O Jardim Pantanal foi inundado de novo no início deste ano de 2016. Faz 37 anos a cena se repete. Mas em 1977, quando fui a uma das enchentes mandado pelo Estadão, encontrei um pouco mais de poesia do que nas notícias que leio agora. As pranchas de navegação, tetos de Kombi desmanchada, eram chamadas de “gôndolas”, como em Veneza. E a rua da enchente principal, Rua da Praia.

Foto: notícias.r7.com
Gôndolas fazem a travessia das mulheres que vão trabalhar e os homens ficam para vigiar as casas A gôndola atraca no cais improvisado diante do Mercadinho Macau para o desembarque dos passageiros. O aposentado Luís Oliveira Silva observa o movimento na Rua da Praia. Ele é um ilhéu nato: migrou de Macau, ilha no Rio Grande do Norte, para o Jardim Pantanal, na zona leste de São Paulo, onde passa ilhado a temporada de enchentes.
A retirante pioneira de Macau foi Maria de Oliveira Lemos, irmã de Luís. Ela chegou ao Jardim Pantanal em 1991, prosperou e hoje mora num bairro próximo, “enxuto”, convenientemente chamado de Bom Sucesso. O exemplo atraiu muitos outros macauenses. Só de sua família vieram 21 pessoas.
“Cuidado com o tubarão!”, grita o alagoano Expedito Nunes da Silva para os passageiros de duas gôndolas navegando pela Rua Pinha do Brejo, a Rua da Praia.
Cada viagem custa R$ 0,50. O serviço começa às 5 horas, ainda escuro, e termina no breu, às 20 horas. O movimento maior é o de empregadas que trabalham em casas de bairros distantes, também chamados de Jardim, como o Pantanal. Já garantem a volta, deixando-a paga. Raros são os homens que usam as gôndolas.
“Se saímos de casa, carregam tudo”, diz Carioca, no cais da Associação dos Moradores do Jardim Pantanal. Daqui ele vigia sua casa, que está metade submersa do outro lado da rua. O apelido denota que Aroldo Luís de Souza é “acostumado à praia”. Mas ele lembra uma diferença: “No Rio, a gente vai para a praia; aqui, a gente acorda na água”.
Dia de sol no Jardim Pantanal, Carioca pôs o boné com o apelo eleitoral da campanha do prefeito Celso Pitta: “Não deixe São Paulo parar.” Desempregado, 63 anos, ele se refugiou no “porto” da Associação dos Moradores, onde dorme com outros hóspedes atento à luz de seu quarto que ficou acesa. Seriam só dez braçadas, se quisesse nadar. “Mas a água dá coceira.” Foi só uma hora de chuva, há uma semana. Num instante, a várzea do Rio Tietê ficou coberta por uma onda de 1 metro. Carioca mediu: “Em seis dias, a água baixou apenas 3 centímetros.” Quando secar, serão dias de lama. Terá início a temporada de desinfecção. As casas passarão por um banho de cloro. Diques de cimento em portas crescerão contra a próxima e inevitável enchente. Ninguém fala em mudança.
Pescaria – “Um terreno num lugar seco pode custar mais de R$ 10 mil”, explica o pedreiro alagoano Pedro Gabriel da Silva. Na várzea do Jardim Pantanal não custava nada no tempo da invasão, em 1990. E tudo foi ocupado, apesar de ilegal, apesar do perigo. Surgiram assim 15 bairros com cerca de 10 mil famílias. “Nem porco vive num lugar desses”, diz Gabriel. Mas ele está hoje com mulher, cinco filhos, dois netos e dois cachorros no teto de sua terceira casa levantada em três anos.
Da laje da casa de Gabriel, Wagner da Luz, de 10 anos, lança a linha para pescar cascudos no quintal do desempregado José Lima, outro retirante do Rio Grande do Norte. O irmão menor toma conta da lata com o primeiro peixinho do dia. Com escadas, pedaços de madeira e pedras vão se armando pontes e ligações entre as casas.

