Com o toque de um botão, liga-se o computador, penetra-se na supervia mundial de informação, cozinha-se no micro-ondas, envia-se fax, acionam-se vídeos, sistema de som, filmadora e controle remoto, acerta-se o relógio digital, consultam-se a agenda e secretária eletrônicas, desperta-se o telefone celular e movem-se os vidros elétricos do carro.
Só um problema: -Qual botão?
Apertando o botão errado, apaga-se a tela do computador, afunda-se no cyberspace, piscam números e luzes nos relógios dos eletrodomésticos, suprimem-se texto, voz e imagem gravados, para-se no acostamento da supervia eletrônica e sai-se frustrado, irritado, a autoestima machucada e com medo de tentar de novo – sintomas de tecnofobia, uma irreprimível aversão a novidades tecnológicas, fenômeno da era digital.
Alguns tecnofóbicos suam e sentem palpitações quando pressionados a apertar o botão de uma nova tecnologia. “São pessoas que não conseguem acompanhar a velocidade das inovações” – explica o psicólogo Larry Rosen, autor de uma pesquisa que revelou que só a metade dos universitários nos Estados Unidos fica tranquila interagindo com um computador. Outro 1/10 já está com a “síndrome de 12:00” – a hora que pisca nos relógios nunca acertados, às vezes vedados com esparadrapos.
O ex-secretário de Cultura de São Paulo, Sabato Magaldi, não é um tecnofóbico. Ri muito quando apontado como suspeito portador de graves sintomas. E explica que apenas não precisa “desse inferno”, o computador: “Acaba a luz, perde-se tudo; aperta o botão errado, tem que chamar um técnico”. Com a antiga máquina de escrever semiportátil, uma Erika, ele fica com a impressão de “armar melhor o texto”. Escreve rápido. E se surge algum problema, consegue resolver sozinho. Orgulha-se de ser “do tempo do linotipista”.
“Acho as máquinas boas enquanto não enguiçam”, pondera Sabato Magaldi. “Se enguiçam, dá vontade de quebrá-las. Minha reação é de violência: não tenho vocação para consertar, não sei mexer”. Ele até já quis atirar um carro no rio Pinheiros. Outra impossibilidade são as agendas eletrônicas. “Nem pensar! Tenho cadernos com 200 mil telefones, as folhas caindo de todos os lados…” Então, ele pergunta: “Como vou copiar tudo isso?” E também, para quê? “Não gosto de ver as coisas no computador. Gosto mesmo é de papel branco, batido a máquina”.
“Tecnofobia é um sinal dos nossos tempos”, diz Dan Gookin, que escreveu o guia “Windows for Dummies” – ou “Windows para Idiotas”, abrandado na edição brasileira com o título de “Windows para Leigos”. É a “fobia dos anos 90”, confirma a indústria de computadores Dell, no Texas, com o resultado de uma pesquisa feita no final de 1994: “Mais da metade dos americanos está com tecnofobia em diferentes graus. Cerca de 1/4 de todos os adultos nunca conseguiu programar um VCR ou a memória do rádio do carro. Muitos ainda lamentam a morte da máquina de escrever”.
Nem as crianças americanas escapam à epidemia virtual, embora já nasçam programadas com um antídoto contra tecnofobia. Um software introduzido em 1994 pela gigante Microsoft pretendia ser uma ferramenta que as ensinasse a escrever, brincando com desenhos e sons. Mas o ambiente Windows, desenvolvido para facilitar o convívio com os computadores, veio alterado, com estranhos e confusos ícones. Até um mini-gênio brasileiro da computação que vive em Bethesda, Maryland, onde faz baby sitter para computadores de adultos, acertando-lhes os acentos e cedilhas, foi derrotado pelo “programa infantil”. E muitos pais reclamaram de um preocupante sintoma tecnófobo nos filhos: uma súbita perda da autoestima.
