ao jornal Le Monde, e o explicou: “Quando sou detido por horas numa barreira militar, e às vezes revistado sem saber por que, me pergunto se o teatro é capaz de criar uma nova situação. Este é o sentido da minha pesquisa sobre a identidade palestina”. A crítica também se despiu do simbolismo evidente para aplaudir o espetáculo enquanto arte.

Francesco Hayez, óleo sobre tela, 1823.

Francesco Hayez, óleo sobre tela, 1823.

Apesar de todas as aspirações políticas desta produção, o impacto maior é provocado pelo trabalho artístico”, como aplaudiu o Post de Israel,  mesmo lembrando que uma dupla direção pode criar um “pacote misto, e uma representação desigual”. O telefone da Julieta israelense, a atriz Orna Katz, 26 anos, tocou muito depois da estreia em Jerusalém. Beijar Romeu palestino, o ator Khalifa Natur, 29 anos, causou um assombro internacional.

  “Uma grande ideia”, disse Julieta. “Os palestinos estão envolvidos na cultura israelense por causa da ocupação. E nós não estamos na deles. Assim há uma troca. Todos aprendemos”.

  Ao tomar Julieta nos braços, Romeu lhe pede: “Ficai imóvel, pois, minha santa querida/ Enquanto eu colho a graça concedida”. E a beija. “Vossos lábios dos meus o pecado apagaram”, ele se maravilha. E responde Julieta: “Mas com o vosso pecado os meus ficaram!” Claro que com a deixa Romeu aproveita para beijá-la pela segunda vez: “Ficaram com o pecado? Oh! doce usurpação! Restituí-me o meu pecado então!”

 Beijos da paz, depois de encontros secretos entre palestinos e israelenses em Oslo, uma conferência em Madri, um aperto de mãos histórico nos jardins da Casa Branca, e muito, muito sangue derramado.

Paraíso de dólares brasileiros

Tantos dólares de brasileiros

nos paraísos fiscais, tirei do baú a reportagem que

fiz para o Estadão em 1991, em Cayman.

 É do  caribe…

Transparência só na água do mar. Foto carib.com

Transparência só na água do mar

Bandeira de Cayman

Bandeira de Cayman

Entusiasmado com a multiplicação de negócios brasileiros no paraíso fiscal das Ilhas Cayman, no Caribe, um banqueiro suíço sugeriu: “Por não criar uma linha aérea direta com o Brasil?”. A resposta de um banqueiro brasileiro: “Só se a batizarmos de Capital Flight”.

A evasão de capitais, ou capital flight em inglês, já alcançou cerca de US$ 3 bilhões só em depósitos nos bancos brasileiros no exterior (em 1991), principalmente em Cayman. Se forem contabilizados os depósitos nos bancos internacionais, a evasão de capitais do Brasil já atinge  total estimado entre US$ 30 bilhões e 60 bilhões.

Uma pesquisa altamente reservada, pedida por um banco 1920x1080-Cayman-Islands-Airborneinternacional em Nova York, revela os níveis estimados de depósitos nas agências de alguns brasileiros no exterior. Ao total estimado em US$ 2.235 bilhões, devem ser acrescentados cerca de US$ 600 milhões em depósitos no banco Delta, que pertence ao Real. “A lista só inclui gente pequena”, garante um banqueiro com muita experiência em negócios com brasileiros. Os ricos do Brasil preferem os grandes bancos americanos ou suíços.

Os tesouros das Ilhas Cayman não são os aparentes. O esplendor do cristalino fundo do mar só está acessível a mergulhadores e aos passageiros de um submarino turístico, o Atlantis. O sigilo bancário é impenetrável, submerso em mistério e inviolável por lei.

Do Atlantis, a US$ 60 por hora de passeio, avista-se o monte multicolorido que emerge do mar chamado Grand Cayman, 768 quilômetros ao sul de Miami, entre Cuba e Jamaica. Ao lado, estão as ilhotas Cayman Brac e Little Cayman. Ao fundo, numa profundidade média de 4 mil metros, os abismo conhecido como Cayman Trench. Ao avistar duas ilhas muito pequenas, cheias de tartarugas, quando navegava perdido entre o Panamá e Hispaniola, em maio de 1503, Cristóvão Colombo as batizou de Las Tortugas. Mas, 20 anos depois, elas reapareceram como se fossem Lagartos num mapa italiano. As tartarugas e lagartos evoluíram, em 1530, para crocodilos – os Caimanas do Caribe.

Grand Cayman é um Grande Crocodilo, com 35 por 6,4 quilômetros, a metade pântano. Little Cayman, o Jacarezinho, tem 16 por 1,6 quilômetros, com o ponto mais alto a 12 metros acima do nível do mar. A origem do sobrenome Brac da terceira Cayman seria galega – blefe. Esse Crocodilo de Mentira, com 19,2 por 1,8 quilômetros, é, na verdade, um templo de mergulhadores.

