GOTAS DE SANGUE NO SERINGAL

TIT

XAPURI, 27/02/1997  – Gotas de leite pingam da seringueira ferida. Até estancar vão encher três colheres de sopa – a dose diária. Em um mês de sangradouro, darão 1 quilo e 800 gramas. Cada quilo está valendo R$ 0,60, embora cotado a R$ 1,30. Com uma “estrada de 150 pés”, o seringueiro Manoel Barbosa de Brito faz R$ 13,50 por mês, na selva no fim do Brasil, quase Bolívia, a três horas de barco de Xapuri, no Acre. Seringais abandonados, cidades incham com os miseráveis ex-protetores da floresta em busca de trabalho inexistente. A herança do líder seringueiro Chico Mendes está se exaurindo, como uma seringueira seca, coberta de cicatrizes.

“Não quero flores no meu enterro, pois sei que vão arrancá-las da floresta”, pediu Chico Mendes numa palestra em São Paulo, 17 dias antes de ser assassinado por um tiro de escopeta que lhe abriu 48 perfurações no corpo. Mas flores lilases nasceram em seu túmulo. Arrancados da floresta, os seringueiros do Acre estão hoje em três ônibus a caminho de Brasília. Querem falar com o presidente Fernando Henrique Cardoso. E vão esperá-lo acampados diante do Palácio do Planalto na segunda e terça-feira.

xapuri-acre  O padroeiro de Xapuri lembra uma seringueira ferida. Da estátua de São Sebastião, no porto em que os Rios Acre e Xapuri se encontram, o sangue escorre como látex. Foi por acaso que o seringalista Antero Almeida da Silva encostou-se na estátua para lamuriar-se: “Já produzi num ano 143 toneladas de borracha, mas não ganhei nada.” Aos 57 anos, 31 no seringal, ele não ganhou nem mesmo um sucessor entre os dez filhos. “Nenhum quer ir para lá”, diz, apontando para além da confluência dos rios, onde brincam três botos-rosa. “Lá na mata, o quilo da borracha está a R$ 0,60.” Desembarcada no porto, a borracha pode valer R$ 0,80. “Só em 96 gastei R$ 2 mil com transporte de seringueiros doentes.” Para ele, “não dá para o Brasil competir com a borracha da Ásia”.

Os seringueiros da Amazônia produziram 4 mil toneladas de borracha em 96.

Outras 37 mil toneladas foram extraídas de seringais em Mato Grosso, São Paulo e Bahia. Com uma produção de 41 mil toneladas, o Brasil consome 145 mil toneladas. “E já fomos responsáveis por 100% da produção de borracha no mundo”, lembra o vice-presidente do Conselho Nacional de Seringueiros (CNS), Juarez Leitão dos Santos. A reviravolta é creditada a um inglês, Sir Henry Wickham. Em 1876, ele contrabandeou 70 mil sementes da seringueira Hevea brasiliensis, “a que dá o látex mais puro”. Levadas para a Malásia, Indonésia, Vietnã e Tailândia, hoje produzem borracha que vai custar US$ 2 o quilo, depois de beneficiada. A produção brasileira chega ao beneficiamento por três dólares.

FESTA NO SERINGAL, POR ÂNGELA GOMES

FESTA NO SERINGAL, POR ÂNGELA GOMES

“Todo mundo vem para a Amazônia saquear; ninguém para investir”, reclama Leitão dos Santos, caminhando sobre bolas de borracha defumada de uma praça dedicada aos seringueiros em Rio Branco, a 185 quilômetros de buracos e lama de Xapuri, centro da Reserva Extrativista Chico Mendes, espalhada por sete municípios, com 9.705 quilômetros quadrados. Ele ainda lembra um aspecto social muito importante: comprar da Malásia “é premiar um trabalho sob péssimas condições sociais”, enquanto “o correto seria investir nas 22 mil famílias que sobrevivem do extrativismo só no Acre”.

“Uma espingarda custava 20 quilos de borracha em 1948”, conta Leitão dos Santos. O auge da borracha passou com a Segunda Guerra Mundial. E a “degradação” veio com a borracha sintética. “Hoje não se compra uma espingarda por menos de 400 quilos”, ele acrescenta. Os soldados da borracha de um exército instituído pelo presidente Getúlio Vargas, como alternativa à convocação para a guerra, voltaram endinheirados às suas cidades, a maioria no Ceará. Restam alguns soldados aposentados em Xapuri. Vendem picolé de cupuaçu a R$ 0,10 pelas ruas. “Até o presidente Collor, trocava-se 1 quilo de borracha por 1 de carne, mas desde então viramos miseráveis”, conta Leitão dos Santos.

