Por quatro meses trabalhei numa exclusiva e sensacional reportagem. Era a minha primeira para televisão. Quando tinha tudo pronto, só faltando mesclar texto e imagens, anunciei à equipe: -Estou derrubando a reportagem. Parem tudo.
Assim começava a reportagem, com este vídeo de 1,35 minuto
Este vídeo do time da Chapecoense decolando para a tragédia já foi muito visto e revisto no Brasil e no mundo, mas o livro de capa vermelha aberto pelo passageiro sentado no corredor da segunda fileira do avião parece ter passado desapercebido.
Veja de novo: até parece que o leitor, ao ver a câmera, quer é mostrar o livro.
O livro é Endgame, A Chave do Céu, de James Frey e Nils Johnson-Shelton. Segundo de uma trilogia, nele e no anterior, O Chamado, seriam narrados dois desastres aéreos – e um deles por pane seca, falta de combustível.
O vice-presidente de Futebol do Chape, Mauro Luiz Stumpf, o Maurinho, é quem lê o livro no original inglês, embora a tradução em português já fosse vendida desde outubro de 2015. Está nas primeiras das 675 páginas. Como no avião da Lamia, apenas decolando. Destino na ficção e na realidade: a queda, por falta de combustível.
Foi um colega de trabalho na TV Brasil quem, curioso, procurou saber mais sobre o livro de capa vermelha nas mãos do vice-presidente de Futebol do Chape, o Maurinho.
À medida que ia lendo, ele se surpreendia cada vez mais. E me procurou para compartilhar: “Cara, o livro é sobre um avião que cai por falta de combustível!”. Tremenda coincidência, ironia do destino, maravilhosa reportagem, a ficção prenunciando a realidade.
Ele tinha um trecho do livro em que cai o avião de Endgame, ou Fim de Jogo — e lembrava: “Era também o último jogo do campeonato para o Chape”.
FRASES NO LIVRO
Estar em um avião e acima do mundo aumenta o senso de profundidade. O mapa se estende em todas as direções, e seus limites são definidos pelo ponto que pisca.
Falta uma hora para o avião (…) começar os procedimentos de pouso (…) Ele dorme profundamente e não faz ideia do que esteja acontecendo. Se soubesse, ficaria tão extasiado (…) Tão arrebatado quanto. Tão ávido pela morte quanto.
(…) dia em que o destino de todos se tornaria tão desolador (…) quando encarariam
a morte olho no olho.
A gente precisava de mais combustível.
Tem alguma coisa errada (…)
Vamos mudar a rota do avião (…) entendeu? (…) tentando manter a calma.
Vamos ter que pousar para reabastecer de novo.
(…) enquanto estiver apenas reagindo ao que se aproxima, vai dar tudo
certo. Então, é para onde estou levando você. Para o Jogo. Para o Endgame.
Para Jogar. Talvez você esteja pronta para desistir, mas eu não estou pronto para Desistir (…)
O que é Endgame?
Jogo do fim dos tempos.
E você está jogando?
Estou.
Em breve, muita gente vai sofrer (…)
O avião dá uma guinada para trás (…)
(…) quando o avião dá um solavanco e para (…) Ah, meu Deus (…)
(…) derrubou nosso avião quando teve a chance (…)
Um sinal toca, e os cintos se abrem automaticamente. Suas narinas sentem cheiro de fumaça. (…) iriam morrer.
Cai em queda livre, acende, avança em espiral e segue (…)
(…) grita durante toda a queda, então se ouve um som nauseante, e depois silêncio.
(…) fez uma aterrisagem forçada e afundou (…) quando ficou sem combustível.
A explosão viria em questão de segundos.
Eu vi o local da explosão, e não deixa dúvidas. Ninguém sai daquilo andando (…)
A explosão não é das maiores, porém a floresta zumbe com os estilhaços. Tinidos e estrépitos soam do outro lado do pedregulho, enquanto mancais, parafusos, pregos e estilhaços de metal trituram a floresta. Pedaços de casca de árvore, de folhas, de galhos cortados — tudo isso chove.
A explosão dura somente um segundo, então o silêncio volta a se instalar.
O mundo inteiro deve estar vendo TV hoje. O mundo inteiro menos nós, os Jogadores.
Os jogadores do livro não jogam futebol. Disputam um jogo de fim do mundo. São descendentes de 12 linhas de ancestrais criados por extraterrestres para habitar a Terra. Quando o Endgame começa eles lutam pela sobrevivência, até que reste só um vivo. O Laboratório Niantic, do Google, fez da trilogia um jogo de realidade expandida. Logo estará nas telas também um filme, produzido pela 20th Century Fox. A editora americana HarperCollins ofereceu um prêmio ao primeiro leitor que decifrasse os enigmas escondidos pelas páginas.
A ficção teria se unido ao real no voo da Lamia com o Chape para Medellin, na Colômbia, em novembro de 2016.
