Como uma miragem no deserto, os beduínos vão passando. E desaparecem, para sempre. São uma tribo em extinção. O deserto se tornou fértil: em se plantando, nascem oásis; e em se perfurando, jorra petróleo.
Restam uns 60 mil beduínos em Israel. Mais da metade ainda vaga sob o sol do deserto do Negus com seus camelos e tendas. Mas outros 40% já encontraram endereço fixo em cidades, enterrando a vida nômade nas dunas de areia. Trocaram a poesia por água encanada, esgoto, emprego e lazer. E foram bem-vindos.
Muita poesia: “O beduíno tem o ar, os ventos, o sol, a luz, os espaços abertos e um imenso vazio” – escreveu o arqueólogo, militar, espião e escritor inglês Tomas Edward Lawrence (1888-1935), o lendário Lawrence da Arábia, no livro Os Sete Pilares da Sabedoria. Continuando: “Ele não vê na natureza fecundidade nem esforço humano: simplesmente o céu acima e, abaixo, a terra imaculada. Assim ele se aproxima inconscientemente de seu Deus”.
El Badwi, beduíno em árabe, é sinônimo de estepe e de começo. Então, o mundo começa nas estepes do deserto. Os judeus também acreditam que no deserto esteja a Casa de Deus. Onde também moram o silêncio, o vento, o calor e o vazio.
Tive um guia beduíno para escalar os 2.265 metros até a “Porta do Céu”, o Jbel Mussa, o monte em que Moisés, cego e já com mais de 100 anos, teria recebido de Deus os dez mandamentos. Ia à frente, com um galão de água, pouco antes que o deserto do Sinai voltasse à soberania egípcia pelo acordo de paz com Israel. Chamava-se Chuva. Vestia um longo casacão preto e a tradicional keffiah, o pano branco assentado na cabeça por um cordão preto. Ele me falou de um amigo que namorou uma turista americana, num oásis à beira mar, “o hotel de Mil e Uma estrelas”. Daí nasceu um filho, alguns meses depois, em Nova York. A mãe queria o pai por perto, e lhe enviou uma passagem aérea. Provocou uma polêmica ecológico-diplomática: pode-se transplantar um beduíno das dunas de Ras Muhammad (a praia Cabeça de Maomé) para Wall Street, o Village, a Broadway?
Chuva era realmente uma raridade do deserto. Ele não sabia o fim da história de seu amigo. Só o começo: “Era uma vez um beduíno que foi para Manhattan…” Ele também repetia uma piada apropriada ao local, apreendida com turistas. “Quando chegou ao topo da montanha, e Deus lhe perguntou para onde queria levar seu povo, Moisés, que estava gago, tentou responder: “Ca…ca…ca…” Canaã, como foi completado, precipitadamente. Na verdade, os judeus queriam ir para o Ca…ca…Canadá. Ou a Ca…ca…Califórnia.
Muitos beduínos não são árabes, como os Qashqai, no Irã; os Tuareg, no Sahara; e os Turcomanos do Norte da Síria e do Iraque. Os únicos negros estão no Sudão. Todos têm um denominador comum: vagueam pelos desertos, guiados por instinto e tradição. Vivem em tendas e criam camelos. O Political Dictionary of the Arab World calcula que restem entre sete e oito milhões de beduínos espalhados pelo mundo árabe e Israel. Mas estão batendo em retirada. Cada vez mais encontram à frente mais desertos férteis, proibidos para pastagem. Já não podem mais formar aqueles bandos perigosos que assaltavam as ricas caravanas. Hoje, se não assistirem a TV mundial CNN podem acabar no fogo cruzado de uma guerra entre dois países vizinhos. Já sobreviveram a muitas. Já estiveram sob domínio otomano, inglês e israelense nos desertos da Judea e Samaria bíblicas.
O mercado de camelos, os navios do deserto, não está mais em expansão. Então, dá maior retorno criar bodes e carneiros. Como o rebanho prefere ficar ruminando numa encosta de ralo verde do que na amarela de pura areia, os beduínos vão abandonando a vida nômade. Assentam-se na periferia das cidades. Alguns até se elegeram deputados no parlamento israelense. Em Amã, na Jordânia, os beduínos formam a elite do exército real, a famosa Legião Árabe. As tendas provisórias se perpetuam em casas e depósitos. Os governos estimulam a transição. Um dia fizeram uma experiência da qual Chuva participou. Deram-lhe uma casa projetada por arquitetos que estudaram os costumes de sua tribo. Bem que ele se esforçou por se adaptar. Mas uma noite não resistiu: montou uma tenda diante da casa, e foi morar nela. Outros gostam, perpetuam o teto.
