Valéria Schilling, Porro e Paulo Kus
Enfim, ontem, dia 1° de fevereiro, reabri meu arquivo em Folio. Filtrei-o via Windows para o Mac. Fácil, depois de anos de tentativas frustradas, desde que o Folio acabou. O primeiro artigo que surgiu foi o elogio fúnebre que escrevi para meu amigo Alessandro Porro, jornalista com quem partilhei guerra e paz no Oriente Médio por oito anos. Ficamos muito amigos. Chamava-o de Porro, como os outros jornalistas estrangeiros em Israel. Dia seguinte, hoje, 2/2, recebi uma mensagem de amigos em Atlanta, nos EUA, lembrando: “Hoje o Porro faria 86 anos”. Googlei “Alessandro Porro” e pouca coisa retornou. Nenhuma foto. Li, e recomendo, um longo e ótimo artigo de Ali Kamel para o Observatório da Imprensa (www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/mem211020031.htm), mesmo que tenha me irritado muito. Nele é dito que quem chamava o Alessandro de Porro não podia ser amigo dele. Como assim? Nunca o Porro me pediu para chamá-lo pelo seu nome, nem reclamou que eu e todos o chamássemos pelo sobrenome, mais curto. Que arrogância desqualificar dezenas de amigos do Porro por achar que o certo seria tratá-lo por Alessandro! Sabia dessa parte do texto sem tê-lo lido, até ontem. Escrevi para o Ali Kamel até que ele me concedeu o direito de ser amigo do… Porro. O elogio fúnebre que reproduzo agora, aqui, escrevi para o Observatório da Imprensa (embora não surja na pesquisa do Google). Se bem me lembro, Alberto Dines o encomendou, enquanto ambos víamos o caixão baixar à cova. Tenho um enorme respeito pelo Dines, meu guru desde sempre. Mas estou magoado com uma decisão que ele tomou: passou o título Meu Amigo Porro para Meu Amigo Alessandro. E substituiu sobrenome pelo nome em todo o corpo do texto. Merecia ser consultado. Impôs essa lenda de que o Porro só pode ser chamado de Alessandro. Que há de feio em Porro para que Dines e Kamel o evitem? Se não gostasse do próprio nome, porque nomeou uma filha de Alessandra Porro, mudando apenas uma letra. Ora, por favor… Mas aí está: Alessandro Porro continua polêmico e controvertido mesmo depois de morto. Saudades dele. Cometeu pecadilhos no jornalismo que o tornaram famoso, com Ché Guevara e com Cazuza, e também muitos acertos que, num balanço final, o absolvem. Tinha um imenso coração. E para todos: para quem o tratasse de Porro, ou Alessandro.
A lembrança de Alessandro Porro me afligia nos últimos dias. Sabia-o mal de saúde e havia meses tentávamos marcar um encontro. Aí ligou Alessandra, uma de suas quatro filhas: “Papai morreu”.
Estava fechando a edição de segunda-feira do Diário do Comércio. Teclei “Alessandro Porro” no Google para coletar dados para uma nota de falecimento. Surgiram alguns textos que ele assinou na coluna Swan, em O Globo. Notícias de mais um livro que publicou, Casamento & Divórcio. Uma citação rancorosa em uma entrevista. Praticamente só. Quanta injustiça!
A Porro (no Brasil só o chamavam de Alessandro, mas no exterior, onde o conheci em 1977, era Mr. Porro) é debitada uma grande besteira jornalística. Não a li, não a vi, não a testemunhei, não conheço quem a confirme, mas apenas quem a repita, como se fosse lenda. É o relato da morte de Ché Guevara, escrito como se ele a tivesse assistido na Bolívia, mas despachada da redação da revista Realidade, na marginal Tietê, em SP. Como um bumerangue, o “furo” de reportagem voltou ao Brasil e o acertou em cheio, ferindo-o para toda a vida.