Tentei entrevistar o principal autor de Endgame, James Frey. Conhecia-o por seu livro Um Milhão de Pedacinhos (A Million Little Pieces), que apareceu em 2003 nos Estados Unidos. Recomendado na TV pela influente apresentadora Oprah Winfrey, o livro alcançaria, rapidamente, o primeiro lugar entre os mais vendidos, gênero não ficção. Eram as memórias de um dependente de drogas reduzido a fragmentos.
“Um milhão de mentiras”, denunciou o website The Smoking Gun. Descobria-se que parte das memórias de Frey não batia com a realidade. Datas de internamento em clínicas, checadas, foram desmentidas. Sua prisão por 87 dias, depois de quase atropelar um guarda, dirigindo sob efeito de crack — puro delírio. Três dos principais jornais americanos, cada qual revelando mais e mais detalhes inventados, obrigaram a editora a mudar a categoria de não ficção para ficção, e ao seu autor admitir, publicamente, ter alterado a própria biografia, para efeito literário. O total de 1.729 leitores pediram, e obtiveram, o dinheiro pago pelo livro de volta.
Frey (foto acima) negou a entrevista para a TV Brasil. Procurada em Chapecó, a família de Mauro Stumpf não soube dizer nada sobre o livro levado a bordo, edição americana. Em sua página do FaceBook, Maurinho, porém, diz que fala italiano, sem mencionar se lê inglês. A cinegrafista Milene Nunes, que fez as primeiras imagens para o “furo” em gestação, perguntou a um youtuber que resenhou a trilogia se a queda do avião era relevante no enredo do Endgame. Achava coincidência demais.
A resposta que ela recebeu, por e-mail: “Acontece um acidente de avião no primeiro livro, O Chamado, mas não é um acontecimento importante . Muitos acidentes e muitas destruições fazem parte dessa história, nos três livros. Então, acaba sendo só mais um…”
Tentei falar com o tradutor da edição em português. Mas a assessoria de imprensa da editora Intrínseca, no Rio, propôs que lhe enviasse nossas dúvidas, e uma equipe procuraria respondê-las rapidamente. Mandei a transcrição com que trabalhava havia quatro meses. O tempo foi passando à espera de uma entrevista com Frey e do envio de um repórter e cinegrafista a Chapecó.
Talvez tenha se perdido ao longo do projeto um detalhe importante, na verdade o principal: a transcrição havia sido montada com pesquisa no PDF de A Chave do Céu, baixada da internet gratuitamente, e a partir de buscas por palavras chaves, como “avião”, “falta de combustível”, “desastre”…. Não me lembro de saber que se tratava de uma montagem com frases pinçadas aqui, ali e acolá no calhamaço de 675 páginas.
Meu associado no projeto escreveu um e-mail:
“Verifiquei alguns detalhes no livro. Realmente, a história é bem complexa. Conferi com mais tempo alguns trechos e conclui o seguinte:
> A história se passa em vários ambientes, e os jogadores são transportados tanto de avião quanto de helicóptero.
> Sobre falta de combustível: ocorre inicialmente em um avião. (Páginas 199 a 201)
> O que caiu por falta de combustível foi um helicóptero.
Na página 207: “O helicóptero fez uma aterrissagem forçada e afundou no Atlântico, quando ficou sem combustível”. O que cai em espiral é um míssil. Página 410.
De todo modo, abrindo o arquivo PDF do livro e buscando por algumas palavras temos aquelas frases incríveis, que chamam a atenção pela semelhança com o acidente da chapecoense”.
A Intrínseca fulminou o nosso furo sensacional de reportagem, localizando cada frase da transcrição e seu sentido completamente diferente. Ainda nos alertou: provavelmente tínhamos uma cópia pirata do livro, não confiável, porque a editora não disponibiliza PDFs grátis na internet. Alguns dos exemplos que nos mandou:
>> Cai em queda livre, acende, avança em espiral e segue (…) – Não tem acidente. É um míssil.
>> grita durante toda a queda, então se ouve um som nauseante, e depois silêncio – Não tem acidente. É uma luta corpo a corpo. Quem está caindo é uma pessoa.
>> Fez uma aterrissagem forçada e afundou (…) quando ficou sem combustível. – Não tem acidente. O personagem saiu do helicóptero.
>> A explosão viria em questão de segundos. – Não tem acidente. A “explosão” se refere a um meteoro.
Eu vi o local da explosão, e não deixa dúvidas. Ninguém sai daquilo andando (…)A explosão não é das maiores, porém a floresta zumbe com os estilhaços. Tinidos e estrépitos soam do outro lado do pedregulho, enquanto mancais, parafusos, pregos e estilhaços de metal trituram a floresta. Pedaços de casca de árvore, de folhas, de galhos cortados — tudo isso chove. A explosão dura somente um segundo, então o silêncio volta a se instalar. << – Não tem acidente de avião.
Era uma vez um furo sensacional, ou uma barriga inesquecível.
Agradecimentos:
Milene Nunes,
José Vidal Pola Galé, da TV Brasil, e
Andressa Camargo, Editora Intrínseca.