Alistada no exército da borracha aos 13 anos, em 1943, Lindaura Viana da Silva passou para a “reserva” em 1968. É a dona do Hotel Veneza, o único recomendável de Xapuri, com 20 quartos recendendo a mofo e várias paredes grafitadas por hóspedes, dispensando quadros. Grudada ao lado do seio esquerdo, quase à mostra, uma folha de capeba combate um tumor crescente e dolorido. Ela tem também uma receita caseira para a penúria que corrói a cidade que Chico Mendes tornou famosa mundialmente: “Não corta seringa tem que quebrar castanha.” Mas é o que fazem os seringueiros isolados na floresta. Só que ganham R$ 0,80 por lata com 18 quilos de castanha. Como a borracha, “o preço não compensa”.

seringueiro Numa palafita à margem do igarapé Riozinho, a uma hora por voadeira Rio Xapuri acima, Sebastião Diogo, de 58 anos, vai além: planta milho, arroz e banana.

“Com o seringal não dá nem para comprar sal”, rima e reclama. Por baixo da casa ciscam galinhas, patos e chafurdam leitões. A família pisa na lama descalça. E reza com vizinhos distantes, aos domingos, numa pequena capela levantada nos fundos. Padre Luiz vem num lento barco a motor. Daria um dia de viagem desde Xapuri, remando. A clareira até a floresta torna-se fechada e densa e lembra alguma obra do polonês Frans Krajberg, com árvores derrubadas e troncos calcinados.

Com R$ 13,50 por mês, o seringueiro Manoel Barbosa de Brito, de 58 anos, não poderia viver. Então, ele vai trocando, aos poucos, a borracha por arroz. A caminho do arrozal, ainda “risca” algumas “madeiras”, como diz. Faz um corte diagonal, em 1/3 da circunferência do tronco, e espera sangrar. O látex cai numa latinha que recolherá quando voltar, já anoitecendo. Tem 150 pés, numa “estrada” imaginária, sem ser contínua. Os troncos próximos mostram cicatrizes antigas. São árvores no auge da safra, entre 15 e 30 anos. Um filho de 10 anos, Marivaldo, vai junto “para aprender”. Também já está riscando. O próprio Chico Mendes às vezes o acompanhava. “Éramos muito amigos; vivo hoje, ele não permitiria que os preços caíssem a ponto de nos ameaçar.” Rio Xapuri abaixo, o seringueiro Francisco Roque, de 48 anos, também diz que “está faltando um líder como foi Chico Mendes”. E explica: “O homem sabia apertar os políticos em Brasília.” Mas ele lembra que “já houve tempos piores”, sem que lhe ocorram exemplos. Para safar-se da crise, diversificou a produção.

Tornou-se um modelo apresentado num programa nacional de tevê. No sítio que divide com o irmão e a avó de 80 anos, Judite, tem arroz, milho, banana, castanha, animais e 200 seringueiras. Planta até a palmeira aricuri para as folhas que servem de teto. E os urucuzeiros estão em flor, pontilhando a floresta de vermelho.

Roque vive num oásis dentro do caos, sob a proteção de São Sebastião, que zela em vários quadros do alpendre o mundo líquido de sangue, látex e rio caudaloso e barrento. O extremo oposto está na Sibéria, um bairro de Xapuri em que vivem Joana Batista de Oliveira e seus sete filhos – a família de Pelé, como é conhecido Antônio Marcelino Pereira, um seringueiro que fugiu da floresta para o desemprego na cidade. Ele só aparece aos sábados, vindo de biscates distantes.

“Aqui sofremos mais do que no seringal”, lamenta Joana, gêmeos de dois anos no colo. O quartinho em que dormem amontoados em redes foi dado por um compadre.

“É difícil ter comida.” Os filhos maiores não estudam nem trabalham.

“Estaríamos todos nus se não ganhássemos roupas.” E ela própria está fraquejando: “Comecei a sentir falta de ar e doidice na cabeça.” Crianças chorando, o quarto quente como sauna com o fogão a lenha queimando, ela não perde o humor: “Aqui só está faltando uma tevê.” E ri sozinha.

De Xapuri emana um humor mórbido. Ao lado do cemitério, na entrada da cidade, foi inaugurado um clube de dança batizado de Pé na Cova. Ainda há outros: Pau do Meio, Periquitão, Espoca Chato e Forró do Gavião. Baila-se a partir de quinta-feira até o domingo, todas as noites, como na época áurea do boom da borracha. “Tivemos o melhor carnaval dos últimos tempos”, dizem saudosos foliões. Prefeito há 50 dias, Júlio Barbosa de Aquino, o sucessor de Chico Mendes no Sindicato Rural de Xapuri, tem uma explicação: “Aqui tudo funciona como enfeite de boneca.”

RIO ACRE

RIO ACRE