A obra mais celebrada do pintor pernambucano Cícero Dias pode ter seu título, enfim, completado:
Eu Vi O Mundo… Ele Começava No Recife… e Acabou em Paris
Acabou em Paris, no apartamento-ateliê da Rue du Longchamp, 123, com vista para os telhados do Trocadéro, aos 95 anos de uma vida para a arte compartilhada com a nata dos artistas, escritores e compositores europeus e brasileiros do século 20.
O mundo acabou de morte natural, sem doença, ao lado da mulher, filha e dois netos, e interrompeu as memórias Eu Vi O Mundo, até então só pincelado em cores vivas, mas agora brotando em palavras e fotos para um livro depois completado e lançado pela editora Cosac Naify.
Nós Vimos O Mundo, capítulo final de Eu Vi O Mundo, acrescenta o olhar da mulher francesa de Monsieur Dias, Raymonde, que ele conheceu em abril de 1941, na Paris ocupada por tropas nazistas. O Nós no título deve incluir o editor Augusto Massi, que finalizou as memórias inacabadas em uma operação tão bem executada que ficou imperceptível, os vazios costurados com pesquisa e sensibilidade.
Eu Vi Monsieur Dias com 92 anos, bem agasalhado com cachecol, paletó de lã e cobertor nas pernas em seu apartamento inundado de sol da primavera. “Fui a vida toda um friorento”, lembrou em suas memórias. Uma noite, ele encheu a lareira com tanta lenha que a concierge do prédio telefonou para avisar: “Há um incêndio em sua chaminé”. Os bombeiros que vieram apagar o fogo ficaram para jantar. Apesar do frio em dia morno, encontrei-o bem humorado, memória afiada, encantado com a internet, atualizado sobre o Brasil e o mundo — e ainda um bom copo: “Que vamos tomar?”, perguntou sorvendo uma pequena dose de uísque, a garrafa ao alcance da mão, como a inseparável bengala. As paredes do corredor de entrada até a sala onde passava parte do dia sentado o expunham em sua fase abstrata, geométrica, colorida de Pernambuco — o “colorido insolente” detectado pela amiga Rachel de Queiroz.
O amigo Pablo Picasso deixou para C.D., só assim identificado na campainha à entrada do prédio, uma obra invisível, porém onipresente: o próprio apartamento, trés chic. Não fosse aquela natureza-morta… Quando a ganhou, Cícero chegou a reclamar, e por pouco, merci beaucoup, não a devolveu:
— Quero quadro para ver todo o tempo, e não para guardar dentro de um cofre.
Pendurar um Picasso já era um enorme risco, atraía assaltantes. Mas o presente fora dado com uma intenção explícita: “Venda, e compre um lugar para você viver”. Assim se fez: a natureza-morta pagou a entrada da natureza viva dos Dias. Quem procurar ainda achará no apartamento preciosos picassinhos, se é que algo que Ele tenha feito permita um diminutivo. São desenhos em pedras, ossos, madeira, caixa de fósforos e rolha de champanhe como os que fazia, apaixonado, brincando, para a musa e amante Dora Maar, fotógrafa surrealista pintada Adormecida, Na Praia, Chorando, De Unhas Verdes, com O Minotauro e de Perfil Sentada. Estão bem ali no corredor, dentro da maquete de três andares de um museu “ideal”, único vestígio da carreira de arquitetura de Cícero abandonada em 1928, no Rio. E atenção: acompanham-nas outras miniaturas feitas especialmente por Vasarelly, Calder e Léger.
Eu Vi Cícero Dias… o “Cicinho dos canaviais de Jundiá”, no litoral de Pernambuco. Ele me contou que atendeu o telefone para Picasso por 12 anos. Sorri malicioso, e explica: “O homem tinha três, quatro mulheres, e estava sempre metido em tremendas brigas com pelo menos duas delas”. Com zelo desempenhava o papel de protetor da intimidade do amigo. Blindava-o ao sabor das paixões do momento, que variavam como o vento. A amizade rendeu um bônus para o Brasil: a viagem pioneira do célebre painel expressionista Guernica para a Segunda Bienal de São Paulo. “Consegui convencê-lo durante um almoço, mas confesso: saí com indigestão”. Uma revelação lhe vem à lembrança. Mas ele pede: “O que vou contar agora fica por sua conta, e se alguém vier me pedir para confirmar, desmentirei”. Falava sério: em Eu Vi O Mundo, o livro, nem toca no assunto, resumido apenas a um diálogo entre soldados da Gestapo e Picasso.