“O que o mundo conhece e entende, mesmo, é o telefone” – admite um gerente de produtos na indústria Hewlett-Packard, Shafhi Rava.
As novidades eletrônicas são como cães: sabem quando alguém tem medo. Na casa dos jornalistas Mônica Falcone e Marco Antônio Rezende, ex-diretor da revista VIP/Exame, elas parecem estar à espreita, rosnando. Só Lucas, o filho de cinco anos, se dispõe a enfrentá-las armado de manuais, embora ainda não saiba ler. Foi ele quem descobriu que o vidro do Ômega novíssimo, elétrico, não funcionava porque estava quebrado.
“Nosso pânico com tecnologia é tamanho”, explica Rezende, “que a gente aceitou a ideia de abrir primeiro a porta toda vez que precisava baixar o vidro para pedir gasolina em postos. Já tínhamos renunciado. Rodamos um mês com ar condicionado ligado, os vidros fechados”. Mônica já estava também conformada: “Quando os aparelhos se revoltam, desisto”. A rebelião tende a se alastrar. Já aderiram, total ou parcialmente, ao fax, ao micro-ondas, ao computador 486, ao telefone de duas linhas e dez ramais, à máquina de café e a um sistema múltiplo de vídeo.
“Durante anos a gente gravou filmes da TV com péssima qualidade até Mônica descobrir, num manual com 12 a 14 línguas, inclusive o finlandês, que tinha lá o tracking, e que para sintonizar melhor era preciso fazer o tracking” – diz Rezende. (OK, o repórter também não sabe o que seria tracking num VCR; já num míssil disparado, é a trajetória.) O sofisticado computador virou uma simples máquina de escrever. O telefone perdeu fantásticos recursos e uma generosa memória porque foi desligado da tomada. Se o plugam, pisca como árvore de Natal. Usa-se o micro-ondas só para esquentar comida. “Tenho uma filosofia sobre isso”, revela Mônica. “Acho que todos esses aparelhos custam mais do que rendem em termos de felicidade. Dão mais trabalho do que prazer. Então, pego de cada um o que preciso”. Por “amor materno”, porém, ela está abrindo uma exceção. Começou a aprender jogos eletrônicos, que “detesta”, porque Lucas “adora” e quer jogá-los “de qualquer jeito”.
O psicólogo Donald Norman, que escreveu “The Psychology of Everyday Things”, um exame dos objetos usados todos os dias, concorda que “é muito difícil programar um VCR”. E reclama: “Temos mais o que fazer em nossas vidas do que gastar uma hora aprendendo a usar um forno micro-ondas”. Ele está trabalhando na fábrica de computadores Apple, mais “amigáveis” dos desbravadores do cyberspace analfabetos em informática do que os primos da família DOS e Windows. “As pessoas temem com toda razão a nova tecnologia”, ele diz. “É complexa, quem a faz não sabe nada sobre quem a vai usar”. Alguns vídeos já aceitam comandos orais. O próximo controle remoto será como um mouse de computador. Mas sobram os relógios para programar. E o temor do desconhecido. Para cada pai e mãe intimidados, há sempre um Lucas que se sente à vontade num teclado. As crianças parecem ter chips no sangue.
“Meu sobrinho de 12 anos desmonta um computador”, espanta-se o publicitário Cláudio Carilo. “Sabe tudo”. E lamenta: “Minha geração (a de 1953) foi atropelada. Na juventude, aprendi mecânica. Mexe-se aqui, e há uma reação ali. De eletrônica não sei nada.” Mas ele não se julga um
tecnofóbico. E por um simples motivo: “Nem chego perto para ter medo”.