Nunca ouvi Porro falar de Ché desde que fomos apresentados, em Tel-Aviv. Ele era correspondente de Veja, eu do Estadão. Ele, veterano, eu começando. Frequentávamos o centro de imprensa com os brasileiros de O Globo, Jornal do Brasil e da Folha. Último a chegar, levei algum tempo até descobrir a concorrência mortal que nos unia cinicamente apenas no cafezinho, enquanto líamos comunicados do governo depositados em nossos boxes e ouvíamos o noticiário em inglês ou francês, cada um com seu rádio-gravador de pilha. Porro orgulhava-se de ter o melhor de todos. Em casa, o exibia: era um rádio tipo militar, reforçado para guerras, mas grande demais para carregar.
Porro não me declarou guerra. Até me ajudou com o credenciamento e a escolha do bairro para viver. Mostrou-me restaurantes. Aclimatou-me à vida israelense. Por ser o único semanário entre diários, ele se dava com todos, sem concorrência. Passava as noites de quinta-feira escrevendo; às sextas, comemorava. Lia com sotaque italiano a sua reportagem para os amigos. Depois, shabat, ia beber chá com hortelã no Café Kassit, na rua Dizengoff, onde se encontrava com Ibrahim, o seu amigo palestino. Visitava livrarias. Preparava ele próprio o jantar, quase sempre um espaguete a putanesca. O fim de semana só acabava na segunda-feira à tarde. Tinha um acordo com a mulher, Irene: ele limpava a casa de seu umbigo para cima, incluindo a montanha de louça suja que deixavam acumular, e ela ficava com o chão, o lixo, a roupa e um cão que tinha medo de tudo, até de passear.
Irene era uma negra escultural, descoberta por Porro quando dançarina do Sargentelli, num show brasileiro em Paris. Ela acabaria se tornando conhecida em Israel depois de fotografada com os seios oferecidos numa bandeja para capa de disco. Os árabes a saudavam com salamaleques, quando turistava pelas cidades palestinas da Cisjordânia. Mas alguns religiosos vizinhos de prédio não a queriam, nem ao marido, menos ainda ao cachorro – e uma vez tiraram dele alguns pelos para um antídoto contra os três.
Porro tinha um amigo inseparável em Israel: o norte-americano Barry Riesenberg, casado com Malka, então funcionária da El-Al, a companhia aérea israelense. Os dois escreveram um livro: como a paz em fim de negociações entre egípcios e israelenses seria recebida em várias partes do mundo. Eram páginas brancas, com uma frase só, às vezes com uma única palavra. O motorista de táxi em Nova York exclamaria: “Socorro!”, em iídiche. Yasser Arafat: “Socorro!”, em árabe (acho que também em hebraico). O papa: “Socorro!”, em polonês. Queriam publicá-lo a tempo de pegar a onda de consumo de fim de ano. Estavam seguros de que seria um grande sucesso. Mas a gráfica atrasou muito esperando o texto, que não existia. Pronto o livro, nenhuma editora aceitou distribuí-lo. Os dois autores resolveram protestar bloqueando a porta da principal livraria de Tel-Aviv, a Steimatsky, com um montão de exemplares. Mas um caminhão de lixo os levou todos embora.
No avião com o primeiro-ministro Menachem Beguin e a imprensa internacional, no primeiro voo histórico Tel-Aviv-Cairo, Porro pôs um exemplar do seu livro para circular. De repente, um jornalista gritou em inglês, mostrando-o a todos: “Eu comprei essa merda!”
Porro levantou-se e também berrou: “Ah, foi você!” A discussão continuou porque o único comprador queria seu dinheiro de volta. O avião gargalhava. Beguin pegou o livro e o repassou sem sequer folheá-lo. O coautor Barry acabaria usando o encalhe para calçar a própria cama ou como blocos de anotação.
No Cairo, Porro e um dos seguranças de Beguin se desentenderam à entrada da preciosa sinagoga dos remanescentes judeus do Egito. Foram apartados antes que se engalfinhassem. Barrado, ele aproveitou para ir ao shuk, o mercado. À noite, no Mena House Hotel, lá estava ele, como se nada tivesse acontecido, vestido com uma galabyia, a túnica dos árabes, toda branca. “É de linho”, exultava. Depois desta viagem, ele nunca mais pôde entrar em Israel sem ser levado por policiais para uma revista detalhada, em que até a pasta de dente era espremida. Cortesia do vingativo guarda-costas da comitiva de paz israelense.