— Quem fez isso? — perguntou um SS apontando para Guernica, o retrato da destruição da aldeia basca de Guernica pela aviação alemã, em 1937, durante a guerra civil espanhola, a pedido do general Francisco Franco.
— Ué, não foram vocês? — respondeu Picasso.
Eu Vi O Mundo… Ele Começava No Recife, o afresco, de 15 metros de largura por 2,5 metros de altura, foi pintado entre 1926 a 29. Ficou pronto quando Cícero fez 21 anos, e foi sua obra-prima. Nas memórias ele resgata o clima, a ansiedade e a excitação que vivenciava enquanto a produzia: “Toda hora andava pra baixo e pra cima, de Santa Teresa para o bar Nacional. Tudo se mexia na cabeça. Imagens do começo da minha vida. Tantas coisas: mulheres, histórias fantásticas, escada de Jacó, as onze mil virgens. Levaria todas essas imagens para dentro de um grande afresco? Executar um afresco era uma realização material impossível. Impraticável. Pensei então em executar uma grande tela. Decidi colocar tudo num painel, onde o imaginário se espalhasse para todos os lados. O mais representativo seria a realidade onírica. Eu pintaria a própria vida numa superfície de mais de 50 metros. Tudo teria grandes proporções. Corri todo o Rio de Janeiro à procura do material. Mas, por volta dos anos 20, não se encontrava nada disponível na praça: tela, papel, tintas, pincéis. Tudo era difícil.Passei no Teatro Municipal, onde havia aqueles panos de boca, mas fiquei desiludido. Nas casas de tintas da rua São José também não encontrei a solução. Enfim, indicaram-me um depósito de papéis, perto da Central do Brasil, passagem obrigatória de todo mundo devido ao célebre mangue. No depósito achei papéis, confetes, serpentinas, artigos de carnaval, lança-perfume. Encontrei-me diante do proprietário. Largos bigodes, de tamancos, grande lenço de rapé: — O que quer o rapaz? — perguntou. Avistei-me com uma valentona bobina de papel com dois metros de altura. Gritou o bigodudo: — Papel de primeira, papel kraft, venda em grosso para as indústrias. Tudo resolvido. Uma feliz solução. Faltava resolver somente as tintas e a cola, que terminou por ser de peixe. Mãos à obra. Um porre a mais no bar do Palace Hotel.”
Ao fim de cada dia de trabalho, Cícero se sentia um náufrago, encharcado de suor. Pelo painel, começaram a desfilar procissões, danças, sonhos, delírios, Recife, o nordeste brasileiro, fantasias, carros-de-boi, engenhos, bichos, senzalas, até um autorretrato, e tudo sob a luz amarela da caatinga e do canavial. Atribuíram-lhe certa influência de Marc Chagall, então desconhecido no Brasil. Surrealista, rotularam-no. “Surnudista”, inventou o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre. Um “fenômeno inexplicável a desafiar a geografia, a cronologia e a genealogia”, descreveu o jornal francês Le Monde. “Maluco!”, elogiou Mário de Andrade, no Diário Nacional. Em carta a Tarsila do Amaral, ele acrescentaria depois, em 1931: Cícero Dias está fazendo com que “rachassem as paredes da Escola Nacional de Belas Artes”. E, no entanto, a primeira exposição aconteceu num hospício, a Policlínica, na Praia Vermelha, porque nenhuma galeria do Rio se interessava por arte moderna, ou tinha espaço para acomodar obra tão gigantesca, decantada como a maior da América Latina. Literalmente, coisa de louco.
Quando Cícero foi ao hospício pedir espaço para Eu Vi O Mundo, armado com os poderosos amigos Graça Aranha, Di Cavalcanti, Murilo Mendes e Ismael Nery, um dos loucos os saudou, gritando: “Os senhores estão em casa”. Lar doce lar que projetou o painel em sua órbita de sucesso e onde foi apreciado, ou analisado, nos primeiros dias, por psicanalistas internacionais, alguns diretamente ligados a Freud e Jung, reunidos na Policlínica, para um congresso. Havia ali material de sobra para seu autor deitar-se num divã por muitos anos. A exposição seguiu depois para o Recife e Escada, a cidade natal, num mergulho na infância que “iluminou-me o espírito”. Foi difícil obter a bênção do vigário Pedrosa para aquela obra do diabo, “uma afronta a Deus”. Nada, porém, que a imponente presença de Gilberto Freyre não pudesse superar. E ao som de viola, cheiro de folhas de canela espalhadas no chão e foguetes espocando no céu, o povo humilde do sertão viu o mundo que um dos seus via — mundo que mais tarde foi castrado por vândalos em três metros, do lado esquerdo, para livrá-lo das exuberantes e pecaminosas mulheres nuas, com seus sexos realçados. Justificando-se, ele diria: “Não cultivo a penumbra, mas a resplandecência. Nada é obscuro na minha obra”.
