As mortes de Rabin e da paz

Rabin (seta à esq.) e seu assassino com o clarão de um dos dois disparos.

Rabin (seta à esq.) e seu assassino com o clarão de um dos dois disparos.

O governo israelense acreditava ter encontrado o caminho para a paz com o seu primeiro primeiro-ministro nascido em Israel, Yitzhak Rabin. E a liderança palestina, sob o comando de Yasser Arafat, comungava a mesma esperança. Havia negociações abertas desde os acordos de Oslo, vontade política real de superar quaisquer obstáculos, e de ir em frente. Estados Unidos, Europa e ONU apoiavam os esforços de ambos os lados.

As dissidências israelenses e palestinas protestavam e atiravam bombas e pedras para impedir o avanço nas negociações. Contra essa ruidosa oposição, os movimentos pró-paz marcaram uma manifestação para demonstrar sua força majoritária: sábado à noite, ao final do shabath de 4 de novembro de 1995, na Praça dos Reis de Israel, em Tel-Aviv.

O premiê Ytzhak Rabin, Nobel da Paz em 1994, pensou em não comparecer. Temia um embaraço político se tivesse que enfrentar uma praça vazia. Acabou indo. E se viu diante de uma multidão impressionante calculada em 100 mil pessoas, muito para um país pequeno como Israel. Tanta gente, os serviços de segurança entraram em prontidão contra atentado palestino, especialmente algum homem-bomba em meio a tanta gente.

“Permitam-me dizer, estou emocionado” – falou Rabin, 73 anos, dirigindo-se à praça totalmente tomada. “Gostaria de agradecer um a um por ter vindo aqui se posicionar contra a violência e pela paz”. Continuou, à la John Lennon: “Este governo decidiu dar uma chance à paz — paz que poderá resolver grande parte dos problemas de Israel”.

AssassinatoEntão, Rabin lembrou que, por 27 anos nas Forças de Defesa de Israel, “lutei enquanto não havia prospectos para a paz”. Agora, pela primeira vez, ele via “grandes prospectos”. Ainda comentou que “a violência está minando os verdadeiros fundamentos da democracia israelense; temos que condená-la, denunciá-la e isolá-la. Este não é o nosso caminho”.

Filho de um religioso iemenita, o estudante de Direito Yigal Amir surpreendeu-se ao encontrar o premiê Rabin num casamento, tão desprotegido, ao alcance de… um assassino. Prometeu-se que não deixaria passar outra oportunidade igual.

Amir armou-se. Não escondeu dos amigos que queria matar Rabin, que acusava de entregar aos árabes a Terra Prometida que ele próprio, quando general, ajudou a conquistar na Guerra dos Seis Dias, em 1967. Serviços secretos que o monitoravam produziram alguns poucos parágrafos com observações, esquecidas numa pasta arquivada. E o mais grave: alguns rabinos proclamavam que seria aceitável, por uma interpretação talmúdica, eliminar Rabin, sob a acusação de que ele estava “traindo o povo judeu”.

Ao fim da apoteose com a Canção da Paz, puxada por Rabin com o coro da praça dos Reis de Israel, Amir já circulava despercebido entre os seguranças e autoridades no cortejo que foi a pé até onde estavam estacionados os carros das autoridades, abaixo do palanque armado diante da Prefeitura de Tel-Aviv, no mesmo nível da avenida Ibn Gvrol. Aproximou-se. Esticou o braço. Quase não se ouviram os disparos. Dois tiros, nas costas, à queima-roupa. Foi há 20 anos. Desde então, Israel perdeu-se no caminho da paz.

Aloni e Rabin cantando a pazenterro

Rabin cantando a paz; depois, ele e ela enterrados.

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Amir, o assassino confesso, sorridente.

PRAÇA YITZHAK RABIN, TEL-AVIV – Ao se reunirem de novo os israelenses, uma semana depois, o primeiro-ministro que ouviram cantar a Canção da Paz é agora o nome desta ex-praça Reis de Israel, o estacionamento devassado em que ele foi assassinado está impenetrável coalhado de soldados e policiais, atiradores de elite postam-se no alto dos prédios, helicópteros militares pairam no ar, o primeiro-ministro interino Shimon Peres fica a distância cercado de guarda-costas, e a viúva Leah Rabin lhes diz: “Agora a maioria silenciosa não permanecerá mais em silêncio”.

Um dos 100 a 150 mil israelenses na praça Yitzhak Rabin é o brasileiro dono de uma banca de jornais em Ramat-Aviv, Abraão, 64 anos: “Agora Israel é um país como todos os outros”, ele lamenta, com sotaque. “Este país foi criado para ser um exemplo, e os judeus já começaram a se matar”. Como muitos na impressionante multidão, ele voltou à praça. Esteve no dia do assassinato, justamente para romper o silêncio da maioria silenciosa, como agora pediu a viúva Rabin, reclamando da campanha da direita, não contestada, contra o processo de paz.

