Noite brasileira na Galiza
(desconvidado: Gilberto Gil)
Santiago de Compostela, “mágico” 25/7/2004 — A mágica paulocoelhiana piscou no Correo Gallego on-line às 21 horas do Brasil: “Se obró el milagro del Apóstol, y la lluvia cesó poco antes del comienzo del espectáculo pirotécnico”, em homenagem ao Dia Nacional de Galiza .
A “milagrosa” estiagem permitiu a “apoteosis de fuego, agua y luz” na Plaza de Obradoiro, acompanhada por 15 mil pessoas diante da Catedral romana-gótica-barroca de 933 anos, o terceiro destino dos peregrinos cristãos no mundo, depois de Roma e Jerusalém. A concha-símbolo do Caminho de Santiago surgiu no céu, projetada a laser verde, azul e vermelho, ao som de música celta.
O cantor e então ministro da Cultura Gilberto Gil não compareceu à festa. No que fez muito bem, depois de ter irritado os galegos insistindo em falar castelhano durante seu show, seis dias antes, 19 de julho. Foi ainda além: recriminou o nacionalismo galego! “Temos que ser mais internacionais”, ensinou aos (ex?) fãs. “Además estamos en tierras de España!”, acrescentou ao povo separatista que estuda espanhol como língua estrangeira, obteve o domínio exclusivo “cat” (de Cataluña) na Internet, e não o nacional “es” (España), e já tentou até formar uma seleção galega de futebol. Os romanos o chamavam de gallaeci, ou celta, há quase três mil anos. É visível na paisagem ou nas descobertas arqueológicas: a Galiza está mais para a Irlanda e a Escócia do que para Madri e Barcelona. E foi assim que a “noche brasileira” do 25 de julho ficou a cargo de Toquinho e Maria Creuza.
Galega é como o presidente Lula chama a sua mulher, Marisa Letícia da Silva. Também atende por Galego o primeiro-cão, um labrador presenteado pelo governador da Bahia, Jaques Wagner. O pai de Fidel Castro era galego, como o ditador generalíssimo Francisco Franco, que mergulhou a Espanha numa “Longa Noite de Pedra”, fascista, entre 1939 e 75. No Aurélio, galego também significa estrangeiro, com alguns usos depreciativos. Os galegos dizem que sua Galiza foi “o primeiro país da Europa”. E que em sua ponta ocidental, extremo europeu, onde cresceu o povoado de Finisterra, abre-se a porta para o fim do mundo, ou para “El más Allá”, ou a Costa da Morte, onde o sol se põe naufragando no oceano Atlântico.
São 2,8 milhões de orgulhosos nacionalistas galegos na Comunidade Autônoma da Espanha, formada pelas quatro províncias de La Coruña, Lugo, Ourense e Pontevedra – e brinca-se que haveria ainda uma quinta, Buenos Aires, na Argentina, que já ostentou o título de “a maior cidade galega” do mundo. O português nasceu na Galiza (e não Galicia, região entre o leste da Ucrânia e o sul da Polônia), quando o norte de Portugal e o noroeste da Espanha faziam parte do reino asturiano-leonês, no século XII. Falava-se então o que hoje se descreve como galaico-português. Dom Afonso Henriques emancipou o seu futuro reino ao derrotar tropas de Leon e de mouros, em 1139. A separação, o tempo e influências específicas diferenciaram o idioma comum. Mas galegos, portugueses e brasileiros se entendem muito bem. O que mais chama a atenção é o X no lugar de J ou G: Xeito (jeito), Xeneral, Belxica, Xornal, Xilberto Xil, 25 de Xullo…
O hino galego está colorido de verde em suas três primeiras estrofes: “¿Que din os rumorosos/na costa verdecente,/ao raio transparente/do prácido luar?//¿Que din as altas copas/de escuro arume arpado/co seu ben compasado/monótono fungar?//Do teu verdor cinguido/e de benignos astros,/confín dos verdes castros/e valeroso chan,/non des a esquecemento/da inxuria o rudo encono;/desperta do teu sono/fogar de Breogán.” A Galiza é a “España Verde”. Luxuriante. Úmida: como chove! Os caminhos de Santiago para as montanhas ao leste, ou para as chairas (planícies) e rias (estuários) ao centro-norte, são marcados por pequenos e remotos pueblos e suas casas de pedra com balcões, muitos minifúndios produtivos, lindas estradinhas e trilhas, praias de areia, refúgios para o pernoite de peregrinos, bosques de pinho, eucalipto e castanheiras, o ar carregado de misticismo e lendas à la Paulo Coelho, agora nome de rua em Santiago, e um sem fim de tira-gostos locais para infindos tipos de vinhos.