Eu Vi O Mundo… Ele Começava (e terminava) No Recife. Não ia além do Brasil. Mas em 1937, Cícero estendeu suas fronteiras e seu horizonte, embarcando para Paris. “O Groix não era um navio como o Andes ou o Alcântara, mas uma expressão francesa em alto-mar. A começar pelo paladar, pela liberdade, um à vontade que não se encontrava em outros vapores. A bordo, logo procurei o comandante. Fui indiscreto apenas para me informar que a rota ou derrota do navio não passaria pelas costas nordestinas (…) Rumávamos pelo Atlântico, fugindo à ditadura de Vargas. Peixes voadores ao lado do vapor. Baleias soprando seus esguichos. Ilhas perdidas. Íamos a caminho de Dacar.” E da Europa sob o nazismo.
Eu Vi Cícero Dias… E ele era um Louvre de artistas amigos, uma biblioteca de escritores com os quais se dava. Pensemos em alguém improvável: Albert Einstein? Sim, estivera com ele, que se vestia de vaqueiro, no bar do Glória, no Rio. Guimarães Rosa? Ficaram presos juntos em Baden-Baden, na Alemanha, em 1941. Villa-Lobos? Ah, ele saía de noite para jogar bilhar; depois fazia a via sacra pelos bares. “Quando o víamos com seu chapelão e um taco na mão, como se fosse a sua bengala, aplaudíamos”. James Joyce? “Conheci-o em circunstâncias dramáticas em Vichy”. Pintou pratos com Braque, Cocteau, Dupont, Françoise Gillot, Lebowitz, Leonor Fini, Man Ray, Miró e Vasarely. Picasso foi companheiro de todos os dias e padrinho de sua filha, Sylvia. Numa foto dos três juntos, escreveu: “A mi filhinha y com um beso”. Marc Chagall? Era sempre convocado para opinar se Guernica deveria ser colorido ou mantido em preto e branco. “Deixa como tu fizeste. Deixa, não toca, deixa como está”. Eu Vi O Mundo é repleto de nomes, links para outras histórias e dimensões: Manuel Bandeira, Mário e Oswald de Andrade, Di, Tarsila, Malfati, Oscar Wilde, Le Corbusier, Lúcio Costa, Klee, Modigliani, Gertrude Stein… e mais, muito mais…
Eu Vi Cícero Dias… E ele protagonizou uma obra histórica que lhe valeu a medalha azulada estelar da Ordem Nacional do Mérito da França, recebida das mãos do então primeiro-ministro Edouard Balladur, em 1998, na Unesco. A obra foi uma chuva de papel com o poema Liberté, de Paul Éluard, disparada por aviões ingleses sobre a Europa ocupada por tropas nazistas, em 1943. “Se os alemães me pegassem, pá!, me matavam” — então ele sorve mais um gole de uísque, empolgado com as lembranças que ainda o deixam orgulhoso. Para começar sua “missão”, ele cortou a primeira e a última palavra-chave escrita na muamba, Liberté. Era um perigo de morte, liberdade. Depois, a salvo, as reescreveria.
O poema ficou guardado dentro de uma mala na prateleira de bagagens vazia de um vagão de trem com refugiados espanhóis e portugueses. Dias sentou-se distante. Se a revistassem, não saberiam a quem pertenceria. Veio a Gestapo. Um soldado lhe pediu o passaporte. Gritou para outro, na frente: “Brasília!” Mas o devolveu. E não revistaram o maleiro. Já na Espanha, um susto: “A polícia quis saber como eu, brasileiro, tinha cruzado a fronteira”. Não havia o que discutir, só lembrar que “o Brasil não está em guerra com a Espanha”. E assim ele chegou à Lisboa, de onde a embaixada britânica despachou o poema direto para o poeta surrealista Roland Penrose, piloto da Royal Air Force, a RAF. Alguns dias depois, caía poesia das nuvens em todo o front europeu.
Eu Vi O Mundo… Ele Começava No Recife e jaz, desde 2003, no cemitério de Montparnasse, em Paris.