Foto: catracalivre.com.br
A mulher de José Lima partiu de gôndola às 5 horas. Por ironia, trabalha numa fábrica de chuveiros. Por ironia ainda maior, o marido é um especialista em vedação, mas está desempregado. Orgulhoso, ele mostra os diques que ampliou nas portas da sala e da cozinha. A água bate nos diques em ondas quando as barcas passam na Rua da Praia.
Sereia – A filha Cileide da Silva Araújo, de 10 anos, brinca com uma sereia na cama de casal. “É a Daniela”, apresenta. Apertada, a sereia canta. O irmão Rafael, de 4 anos, brinca de casinha. Quando se cansam, vêem desenhos na TV. A cama virou playground. Outra irmã, Elisângela, de 15 anos, cuida da casa.
Os canais da Veneza varzeana cheiram a esgoto. São águas do poluído Tietê acrescidas de lixo local e animais mortos, agora estancadas. As gôndolas de madeira fazem água por aberturas no casco, mas filtram a sujeira. As balsas de carcaça de carros roubados, sobra de desmanches, vão rente à água, sem nenhuma proteção. A área em que vivem os ilhéus de Macau conta com três barcos em operação. No Pantanal-1 trafegam as balsas.
Os remadores entram na água para manobras difíceis, ou quando encalham. Não parecem importar-se com o cheiro, a cor e a ameaça de leptospirose, uma infecção provocada principalmente pela urina de ratos. Para poupar R$ 0,50 da passagem, o pernambucano Josildo Ferreira de Souza sai de casa só de calção, vestindo-se para o trabalho num bar. Põe a roupa seca sem banhar-se.
Muita criança sai para caçar sapinhos em meio à imundície. Num dos melhores pontos de pesca, boiava na quinta-feira o plástico que cobriu sob o sol, até chegar o rabecão, o corpo de Oswaldo Almeida Silva, de 27 anos, afogado na primeira vaga da enchente, na tarde do sábado, quando foi comprar cigarro.
O pedreiro Francisco Rodrigues da Fonseca, atualmente gondoleiro, suspendeu todos os móveis de sua casa. A geladeira está sobre uma mesa, erguida com tijolos. O fogão ganhou uma paliçada. Da casa exala cheiro de mofo. A gôndola navega sobre cercas, passa sobre o alicerce de uma nova casa sendo levantada, cruza dois cachorrinhos numa casinha suspensa, ao nível dos vasos de um jardim, e ganha “o mar”, na Rua da Praia.

Foto: Joel Silva/Folhapress
A próxima gôndola de Francisco Rodrigues “será muito melhor”. A atual já estava pronta no domingo, nas primeiras horas da enchente. Em Mossoró, no Rio Grande do Norte, onde nasceu, trabalhou tirando areia de rio. Daí “ter experiência”, gaba-se. Ele transporta dois passageiros em cada viagem. Por ele, levaria três.
Mais frágil ainda é a gôndola do menino Gilberto Mendes, de 14 anos. Parece de brinquedo. Mesmo assim, ela levou uma equipe de TV, balançando ameaçadoramente a qualquer movimento brusco.
O balseiro Djalma Batista da Silva, baiano de Itagibá, opera do outro lado do Jardim Pantanal, navegando sobre um campo de futebol e entre a fiaparia das gambiarras que roubam energia elétrica para a maioria das casas. Com sua carcaça de perua, ele tirou 70 pessoas da enchente, ainda debaixo do temporal.
É o único que não pede dinheiro. Aceita o que lhe dão. “Com tudo o que aconteceu, agradeço a Deus por ter onde morar”, diz. E pergunta: “Não fosse aqui, aonde iríamos morar?” O Mercadinho Macau é um porto entre a Rua Cachoeira do Itaguaçabu, que começa no seco, e a Associação dos Moradores do Jardim Pantanal, no final da Rua da Praia. Passou uma semana acessível apenas a gôndolas, ou a banhistas animados por um conhaque. A porta está protegida por um dique de 80 centímetros. O dono, Luís Oliveira Silva, é um veterano. “Em 1995, fiquei 17 dias dentro da água”, conta. “E mais três dias, em 1996.” Um dos pioneiros macauenses, Oliveira Silva lembra que o nome Pantanal foi escolhido porque “havia aqui muita mata medonha de tabu”, erva que dá em águas rasas e paradas, com raízes presas na lama. Por dez anos, ele teve vários empregos em São Paulo até “receber uns trocados” e aposentar-se. Abriu a venda “para ir vivendo”. Tornou-se hoje algo como “cônsul” da ilha de Macau na várzea do Tietê.
O que atrai os ilhéus de Macau não é a vida no Jardim Pantanal, mas o sonho de repetir a trajetória de sucesso da pioneira Maria de Oliveira Lemos e do irmão Luís, que a seguiu. Ele explica: “Macau, terra do sal, usa hoje mais máquinas do que empregados.” Só não tem vindo mais macauenses “por falta de dinheiro”.
Da parte de sua mulher, Maria do Socorro, já migraram seis irmãs. Uma filha, Geisa, de 28 anos, casou- se com um eletricista também do Rio Grande do Norte.
Estão com um bebê, morando nos fundos do mercadinho, porque “a água chegou ao colchão do berço”.
Uma freguesa chega ao “consulado” de Macau e é cearense, Dinha Norberto. Em compensação, o marido Marco Antônio, que ela conheceu no Jardim Pantanal, pertence à comunidade. O “cônsul” não sabe quantos seriam. “Uns cem?”, pergunta. Olhando em volta, brinca: “Só a Xuxa, a cadelinha de 9 anos, não é macauense.” No bairro, há cerca de 2,5 mil famílias.