Este cenário tem sido mais explorado pelos próprios espanhóis, 70% dos turistas, e os portugueses vizinhos, mas bem poucos brasileiros, atraídos mais a ler com o pé o Diário de um Mago, em 1,1 milhões de passos pelo Caminho Francês, ou visitar Madri, Barcelona e Ibiza. Uma pena, pois tudo na Galiza é tão perto, tão acessível, tão gostoso…
Por exemplo, Pontevedra. Está a meia hora de carro de Santiago de Compostela. Dizem que Cristóvão Colombo nasceu aqui. Dizem que aqui também foi construído um de seus navios, o Santa Maria, lançado ao mar com o nome de La Gallega. Outro dos mitos ganhou uma praça, a bela Praça Teucro. Era o filho de Telamon e Hermione, e meio-irmão de Ajax, que partiu sem destino rumo à oeste depois de se tornar herói na Guerra de Troia. E acabou fundando a cidade, ainda hoje quase toda de granito, o centro histórico com a reputação de ser o mais bem conservado da Espanha. Só para ver a tradicional feirinha se armar lá toda manhã já vale o passeio. As igrejas de Santa Maria la Mayor e La Peregrina, ambas do século XVI, são decoradas com conchas – a prova, para o peregrino, desde a Idade Média, de que chegou à cidade santa do apóstolo Tiago. Hoje, bastam 100 quilômetros a pé ou 200 km em bicicleta para fazer jus a um diploma em latim, o Compostela.
As lendas, regadas a vinho e tapas, ficam ainda mais saborosas e verossímeis. Acredita-se até na que se conta sobre o abade San Ero, do mosteiro de Amenteira, pertinho de Pontevedra, em Combarro. Passeando, há 900 anos, ele parou em êxtase com os trinados e chilreios dos passarinhos. E perdeu-se em devaneios. Só voltou a si e ao lar 300 anos depois, certo de que só tinham se passado alguns minutinhos. Não é à toa que a mascote da Galiza seja “la meiga”, a maga com poderes de bruxa mas também de vidente e curandeiro. Você pode até não acreditar, pero que las hay, las hay! Ou como se diz em galego: “no me creo en las meigas prou haber hai-nas”. Elas estão expostas nas lojas para turistas, nos carrinhos de ambulantes e nas tabernas pelos caminhos dos peregrinos.
Cuidado com as meigas-chuchonas, que chupam o sangue de criancinhas. Ou a Lobismuller, a meiga nascida na Sexta-feira Santa. Elas são muitas, e cada uma guarda um poder distinto. Diante delas só existe uma defesa, o Desconxuro, e é bom decorá-lo antes de chegar à Galiza: “¡San Silvestre, Meigas fora!” O âmbar é um amuleto contra venenos ou encantamentos. Atrás de portas, para proteção à casa, pendura-se uma ferradura de cavalo, ou espora de galo e rabo de lobo.
A mãe de todas as lendas cerca o próprio São Tiago, às vezes identificado como o Maior; outras, o Menor, e também o Justo. Filho de Zebedeu e Salomé, ele pescava no lago Genesaret com o irmão João Evangelista quando Jesus o chamou. Foi um dos primeiros discípulos. Em sua Epístola, pontificou: “A fé sem obras está morta”. Como a palavra vazia, sem prática: a um faminto, nomes num cardápio não bastam; dar-lhe comida é o que resolve. Quando os apóstolos saíram pelo mundo a pregar os evangelhos, a Santiago coube a Gallaecia, na Hispania. Navegou pelo Mediterrâneo e bordeou a costa de Portugal. Pode ter desembarcado em Tarragona, de onde caminhou por uma via romana até a atual La Coruña.
Um dia, a Virgem Maria apareceu a São Tiago (ilustração ao lado) sobre um pilar em Caesaraugusta – hoje uma coluna venerada na Basílica de Nuestra Señora del Pilar, em Saragoza, capital do Aragon. O milagre da aparição deu o sinal para ele voltar rápido à Jerusalém. Maria queria reunir os apóstolos para, então, morrer. Mas era o ano 42 ou 44 d.C., quando o rei da Judea, Herodes Agripa I, perseguia cristãos, a maioria já dispersa pela Fenícia, Antioquia e Chipre, para prendê-los, depois matá-los. E o Apóstolo Tiago, um dos primeiros presos, foi degolado. Seu corpo teria sido levado por seus discípulos de volta para Galiza, num estranho barco de pedra. E lá o enterraram em Iria Flavia, hoje Padrón.