“Deixaram-no sozinho na torre”, continuou a viúva Rabin para a silenciosa multidão. “Calou-se diante de insultos e do ódio terrível”. Nos cartazes levantados, um apelo: “Basta de violência”. Ao fundo do palanque, uma foto gigante de Rabin, e a frase marcante pronunciada pelo presidente Bill Clinton na Casa Branca e no cemitério do Monte Herzl, em Jerusalém: “Shalom haver”, ou “Até logo, amigo”. O serviço secreto tinha recomendado ao primeiro-ministro interino Shimon Peres não ir ao comício do adeus. Ele também era visado no atentado e foi advertido de que será “a próxima vítima”. Ficou sentado ao fundo do palanque, mas Leah o alcançou:

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A viúva Leah: “deixaram Rabin sozinho”.

“Apelo a você, Shimon Peres, a continuar a levar a nação israelense no caminho e no espírito da paz de Yitzhak”. Já se diz que a viúva Rabin deverá entrar para a política apenas para vingar os que elevaram o tom da campanha contra o processo de paz a um nível em que um assassinato poderia ocorrer. Mas Peres já o tinha prometido antes, à tarde, durante um memorial do Partido Trabalhista. Vai executar a herança de paz que também ajudou a construir, e prometeu golpear “os discípulos do diabo”, os ultra religiosos que sancionaram o primeiro assassinato político cometido por um judeu contra outro na história de Israel, numa tentativa de paralisar a devolução da Cisjordânia, que prossegue hoje, com a transferência de Jenin à Autoridade Palestina.

A três mil convidados, entre eles os embaixadores egípcio, jordaniano e norte-americano, Shimon Peres identificou “os discípulos do diabo” como “muita gente beirando a insanidade que pensa ser mensageiro de Deus”.

A praça Yitzhak Rabin de Tel-Aviv, tradicional ponto de manifestantes em Israel, estava repleta de soldados e policiais desde às 16 horas. A multidão foi ocupando-a aos poucos. Muitos escoteiros sentaram-se rodeando dezenas de velas acesas. Havia pela praça muitas ilhas iguais. Em algumas, cantava-se a Canção da Paz, noutras escreviam-se poemas ou cartas em memória do primeiro-ministro assassinado. Uma judia francesa, entrevista por canais de TV franceses, pedia a pena de morte para o assassino confesso, Yigal Amir. E a justificava: “Se há países que condenam a morte traficantes de drogas, por que não dar uma lição exemplar a quem matou um líder político?”

Num fim de semana os israelenses se reuniram pela paz, noutro pelo preço da paz pago pelo primeiro-ministro Rabin, e entraram pela noite de domingo ouvindo seus cantores mais famosos cantando tristes canções tradicionais.

A Canção da Paz fúnebre

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4/11/1995: a noite de paz que mudou Israel.

Jovem, sorridente: Amir.

Amir: tiros em nome de Deus

 JERUSALÉM – Um jovem testamento desabrochou do assassinato do primeiro-ministro Yitzhak Rabin em Israel. “Escolherás a vida”, o principal mandamento colhido no Antigo Testamento (Deuteronômio 30:19), brotou da multifacetada juventude israelense entre lágrimas, velas e canções de paz.

A face jovem do sorridente assassino confesso Yigal Amir, 25 anos, foi trocada pela da plangente Noa Ben-Artzi Philosof, 17 anos, neta do primeiro-ministro Rabin, que comoveu o mundo ao despertar no funeral “para (e não de) um pesadelo” compartilhado por quase todo Israel, ao vivo e aos soluços, via satélite.

Era jovem a maioria na fila de 1 milhão formada diante do caixão no Parlamento e na vigília embaixo do dúplex da viúva Leah e do vizinho e sucessor Shimon Peres, apontado como “a próxima vítima” por fanáticos de grupelhos de aiatolás sionistas. Foram os jovens que ficaram de plantão acendendo velas e rabiscando últimas homenagens na praça dos Reis de Israel até a sétima noite de luto em que a rebatizaram de praça Rabin.

Jovem, chorando: filha de Rabin.

Noa, neta de Rabin, acordando para um pesadelo .

“A reação dos jovens é a única coisa que me dá esperança nessa bagunça” – desabafou o rabino Naamah Kelman, diretor do Departamento de Educação do Movimento Israelense para o Judaísmo Progressivo.

“Como se os jovens tenham crescido em uma semana” – conclui uma assistente social de Jerusalém, Hilorie Baer. A geração que vestiu máscaras de gás sob a chuva de mísseis iraquianos na Guerra do Golfo, em 1991, e perdeu amigos dentro de ônibus implodidos por camicases palestinos ou em combates na Cisjordânia e no Sul do Líbano agora vive um impacto equivalente ao da guerra do Vietnã na juventude americana.