Os crocodilos desaparecem na bandeira de Cayman, substituídos por um leão de ouro, uma tartaruga e uma inscrição: “Fundada sobre os mares”. As próprias tartarugas entraram em processo de extinção. Foram muito caçadas por navegantes e piratas, num holocausto que os caimaneiros tentam reparar. Perto do Inferno, na ponta norte da ilha Grand Cayman, as tartarugas são criadas em vários tanques e devolvidas ao mar, numa experiência única no mundo. Mas a fazenda foi atingida por uma violenta ventania, um dia antes do Natal do ano passado, e está se recuperando da perda de cinco mil tartarugas de três a 15 meses. Ainda falta tirar o bife de tartaruga do cardápio dos restaurantes, onde a oferecem como um prato típico. Uma ironia: a carne pode ser comprada, sob encomenda, na fazenda criada pelo ideal da preservação.

As fotos da rainha Elizabeth e do príncipe Philip decoram a alfândega do aeroporto internacional Owen Roberts, em George Town, a capital da Grand Cayman. As ilhas passaram da Espanha para a Inglaterra com o Tratado de Madri, em 1670. Os caimaneiros nunca quiseram ser independentes. Foram administrados pela Jamaica por quase cem anos, desde 1863. Optaram por manter a tutela direta da Coroa Inglesa quando os jamaicanos proclamaram a independência, em 1962. E, orgulhosos, dirigem os carros na contramão do Caribe, como se estivessem em Londres, mesmo com os volantes do lado esquerdo.

A fidelidade total à coroa compensa. As ilhas Cayman mantêm o mais alto nível de vida do Caribe. O Produto Nacional Bruto equivale a US$ 17.400 por pessoa e continua crescendo a uma média de 5,8% ao ano (em 1991). Cada dólar caimaneiro vale US$ 1,25. Não há desemprego. A inflação está em torno de 10%, importada, como 95% de todos os produtos à venda. A Inglaterra nomeia um governador para cuidar da defesa, relações exteriores, segurança interna e serviço público. Ele escolhe três dos sete membros de um Conselho Executivo e ainda preside a Assembleia Legislativa, com 12 deputados eleitos. Não há partidos políticos formais, mas apenas dois times: o Dignidade e o Unidade.

A isenção de impostos nas ilhas Cayman é lendária. Ela foi conquistada numa noite tempestuosa de novembro, em 1788, quando o primeiro de um comboio de dez navios mercantes bateu contra os recifes da Baía do Canhão. Todos naufragaram. Mas os bravos navegantes caimaneiros enfrentaram o mar para resgatar tripulantes e passageiros, entre eles até um membro da Família Real. O rei George III ficou tão grato que extinguiu os impostos e o serviço militar na colônia. Estava criado o paraíso fiscal, só concluído em 1976, com a adoção de uma legislação para garantir o total sigilo bancário.

O tesouro das ilhas Cayman é hoje avaliado em US$ 380 bilhões – o quinto no mundo. Um total de 538 bancos e 18.264 empresas já lançaram âncoras no paraíso de águas verde-claras e da estabilidade política e econômica em pleno Caribe. Outros ainda seguem o mapa da mina. Dos 50 maiores bancos mundiais, 44 já chegaram. E, dos brasileiros, 17 estão no registro oficial do Inspetor dos Bancos.

As igrejas também crescem nesse paraíso. Já são 60. E a população passou dos 25 mil, com 20% negros, 20% brancos e 60% de “inseguros” – mas nem um pouco preocupados, como explicou um caimaneiro à revista National Geographic.

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Contas são movimentadas à distância

A abertura de uma conta num banco internacional de George Town, em Grand Cayman, seguiria uma burocracia rotineira não fossem as máquinas de picar papel. Podem nem ser usadas, mas estão sempre à disposição. Um banqueiro suíço ficou famoso por sentar os clientes ao lado de uma dessas devoradoras de papéis. Documentos comprometedores viram confete ou longas serpentinas. Uma cerimônia de triturar anotações muitas vezes marca solenemente o final das reuniões.

Mas nem sempre o cliente está presente. E nem mesmo o banco. As contas de brasileiros em Grand Cayman são abertas e movimentadas por fax, telefone, telex e computador a partir de Nova York, Miami, São Paulo, Rio de Janeiro, Assunção e Montevidéu. “Você é o primeiro brasileiro que aparece aqui em um ano e meio”, exclamou um executivo do Banco Econômico, André da Silveira Neeser. A maioria dos bancos não passa de uma plaquinha na parede e um número de caixa postal. Dos 538 registrados, apenas 69 existem fisicamente. Entre eles estão o Banco do Brasil, Real/Delta, Banespa, Unibanco e o Transworld Bank Trust Limited, ex-Econobank e ex-Econômico.