Passaram-se 800 anos até surgir o ermitão Paio. Ele viu luzes sobre o bosque de Libredón. Ou, por outra versão, numa noite estrelada, ele seguiu um brilho na mata. Seria uma estrela que pousou? Um Ovni? Não, não, na verdade ele fora atraído por uma irresistível linha de energia sob a Via Láctea. Ou nada disso: só fogo-fátuo, tão comum em cemitérios… O bispo galego Teodomiro fez o que pregava o Apóstolo Tiago: agiu sem se perder em palavras e mais palavras. Mandou escavar o local. Eis então que aflorou um esqueleto com a cabeça debaixo do braço, em meio a vestígios de uma capela da era romana. A arqueologia só comprova mesmo que Compostela (para alguns, cemitério; para outros, campo estrelado) vinha de uma longa tradição de enterros: dali foram retiradas tumbas cristãs, suevas (povo germânico que ocupou a Galiza entre 411 e 585), visigóticas e muçulmanas. O rei de Astúrias, Alfonso II, o Casto, pôs, literalmente, uma pedra gigantesca sobre todas as dúvidas e teorias: ergueu a imponente Catedral de Santiago de Compostela.
A peregrinação podia ressuscitar o corpo e restaurar o espírito dos pioneiros peregrinos, mas não os livrava do forte cheiro de suor que exalavam dentro da Catedral. Foi então que um “gênio” na Idade Média inventou um antídoto já politicamente correto, e atração até hoje: o botafumeiro. É um gigantesco incensório de prata, que voa sobre as cabeças da multidão de um lado ao outro da nave, puxado por cordas, como um sino pesado, por quatro padres em cada ponta. Vai deixando nuvens de fumaça, que baixam como um desodorante coletivo. Consta que caiu lá do alto duas vezes. Hoje, só o balançam em ocasiões especiais. Mas, também, agora, os peregrinos costumam comemorar o fim do caminho, primeiro, com um bom banho.
São 200 mil peregrinos por ano. Multiplicaram-se depois que o papa João Paulo II visitou Compostela, em 1982, e O Diário de um Mago tornou-se um best-seller mundial, em 1987. Pela “popularização” do Caminho de Santiago, Paulo Coelho virou rua na cidade. E ele foi lá inaugurá-la, em julho. Agradecido, lembrou versos do poeta sevilhano Antonio Machado: “Caminhante, não há caminho; faz-se caminho ao andar”. (Caminante, no hay camino,/se hace camino al andar./Todo pasa y todo queda,/pero lo nuestro es pasar,/pasar haciendo caminos,/caminos sobre la mar.)
Entra-se na Catedral pelo Pórtico da Glória. Na verdade, para-se. Não dá para cruzá-lo sem admirar seu triplo arco esculpido em 20 anos por Mestre Mateo. Pronto em 1188, sofreu exposto ao sol, ao relento e ao gesso de uma cópia encomendada pelo governo inglês, em 1866. Bem no centro, um Cristo de tamanho desproporcional mostra as mãos e os pés feridos, rodeado por São João, São Mateus, São Lucas e São Marcos. Oito anjos seguram instrumentos musicais. Os guias misturam línguas com as descrições de cada um dos inúmeros detalhes para os turistas. E nessa Babel há um gesto comum: todos tocam a palma da mão no autorretrato do artista, ao pé de uma coluna. É para absorver o seu talento. Comigo não funcionou.
Que não se pense em Compostela apenas como um grande mosteiro rescindindo ao incenso do botafumeiro. Nada disso: as noites fervem por suas vielas. Bob Dylan e David Bowie não a visitaram para rezar. Aqui vivem 30 mil universitários. De certa forma, lembra Ouro Preto, em Minas. Nela há um belo parque, um centro comercial que ostenta até uma filial do famoso El Corte Inglês, bons hotéis e ótimos restaurantes. E dela partem outros caminhos de Santiago para destinos pagãos Galiza afora, todos bem próximos, para pequenos passeios de meio-dia.
Na marina de Baiona está ancorada uma réplica da caravela Pinta, no lugar em que a original, com Cristovão Colombo no comando, jogou âncora em 1º de março de 1493, depois de descobrir a América. É um museu flutuante, com cenário que inclui até o boneco de um índio brasileiro, no porão. A placidez da baía em volta esconde o campo de batalha que ardeu durante séculos. Muitos povos tentaram possuir a linda Baiona. E sua história oficial orgulhosamente registra a repulsa ao pirata inglês Francis Drake, posto a singrar em fuga por Don Diego de Acuña, o conde de Gondomar.
