Ao final de quatro dias passados em cenários cinematográficos de assassínios, sequestros, atentados terroristas, tráfico de drogas, prostituição, espionagem, tiroteios e guerra de gangues, o repórter encontrou sobre sua cama no Hotel Langhman um bilhetinho: “Responda, por favor: o que mais o impressionou em Hong Kong?”
O repórter respondeu, sem titubear: A SEGURANÇA!!
Ilha poderosa, como Manhattan; financeira, como Wall Street; turística, como Paris; lotada, como a 25 de Março em São Paulo; com chiques e famosos sem guarda costas nas ruas; Rolls-Royces no trânsito; um vasto Porto Cheiroso (a tradução de Hong Kong); mas… nenhum trombadinha. Nenhum!
Crime, em Hong Kong, é ficção. Só nas telas de cinema. Victoria Harbour, a vista mais espetacular da cidade banhada a néon, foi o cenário de 007 Contra o Homem com a Pistola de Ouro, com grande elenco dizimado por James Bond. No SoHo estão os pontos de traficantes do filme Chungking Express. Do arranha-céu mais alto da cidade e 5º do mundo, Lara Croft salta para Caçadores de Tumbas II. Sequestros e atentados começam já no aeroporto Chek Lap Kok em Hora do Rush II. A prostituição se espalha em O Mundo de Suzie Wong e Adeus Minha Concubina, do cineasta Leslie Cheung, que se atirou do 24º andar do Mandarin Oriental Hotel. O endereço de tiroteios e gangues é a Pottinger Street, escolhida para Infernal Affairs – Infiltrados. E o encontro do Ocidente com o Oriente ficou há 54 anos marcado pela lacrimosa história de amor entre um jornalista americano e uma médica chinesa, A Love Is A Many Splendored Thing, ou Suplício de uma Saudade, filmado em Repulse Bay.
Não é por acaso que muito turista desbrava a ilha com a sensação de que já viu o filme. Hong Kong é cinematográfica. Uma de suas novas atrações, a Avenida das Estrelas, em Tsimshatsui, celebra os 20 mais famosos do cinema chinês, como Jackie Chan e Bruce Lee, numa réplica de 440 metros do Calçadão da Fama, em Hollywood. Legiões de chineses do continente invadem a cena diariamente: são uma cultura milenar se deslumbrando com o mundo livre e altamente tecnológico em seu próprio outro país. O encontro do comunismo com o capitalismo; do aroma de incenso e da flor nacional, a bauhínia, a origem do nome Porto Cheiroso, com a multidão de celular no ouvido ou no olho, sob o fog que persiste apesar do fim do mandato britânico de 99 anos.
Os ingleses partiram em 1º de julho de 1997. Conquistaram Hong Kong, com outras 235 ilhas, em duas Guerras do Ópio (1839-42 e 1856-60) impostas aos chineses, e a devolveram sob condição de que, por 50 anos, até 2047, ela será administrada pela China sob a fórmula “um só país, dois sistemas” – uma ilha de economia de mercado num oceano comunista, refletindo a ambiguidade do Yin e do Yang. Hambúrgueres e carrões são vendidos na China continental, mas o jornal New York Times, não – só em Hong Kong.
Foi mesmo o que previram os hong-kongoneses – ou hong-kongers, em inglês: os negócios precedem a política. Tanto que o debate político desde a reintegração se limitou a questões tipo galinhas e poluição. Um anticlímax para o resto do mundo, que temia um assalto imediato à liberdade individual. Na Região Administrativa Especial da China, agora o prenome oficial de Hong Kong (SAR, na sigla oficial), os jornais estão sob censura invisível, mas a internet é livre, ainda, e as livrarias vendem até mesmo livros anunciando que está chegando o colapso da China, como The Coming Collapse of China, de Gordon Chang.
