O marqueteiro João Santana é um exímio chef na cozinha.
Provei de uma moqueca que ele fez. Mais que isso, eu o vi prepará-la,

ensinando: “não se pode machucar os ingredientes”.

Revendo o bufê servido na campanha de Dilma
Rousseff, hoje, dia de denúncia
oficial das pedaladas fiscais escondidas do
eleitorado, concluo que o chef da Presidência
machucou, e muito, os ingredientes. Que exagerou no tempero.
E que está provocando uma indigestão nacional.
Requentei e atualizei um artigo que circulou restrito num jornal
que não existe mais, e aqui o ofereço.
Bom apetite.

Vídeo da campanha de João Santana para Dilma: prato vazio.
A recomendação do chef João Santana, ao assumir a cozinha lá de casa, no final dos anos 80 do século passado: “Não podemos machucar os ingredientes”. Cortou uma, duas, quatro cebolas com tanta perícia que nem elas, nem nós, choramos. Picou tomates carinhosamente. Tratou os temperos com devoção. Levou o peixe ao fogo com delicadeza e até certa culpa pelo calor que o transformaria, meia hora depois, numa moqueca baiana. No final, um prato agradecido por tanto cuidado e respeito — ao que retribuiu, delicioso.
Brusco salto para 2014. Para papar a sétima eleição da série interrompida com a derrota de seu candidato no Panamá, em maio, o marqueteiro João Santana convenceu a presidente Dilma Rousseff a torturar e espancar os ingredientes que ameaçavam o primeiro turno de seu refogado predileto — a reeleição. E tome, Marina! Tome, Aécio! E tomemos, nós!
Temperou o banquete eleitoral com o terrorismo da fome ante pratos vazios, desemprego, banditismo de meninos de rua desamparados e fantasmas renascendo de um passado assombrado, numa sequência de filmes de horror publicitário nunca antes vista nestepaiz. A rival Marina foi desidratada, desconstruída e afogada em banho-maria. O rival Aécio, salpicado na blogosfera com cheiro de pó, fritado em fogo lento à manteiga Aviação, embarcada no aeroporto aberto perto de sua fazenda de Cláudio, em Minas, e servido com o consagrado molho de “privataria tucana”.

Cena de La Grande Bouffe (A Comilança), filme franco-italiano de 1973.
Dilma? Irretocável, qual bolo de noiva! Gerentona, mãe do PAC, incorruptível, a senhora Muda Mais Brasil, poste aceso pelo companheiro ex-presidente, Dama de Ferro na administração da Petrobras, benfeitora de Cuba, protetora dos degoladores do califado islâmico em formação na Síria e Iraque, chefa de um grupo político acima de qualquer suspeita e já considerada reeleita até 2018 por clamor popular, antes mesmo da eleição.
Entre chef e marqueteiro, entre incapaz de torturar uma berinjela e comandante de um pelotão de fuzilamento de reputações, João Santana fez outras escalas na vida. Foi bicho-grilo empenhado, turista em viagens de ácido e cogumelos alucinógenos ao interior de si mesmo. Foi músico no tropicalismo dos anos 70, amigo de Caetano e Gil.

Dilma e João Santana (www.cristianolima.com)
Chamavam-no Patinhas e ele tinha o cabelo black power. Ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho ele se definiu como “um dos últimos socialistas românticos e um dos primeiros socialistas cibernéticos – ao mesmo tempo utópico e descrente, ao mesmo tempo sério e debochado”.
Contou também que “aprendeu hipnotismo em dez lições” e praticou “até com levitação”; e que “hoje é adepto da quiromancia”. Seu pai espiritual “é ainda” o suíço-baiano Anton Walter Smeták (1913-84), violoncelista, compositor, escritor e escultor – o guru dos tropicalistas: “Ensinou-me a virar os olhos para dentro da cabeça e o ouvido para dentro do silêncio da alma” (Época, versão Kindle, 2014).
Quando nos conhecemos morávamos perto um do outro – ele em Washington, DC, e eu em Bethesda, Maryland, ligados por metrô. Patinhas passava um ano sabático nos Estados Unidos, com a quinta ou sexta de suas mulheres, que hoje totalizam oito – e, prometido, não serão mais.
Era então um jornalista famoso no Brasil. Tinha sido dele o golpe mortal desferido contra o presidente Fernando Collor. Derrubou-o ao descobrir o motorista Francisco Eriberto Freire França, testemunha-chave no processo de impeachment: ele entregava dinheiro em pacotes do tesoureiro PC Farias em domicílios brasilienses e ainda se encarregava de providenciar bodes, galinhas “e o escambau” para rituais de magia negra na Casa da Dinda. Aquele famoso Fiat Elba da primeira-dama Rosana foi compra dele.
De diretor da sucursal de Brasília da revista IstoÉ, Patinhas promoveu-se a marqueteiro político, associando-se ao “mago” Duda Mendonça, que foi quem elegeu Lula pela primeira vez. De repórter investigativo das falcatruas de todo-poderosos passou à defesa de todo-poderosos contra a imprensa. Uma reviravolta e tanto. A mesma do carinho com hortaliças ao bombardeio impiedoso da verde Marina. De bicho-grilo a sombra da presidenta do Brasil. Marketing, para ele, é a adaptação de um produto ao gosto do consumidor, assado de chef, enquanto a publicidade cuida de vender.
Tucano de nascimento, pois que nasceu em Tucano, a cerca de 200 quilômetros de Salvador, João Santana já trabalhou para o falecido Hugo Chávez, da Venezuela, e José Eduardo dos Santos, de Angola. Ele “perdeu a sensibilidade para as questões fundamentais do Estado do Direito”, criticou-o Alberto Dines, jornalista observador da imprensa, num artigo em que lamentou a perda de ótimos repórteres investigativos para o marketing.
O poder de Patinhas é imenso. Como se fosse massinha, moldou Dilma segundo sua percepção das pesquisas de opinião pública diárias que mandava fazer. Escreve os discursos mais importantes. Criou as marcas PAC; Minha Casa Minha Vida; o Brasil de Todos; o País sem Fome… Ele dá o rumo, determina a agenda e escolhe o inimigo.
Aí mora o perigo. Talvez Marina não devesse ter sido picada, refogada e queimada no fogo alto de Dilma. Talvez não devesse ter servido ao eleitorado um bufê de inverdades com salada de alho e bugalhos. O chef Santana machucou os ingredientes. Salpicou pimenta baiana ardida até na sobremesa, sonhos. E mais de 51 milhões de brasileiros estão com indigestão.