Os chefes de família e os mais velhos beduínos elegem um líder espiritual, o Sheik. Sua autoridade penetra a vida pessoal e familiar de todos numa tribo. Mas ele não chega a ser um juiz de pequenas causas. Os próprios índios do deserto devem resolver os problemas sozinhos, a partir de certas regras estabelecidas ao longo de séculos. Assassinatos e estupros demandam uma sulha – uma compensação. Ou vingança. As guerras intertribais há muito que estão pacificadas. Mas a lei do deserto vigora entre beduínos que se mudaram para cidades. A mulher infiel, por exemplo, ainda é assassinada.
Os beduínos deixaram de ser o elo de ligação entre povos separados por desertos. A TV é instantânea, e os aviões, mais práticos. Os oásis são acessíveis por linhas regulares de ônibus com ar condicionado. As famílias das capitais árabes já não mandam seus filhos para aprender com os gurus do deserto. Aprendiam as matérias primas da personalidade beduína, como a virilidade, coragem e resistência, temperadas pela hospitalidade, honra e lealdade familiar. Hoje os discípulos preferem aprender economia e computação nas dunas do saber dos Estados Unidos.
“Cada indivíduo nômade”, explicou Lawrence da Arábia, “tem sua própria religião, sem transmissão oral nem tradição, mas instintiva”. O beduíno reza à entrada da tenda. No deserto não há mesquitas, nem o canto do muezim do alto dos minaretes convocando os fiéis para as orações. O Corão leva em conta a aspereza do deserto. E as abluções e outros rituais de purificação com água podem ser feitos com areia.
Os supersticiosos beduínos acreditam no djinn – um espírito do mal que ataca os recém nascidos, aterroriza as caravanas, e pode baixar em certas pessoas, como, no espiritismo, com Zé Arigó e Chico Xavier. Contra ele, recorrem aos walj – os santos; aos sherif – os descendentes da família do Profeta; aos madjzbur – místicos comparáveis aos pais de santo; e aos faqir (não confundir com os fakirs hindus) – miseráveis com poderes sobrenaturais, curandeiros e exorcistas. Muitos ainda se valem de amuletos e de talismãs mágicos. A tribo dos Tiyaha, no Negus, ficou famosa por uma terapia culinária. Contra reumatismo, nada melhor que um naco de carne de abutre, um primo do urubu brasileiro. Contra impotência, coelhinhos.
Os beduínos em extinção, os senhores dos desertos, ainda são visíveis pelo Negus, quase 2/3 do território de Israel. Surgem à beira de estradas, com seus rebanhos, roupas penduradas, crianças brincando. Parecem ciganos. E vão se adaptando tanto que já fabricam artesanato para vender a quem quer conhecê-los. Vale a pena vê-los antes que acabem. Todas quintas-feiras, a partir de seis da manhã, os beduínos se reúnem ao lado da estação rodoviária de Beersheba para vender carne, tapetes, roupas e joalheria. Só que já chegaram à Idade dos T-shirts. E também vendem aparelhos eletrônicos.
Os oásis do deserto são hoje grandes hotéis de cadeias internacionais. Oferecem hidroterapia com água do Mar Morto, quartos com vistas espetaculares, cozinha típica, passeios organizados, conexão mundial via satélite, até mesmo os jornais do dia. Uma bolha de ar condicionado no meio do nada povoado de lembranças bíblicas. Beersheba é a cidade dos Sete Poços do Velho Testamento. Os judeus a cruzaram em busca da Terra Prometida, perdidos durante 40 anos. Os restos da fortaleza de Massada, construída por Herodoto, “o Grande”, em 43 Antes de Cristo, tornaram-se o símbolo do moderno estado de Israel: “Não cairá outra vez”, repete-se hoje. Cercada pelos romanos em 70 AC, seus 967 habitantes preferiram o suicídio à rendição. Pela vizinhança, outras atrações: as grutas de Qumram, onde foram descobertos os pergaminhos do Mar Morto, e as reservas naturais e os kibutzim que vão colorindo de verde o deserto. E tem a placa de Sodoma, na estrada, onde casais adoram posar para fotos, selfies, bundas à mostra, como se tivessem sido convidados para a última bacanal. Eilat, no Mar Vermelho, a fronteira com o Sinai egípcio, foi adotada como o Caribe dos Nórdicos. Charters trazem refugiados do inverno, brancos de neve. Do outro lado, a Jordânia, com Petra, e a Arábia Saudita.
Os beduínos se espalham pelas colinas verdejantes da Galiléia até a mistura de sal e calor dos mares Morto e Vermelho. De carro, esse mergulho da água quente salgada para o frescor do doce rio Jordão pode ser feito em três horas. E se alguma caravana de beduínos cruzar à frente, atenção, esfregue bem os olhos: pode ser uma miragem.
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