AS ESTRELAS no Calçadão da Fama são ofuscadas pelo hotel das mil e uma estrelas, The Peninsula, por duas vezes “o melhor do mundo” dos guias Zagat, Travel & Leisure e Condé Nast Traveler. Alguns jornalistas brasileiros, convidados pelo grupo The Leading Hotels of the World, foram recebidos com champanhe na suíte de US$ 5.065 a noite, recentemente ocupada por Tom Cruise.
Avista-se Hong Kong brilhando dourada até da suntuosa banheira. Do balcão, por telescópio. Ou do quarto, deitado na cama. O prédio do Banco da China sobe ao céu com uma série de triângulos que culminam num prisma, mudando inteiramente de cor a cada momento. Toda noite, de 8h às 8h18, 18 dos prédios espetaculares no horizonte exibem A Symphony of Lights, com explosões de roxo, verde, vermelho e amarelo, flashes brancos e fogos de artifício (o chinês gosta tanto do 8, soando como a palavra “prosperidade”, que marcaram suas Olimpíadas para 8/8/2008, com início as 8h). Tradicionais sampans e balsas zarpam com turistas para um espetáculo a mais, as luzes do skyline efervescente refletidas nas águas do Victoria Harbour. Liga-se do celular para um número, e ouve-se a sinfonia que as acompanha. Rádios e um portal na internet também a transmitem.
O chá das 5h no lobby do Peninsula é lendário. A sopa de barbatana de tubarão, no restaurante Spring Moon, alguns andares acima, um requinte. Mas há um programa duvidoso no exuberante bar Félix, no topo do hotel: fazer xixi sobre Hong Kong. Foi ideia do arquiteto Philippe Starck. É a impressão que dá aos homens sem vertigem mirando telhados, ruas e pedestres lá embaixo, embora um vidro sirva de escudo quase invisível e um canalete leve o rio de emoções para o esgoto. As mulheres fazem fila para entrar nos intervalos em que o banheiro fica vazio. Mas não podem “curtir” o programa. Só imaginá-lo.
Todos os pontos de vista são cartões-postais em Hong Kong. Mas qual o mais arrebatador? Eis a questão! Hors-concours é a travessia de balsa entre a ilha de Hong Kong e a península de Kowloon. “Espetacular”, “soberbo” – ouve-se a bordo. O preço é incrivelmente ridículo, como em todo transporte público local: 2,20 dólares hong-kongoneses, menos de R$ 1, para um lugar na primeira classe no segundo andar do Star Ferry, que zarpa a cada 10 minutos, entre 6h30 e 23h30.
A visão do alto dos 373 metros do Victoria Peak, no meio da ilha, também é fantástica. Sobe-se em sete minutos num bondinho existente desde 1888, por R$ 10,30. Lá em cima, uma atração extra: um rickshaw para fotos. Mas, atenção: o chinês sorridente sentado ao lado cobra cada clique. E dá uma quádrupla resposta para tudo e todos, em inglês, levantando e baixando a cabeça: “ok, ok, ok, ok”. A deslumbrante arquitetura dos prédios desponta de qualquer ângulo. Vendedores de relógios e souvenires montam bancas pelas passagens estratégicas. Você os encontrará em todos os pontos turísticos.
YES, YES, YES, YES: Hong Kong vai ter uma Disneylândia a partir de 12 de setembro. Mickey, Pato Donald, Pluto, Margarida e Minie, personagens geralmente encontrados no prato dos chineses, serão mais um teste à ocidentalização da China. Por prudência, o Reino Mágico se submeteu à mágica chinesa do feng shui para atrair harmonia e boa sorte. É famoso e muito fotografado o exemplo de um grande prédio levantado perto de Stanley, um subúrbio ao sul de Hong Kong, que só vendeu todos seus apartamentos depois de reformado segundo o feng (vento) shui (água). Elementar: o construtor tinha esquecido de abrir uma passagem para o dragão. Aquele enorme buraco no meio do prédio resolveu todo problema.