Por uma galinha viva, em Cambados, São Benito deleta verrugas. Qualquer verruga. Só não faz a biópsia. Mas não se iluda: a maioria dos turistas não vem até aqui atrás de uma plástica milagrosa. São atraídos por uma preciosa herança dos monges de Cluny do século XII, o Alba-Riño, o “branco do Reno” – o vinho branco galego Albariño. O produzido em Portugal, com as mesmas uvas, tem o mesmo nome, Alvarinho. Nesta região de Rias Baixas, em que o litoral é bastante recortado e o mar, raso, paisagem de mangues mais comparada aos fiordes escandinavos, cada casa tem uma parreira. E todas enviam sua colheita para cerca de 200 bodegas. A maior delas, a Martin Códax, centraliza a produção de 285 pequenos fornecedores, e fica aberta à visitação e à degustação gratuitas. A cada tonel uma grata, gratíssima surpresa, de aroma intenso. Tim-tim. E aproveite: os bafômetros estão há mais de 10 mil quilômetros. Ah! São Benito, o exterminador de verrugas, também aceita cordeiro ou ovos em troca de seu trabalho – a negociação deve ser feita diretamente na igreja da praça de Fefiñans, que até mesmo os sem-verruga precisam conhecer.
O último relatório mundial de consumo de drogas das Nações Unidas conferiu o título de “capital europeia da cocaína” à cidadezinha de Miranda de Ebro, na rota Jacobea por onde pode ter passado o padroeiro da Espanha, São Tiago, ao chegar de Jerusalém. Já não é mais Galiza, porém perto, na Comunidade Autônoma de Castilla y León. Algum engano, provavelmente. Pelas contas do jornal inglês The Guardian, cada mil dos seus 40 mil habitantes aspiraram 97 carreiras por dia para conquistar a liderança de concorrentes fortes como St. Moritz, Londres, Zurique, Madri e Ibiza. O maior suspeito de provocar o erro é uma indústria química que despeja seus resíduos no rio Ebro, do qual se colheu a água para o teste. O prefeito exige um desmentido oficial, mas o povo, que gosta mesmo de vinho, brinca de procurar os cocainômanos vorazes da pacata cidadezinha. De qualquer forma, os espanhóis são classificados como os maiores usuários de cocaína do mundo, 3% de sua população entre 15 e 64 anos, seguidos de 2,4% dos ingleses e de 2,8% dos americanos.
O contraste entre o espiritual e o mundano se acentua à mesa, farta em frutos do mar. O pecado da gula contagia turistas e peregrinos. Há uma iguaria local servida só em alguns restaurantes da Galiza em toda a Espanha, o percebes. É um molusco que cresce grudado às pedras da costa entre Malpica e Cabo Ortegal, batido pelas ondas do Atlântico e do mar Cantábrico. Arrisca-se a vida para pegá-los. A pesca tem seus especialistas no remoto povoado de San Andrés de Teixido, o padroeiro dos pescadores. Aqui um quilo de percebes sai por 15 dólares, mas se ele viajar até La Coruña, já custará 60. Fresco, fervido e resfriado, o básico, já dá para se deliciar, sorvendo um Albariño.

Foto: http://www.effeta.es
Mero, robalo, salmão, vieiras, ostras, polvo… Para os turistas gastrônomos, a Galiza é a Capital do Polvo. Peça o pulpo a la galega, servido com azeite de oliva e pimentão, ou pulpo a feira, misturado à páprica, ótimo aperitivo. Come-se até o empanzinamento. E quando acaba o longo almoço, começa o ritual do jantar, tapas à mesa, vinho aberto. A Galiza também se tornou famosa como a Capital das Empanadas. Mas, sem nenhuma dúvida, ainda pode ser chamada de a Capital da Tarta de Santiago, a torta de amêndoas enfeitada com a cruz do apóstolo. O dono de um aconchegante hotel rural, com só nove quartos supercharmosos, La Fervenza, perto de Lugo, preparou no forno a lenha um capon, um galo castrado até 12 semanas de idade. Delicioso, mas muitíssimo gorduroso. A digestão levou dois dias.
Em Lugo, Paulo Coelho parou sua caminhada, iniciada em Saint Jean Pied de Port, na França, e pegou um ônibus para Santiago. Ele mesmo o revelou ao inaugurar a sua rua. Desde o século XII, os peregrinos recuperam o fôlego aqui. Assim emprestaram fôlego à economia da cidade, voltada para o setor de serviços. O turismo hoje é cultivado. A sua muralha romana de 2.140 metros, com dez portas, construída entre 260 e 310, é a maior atração. Ela está inteira, como a de Jerusalém. Só lhe falta um Muro das Lamentações, para onde com certeza afluiriam peregrinos e turistas ao final da estadia na Galiza, já com suspiros de saudades.