O futurólogo Alvin Toffler resumiu a evolução do poder em seu último livro, “Power Shift”. Primeiro, o poder derivou da força bruta. Depois, da riqueza. E agora chegou a Idade da Informação. O chefe do Departamento de Filosofia da Unicamp, Osvaldo Giacóia, está confrontando o novo poder tecnológico numa realidade não mais virtual: a filha, aprendendo computação no primeiro grau da Escola Nossa Senhora do Rosário, acaba de lhe pedir um computador. Ele próprio, em Berlim, recentemente, constatou que o acesso aos arquivos das bibliotecas só se abre aos que sabem computar, “pressupondo-se que sejam todos”. Então, ele se pergunta: “Em que medida estamos preparados para uma confrontação com a civilização tecnológica? Em que medida compreendemos o que é a essência da técnica?”
O professor Giacóia lembra o filósofo Heidegger: “Ele afirma que não podemos incorrer na ingenuidade de pensar instrumentalmente a técnica, como se exercêssemos um controle autárquico sobre o emprego da tecnologia. O computador que minha filha está pedindo me leva a refletir: não somos nós que controlamos os processos tecnológicos, mas estamos envolvidos numa civilização tecnológica. É um movimento planetário que tende a ligar as pessoas nos mais diferentes pontos no espaço e nos mais diferentes momentos no tempo”.
Digito, logo existo. O professor Giacóia se impressiona menos com as façanhas do correio eletrônico e da captura instantânea de megabytes de informações em universidades mundo afora do que “com o tipo de relacionamento que se instala entre nós e o produto do nosso próprio pensamento”. Como se o pensamento se tornasse disponível e manipulável para apropriação técnica.
A tecnofobia está produzindo um “mercado da ignorância”. Um dos últimos anúncios da IBM para a TV americana nem mostra um computador, embora feito para vendê-los. O foco é concentrado no atendimento aos consumidores. Aparece um comediante garantindo que eles serão atendidos no primeiro toque do telefone, sem ficar na linha esperando. E convida: ligue, se tiver um problema; nem se preocupe em ler o manual. “A administração da ignorância do consumidor tornou-se mais importante do que a inovação”, comenta um pesquisador do Massachusetts Institute of Technology (MIT), Michael Schrage. Acabou-se o tempo das inovações programadas para intimidar. A última moda na linha de montagem das famosas marcas multinacionais obedece a uma regra simples: “Produza para idiotas, e todos comprarão”.
O Centro de Estudos e Pesquisas do Procon também investe no “mercado da ignorância”. Mas com outra arma: um guia de compras. Até agora foram lançados 12 folhetos “traduzindo” os manuais de fornos micro-ondas, fogões, lava-louças, aspiradores de pó, liquidificadores, refrigeradores, chuveiros elétricos, lavadoras de roupa, máquinas de costura, TVs, ferros de passar e até bronzeadores. Quem for à 46a Feira de Utilidades
Domésticas (UD) poderá pegá-los, grátis, nos portões de entrada. Um dia virão outros para tele copiadoras, celulares, computadores, vídeos e sistemas de som.
“Nos manuais há termos que não dizem nada aos consumidores”, explica a diretora do Centro de Estudos do Procon, Vera Marta Junqueira, professora de Psicologia do Consumidor na FMU. “Nós os ajudamos com subsídios que podem orientar a compra”. Ela própria não está imune à tecnofobia. E até admite que sofreu um pequeno surto ao sentar-se diante de um computador. “Tão difícil acertar aquela flechinha!” Hoje ela ainda o subutiliza. Mas lembra, esperançosa: “A fome e a sede põem a lebre a caminho”.
Os espectadores americanos gargalhavam quando, em “Um Ladrão Bem Trapalhão”, Woody Allen respondia que “sim”, sabia operar um computador, durante uma entrevista para concorrer a um emprego. A questão era engraçada em 1969. Mas ele ainda acrescentaria uma pequena mentira: “Minha tia tem um”. Hoje devem tê-los todas as tias nos Estados Unidos. No ensaio “Parem o trem da tecnologia que quero descer”, Steve Harvey, do Los Angeles Times, comenta: “Pergunto-me se a cena faria alguém rir hoje em dia. Eu talvez choraria”.