A Disney ainda promete cardápio chinês na sua versão para Hong Kong. Os chineses comem tudo que tenha pernas, exceto móveis. Tudo que nada, menos submarino. E tudo que voa e não seja um avião. Se tem caloria, engolem. Os turistas que não comem nada cortado acima do pescoço e abaixo da cintura se deliciam com “o toque do coração”, ou dim sum. São bolinhos de carne, peixe ou vegetais, refogados ou cozidos no vapor, servidos no café da manhã, almoço, jantar, ceia, brunch e na hora do chá. O jornalista R. W. Apple Jr., do New York Times, encontrou o nirvana do dim sum em Hong Kong. Uma porção de bolinho de ninho de passarinho, rara iguaria, sai por R$ 24. Os populares podem ser comprados na rua e em fast foods. Entre os mais de 10 mil restaurantes da cidade, vale a pena visitar o Jumbo, “o maior flutuante do mundo”, em Aberdeen. Aqui você escolhe o peixe, o camarão e a lagosta vivos em tanques, depois os recebe prontos à mesa. Será que os chineses precisam mesmo de uma Disneylândia?
Hong Kong também é o nirvana do consumo. A última máquina fotográfica digital a US$ 399 no free shop de Guarulhos sai por US$ 299 nas lojas da Nathan Road, antes de qualquer barganha. Há shoppings só de computadores, gadgets, filmadoras, celulares e MP3. As peças com invisíveis defeitos de grifes multinacionais são desovadas por ninharia em bancas montadas nos túneis do metrô. Ternos sob medida ficam prontos em 12 horas. Há mercados só para seda, jade, artesanato, relógios, souvenires e pássaros… O preferido dos turistas é o de Stanley. Algumas lojas fecham às 23 horas.
Hong Kong recende a religião, incenso e superstição. São mais de 600 templos budistas, taoistas e confucionistas – oásis fora do tempo e da agitação dos 6,8 milhões habitantes e mais cerca de 1,5 milhão de turistas/mês. Entra-se no mosteiro Chi Lin, cercado de prédios e trânsito, e todo o burburinho cessa de repente. O lago de lótus em flor, fontes de água, jardins meticulosamente cuidados, monges meditando — e chega-se naturalmente à saída, onde um presente espera o visitante: um mantra gravado. No templo Sik Sik Yuen Wong Tai Sin, ao contrário, reina o fervor das oferendas, o balançar de varetas para prever o futuro e a espessa névoa de incenso diante do altar de Confúcio. Fica-se defumado para o resto do dia. À beira do mar, pela ilha afora, surgem minitemplos.
OS NÚMEROS são a obsessão dos chineses. O celular 133 3333 3333 foi leiloado, recentemente, por US$ 215 mil. O seu comprador não o atendeu quando chamado por jornalistas que queriam entrevistá-lo. É que o 3 dá sorte, embora também represente conflito. O 2, azar, mas pronuncia-se como a palavra “fácil”. O 4, amor, sexo, conhecimento, e também, principalmente, soa como morte. Então, fuja do 24, que forma “morte fácil”. 5: desgraça. 6: dinheiro. 7: comunicação, espiritualidade. 8: prosperidade (a combinação 28 é ótima, “dinheiro fácil”. 9: sucesso no futuro. O 1 não tem um significado específico. Em 174, por exemplo, forma um tsunami: “todos morrendo juntos”. No feng shui os números valem cada um por si, enquanto na numerologia eles são somados e reduzidos a um dígito. Uma distração chinesa é ficar interpretando as placas de carros e os números de casas e edifícios pela ilha. Todos evitam o 4. A Disney até adiou sua estreia na China, marcada originalmente para 2004, porque antecipou que “não seria um ano bom”.
O repórter voltou bastante influenciado pelos números de Hong Kong. E é por isso que ele está esperando dar 18h18 para colocar o ponto final nesta sua reportagem, que tem 18 parágrafos e vai completar o total de 8.888 caracteres, sem contar os espaços, exatamente neste ponto final, bem aqui.