“Lucro no Exterior não é cobrado no Brasil”, diz um banqueiro para explicar o registro de bancos brasileiros em Cayman. E ele acrescenta: “Aqui, a operação é inteiramente legal. Em Nova York também, se você for estrangeiro. Mas em São Paulo ou Rio, não. Os gaúchos vão até Montevidéu para transferir dólares para Cayman. Lá, inclusive, o câmbio é livre. Os paranaenses cruzam a fronteira para o Paraguai. E o Banco do Brasil em Buenos Aires não estará cometendo nenhum crime perante as leis da Argentina se executar alguma operação de transferência. Na verdade, o cidadão brasileiro pode ter conta no exterior desde que a revele na declaração do Imposto de Renda. Não acredito que declarem. A maioria não quer nem receber os extratos das contas. Preferem um dia buscá-los”.

Alguns bancos abrem contas em Cayman para clientes especiais no próprio Brasil. Cobram uma taxa de remessa, outra para ordens de pagamento, e até apresentam um recibo de depósito em três dias. Pagam a Libor, os juros interbancários de Londres, que está em torno de 7%. E se livram ao mesmo tempo dos bancos centrais brasileiro e americano. Alguém que tenha mais de US$ 2 milhões vai certamente procurar um grande banco internacional, conta um corretor de Nova York. Será recebido com sofisticação. E poderá ter uma conta corrente completa, com talão de cheque, posições de investimento e um trabalho de administração de fundos pessoais. Ganhará um código de acesso por telefone. O Citibank, o Morgan, o Chase e os suíços possuem uma organização fantástica para atender clientes ricos. Mas, apesar de toda a infraestrutura de comunicações dos paraísos fiscais, ainda há quem carregue a própria mala de dinheiro.”

Queremos Viver

 

No post anterior, morte. Uma semana depois, vida.O casal setuagenário que procura um médico que o mate reencontrou o filho médico distante há cinco anos. Mas não foi uma reconciliação. “O que você quer?”, perguntou-lhe o pai, o publicitário aposentado Murillo Ferreira, enquanto a mãe, Arminda, estava sentada no sofá da sala, onde passa os dias abatida pelo mal de Alzheimer.

   “A reportagem…”, respondeu o médico cujo nome o pai pede para não ser revelado. A reportagem, na capa do Estadão de domingo, “Por favor, queremos morrer”, conta o drama de um casal junto há 53 anos, solitário após uma vida rica em amigos, doente e amargurado pelo abandono do filho médico e de um outro que não dá notícias desde 1982, quando foi morar em Salvador.

   Murillo achou que o filho ia criticá-lo por ter provocado “a reportagem” com uma carta ao Estadão em que defende o “direito de morrer”, atestando: “…é o que queremos, eu e minha mulher”. Acrescenta: “Os nossos corações já estão rateando. Os pulmões, tocando os seus foles. A cabeça, já meio louca, coitada, fazendo o que pode. O corpo trasteja, se fere, fratura, desgasta. As pernas, já não mais tão serviçais, estão cansadas, com mais de 70 anos cada uma. Tudo isso como dói! Dói por dentro, dói por fora. Aliás, a dor é o melhor sinal da vida. Só não dói depois da morte. Por tudo isso é que resolvemos deixar de sentir dor…”

   Mas o filho nada mais falou. Nem Murillo. E nem Arminda. Ela fez várias vezes o sinal da cruz, seu tique nervoso. Ainda ontem vestia a mesma calça e blusa de uma semana atrás, ela que foi uma mulher muito elegante. Viu-se no jornal, mas nada comentou.

   “Ficamos como imbecis, sem diálogo”, comentou Murillo. “Aí meu filho se levantou e foi embora”. Só depois é que ele se lembrou que Arminda toma um remédio que agora requer receita médica. E que o filho talvez poderia dá-la.

   “A reportagem” não sensibilizou só o filho de Murillo. Desencadeou uma avalanche de cartas e telefonemas de solidariedade ao casal, recebidos pelo Estadão. Muitas pessoas estão se oferecendo como companhias, enfermeiras se voluntariam para cuidar de Arminda, asilos e casas de repouso abrem espaço aos dois, médicos se colocam à disposição, religiosos querem dar amparo espiritual, jovens pedem o endereço para levar doces e antigos amigos reaparecem, chocados, propondo “resgatá-los para a vida”. Ao final de seu programa, anteontem à noite, Hebe Camargo criticou os filhos que abandonaram os pais.

   Murillo chorou ao ler a carta do amigo Hugo Maia, publicada ontem no Estadão. “Não consegui terminar”, ele contou. “As lágrimas saíram aos borbotões”. Foi um alívio: “Esvaziou a pressão permanente dentro de mim”. Para um casal que há quatro anos só recebeu em casa a faxineira diária e o repórter, na semana passada, a solidariedade geral emocionou. Arminda não fala, mas está visivelmente mais ativa. “O assunto” (a eutanásia) que a deixa nervosa não é mais a única conversa. Os moradores do prédio bateram à porta para oferecer apoio e esperança. Mas o casal não convidou ninguém para entrar. E não autorizou o Estadão a fornecer o endereço ou o telefone a quem está procurando um contato.

   “Essa homenagem em vida me faz querer morrer mil vezes”, Murillo comentou ontem, com uma ponta de morbidez.