O jornalista Porro que eu conheci prezava cada palavra que escrevia. Comparava as traduções para o árabe e o hebraico de acordos assinados em inglês. Atualizava-se obsessivamente sobre o Oriente Médio. Eram livros de história, biografias, ensaios, até a Bíblia, a Torá e o Alcorão. Lia os jornais americanos, italianos e franceses. Vendo-o tão zeloso imaginava que ele estava querendo abrir uma trajetória de trabalhos consistentes que o distanciassem cada vez mais do mito sombrio de Ché Guevara.
No Egito: Porro, obviamente o mais elegante; eu entre ele e Wladimir Weltman
Porro tinha tanto humor quanto pavio curto. Eu o vi explodir dentro de um banco que não aceitou sua credencial de jornalista como documento de identidade. E o vi também se aproximar de um casal de velhinhos, abraçá-los como se os reencontrasse depois de perdê-los na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, fazer um escândalo público, eufórico, para depois se retirar sem dar nenhuma explicação. Ficou possesso quando alugou um carro branco, com motorista, para receber um Civita em Tel-Aviv, e apareceu um azul. Brigou comigo porque eu ia veloz de Beirute a Haifa, atrasado para enviar o artigo do dia, e ameaçou saltar no meio da estrada aberta por tanques, numa aldeia xiita. Não parei. Mas ele ainda me fez voltar uns 50 quilômetros, enfrentando de novo inúmeros check-points do exército israelense e de facções palestinas, ao descobrir que tinha esquecido os óculos no bar do hotel Commodore, nosso ponto de partida, horas antes.
Vivia uma vida desregrada. Fumava sem parar (e morreu aos 73 anos “sem pulmão”, como contou o amigo que o levou para o hospital). Bebia. Emendava dias e noites. Nunca o vi preocupado com dieta ou em fazer ginástica, caminhar. Um dia ele foi transferido de Israel para a Inglaterra. Em Tel-Aviv deixou a exuberante Irene, que passou a namorar um ferido de guerra sem uma perna. (Esse detalhe é importante: ao chegar em casa, ele tirava a “perna” e a arrumava, bem visível, ao lado da televisão). Em Londres deixou um olho, ao bater o rosto no corrimão da escada de um bar. Ganhou uma indenização por acidente paga por um de seus cartões de crédito. Dizia que ia comprar uma casa… Ele sonhava em abrir um restaurante pequeno. Mas não largava o jornalismo. Em todo grande acontecimento no Oriente Médio, lá vinha ele avisando, pelo telex, que estava voltando. Não importava a demorada revista-punitiva no aeroporto — ele não se permitia perder mais um capítulo de guerra e paz entre judeus e árabes palestinos. Sempre aparecia com um malte escocês para abrir com os amigos. Numa dessas viagens ele fez um trabalho memorável. Foi a reportagem da tragédia de Sabra e Shatila, o massacre de palestinos por forças cristãs libanesas, consentido pelo ministro da Defesa israelense na época, general Ariel Sharon. Ele mostrou ser inadmissível que Israel não soubesse o que acontecia nos campos de refugiados.
Porro gostava de casar (e dizia que procurava agora a sétima mulher) e de escrever livros (quantos publicou? não sei… Surpreendeu-me uma vez como autor de um livro sobre a operação Entebe; e ontem, como autor do guia Casamento & Divórcio; sempre, com projetos mirabolantes logo abandonados.) Um dia o reencontrei na plateia de uma palestra que fiz em São Paulo. Combinamos nos ver algum dia. Ele me mandou um e-mail com uma charge em que um nadador judeu abre uma piscina como Moisés, o Mar Vermelho, e uma pergunta sobre o jantar: “Quando?”
Pensei no “quando?” nos últimos dias. Como estaria o Porro? A poucas horas de ir a seu enterro, agora, senti que deveria escrever este testemunho. Será uma injustiça se um jornalista de tantas coberturas importantes e históricas, um homem notável, ficar relegado ao esquecimento ou só ser lembrado por um erro pelo qual pagou a vida toda.