“Algo lhes foi roubado”, diz Baer. “Estão tentando agora tampar o vazio”. E o enxerto disponível é o processo de paz. Yitzhak Rabin se tornou um avô de 73 anos que tiraria o espectro da guerra do serviço militar obrigatário de Israel, um herói de guerras e um mártir da paz.

Uma multidão permanente circunda a cova ainda só coberta de flores no Monte Herzl. A face da dor é jovem. O estacionamento do cemitério lota com ônibus especiais de estudantes. Excursões de turistas fazem aqui mais uma escala obrigatória na bíblica Jerusalém. Sentado diante do túmulo vizinho de Golda Meir, uma fundadora de Israel enterrada em 1978, o jovem Tomer Cohen, 17 anos, tenta escrever “para entender o que aconteceu”. Mas não consegue. “Estou confuso: não sei mais nada”, diz.

Tomer cresceu aprendendo que um dos inimigos de Israel era o líder da Organização de Libertação da Palestina (OLP), Yasser Arafat, agora prestando uma visita de pêsames a viúva Leah Rabin, impensável para o israelense Benjamin Netanyahu, líder do Likud, acusado de alimentar o clima político de ódio que culminou com os dois tiros disparados pelo estudante Yigal Amir. O processo de paz lhe ensinou que “há bons e maus árabes”. E com o assassinato restou uma amarga lição: “Tem judeu ruim, também”.

Na folha de papel que Tomer pretende deixar entre centenas de outras cartas na sepultura de Rabin duas linhas já estão escritas: “Lutou e morreu pela paz – e, então, devemos-lhe respeito”. Há horas ele não consegue acrescentar nem mais uma palavra, tamanha a confusão que o bloqueia. “Eu era contra o que Rabin representava, mas agora acho que estava errado”, explica. “Pensava: este é o meu país, não quero perdê-lo, e como não somos tão grandes como o Brasil não devemos dar territórios em troca da paz”.

Tomer não é como religiosos sionistas que crêem que a Cisjordânia seja a terra prometida por Deus a Abraão, enterrado na gruta de Machpela, em Hebron. Ele não quer devolver as colinas do Golan à Síria para que os sírios não voltem a disparar lá do alto contra as cidades da Galileia. Quer fronteiras seguras, embora os mísseis Scuds disparados do Iraque ao centro de Tel-Aviv tenham abalado o conceito militar de profundidade estratégica. Perdido, ele se desculpa beirando o choro: “Só queria que o povo de Israel fosse feliz… Agora está tudo muito triste”.6578518099078490488no

*

Israel está contra Israel, mas agora respeita um frágil cessar-fogo verbal proclamado com o assassinato do primeiro-ministro Yitzhak Rabin. A esquerda israelense sofre problemas morais com a ocupação da Cisjordânia. Desde o sétimo dia da Guerra dos Seis Dias, em 1967, não consegue responder a uma questão básica: como controlar mais de 1 milhão de árabes, e manter-se uma democracia? Já a direita israelense teme a insegurança da desocupação. Afinal, os árabes não prometiam afundar o país no Mediterrâneo? E para aterrorizá-la ainda mais, a OLP continua regida por uma Carta Nacional que prega a destruição de Israel, a ser revogada só dois meses depois das eleições palestinas, marcadas para janeiro. O centro político é uma pequena ilha de solitários. A nova pergunta que se fazem os israelenses: -E agora?

“Fui para a cama num lugar e acordei num país diferente”, espantou-se o poeta e cantor Ehud Manor. Mas o ex-extremista Yossi Klein Halevi, autor do livro Memórias de um Extremista Judeu, lançado recentemente nos Estados Unidos, acha familiar a fúria estática e o falso amor que animaram Yigal Amir a “salvar” Israel matando o primeiro-ministro Yitzhak Rabin. Entre os radicais de direita ele reencontra a noção de que os judeus, povo sem amigos, devem viver dentro de uma fortaleza, avistando no horizonte o perigo de um novo holocausto nazista. Como se Israel, hoje, não fosse uma superpotência militar. A lista de chefes de estado reunidos no Monte Herzl revelou um novo sentido para as primeiras palavras do livro Velha-Nova Terra escrito pelo fundador do sionismo, Theodor Herzl: “Se o quiserem, isso não será um sonho”.

Heróis com a primeira eleição da direita em Israel, em 1977, os colonos que se implantaram na Cisjordânia, então rebatizada com os nomes bíblicos de Judea e Samaria, são agora estigmatizados como estranhos. “O governo não se preocupou em explicar-lhes as novas doutrinas que guiariam o país”, escreveu Klein na revista Time. Ficaram com a antiga promessa do tempo do primeiro-ministro Menachem Beguin: “não haverá outra Yamit”, a colônia que florescia no deserto do Sinai mas foi trocada pela paz com o Egito. O aperto de mão de Yitzhak Rabin e Yasser Arafat abalou como um furacão os alicerces da colonização nas terras prometidas por Deus. A efervescência religiosa criou um Baruch Goldstein, o judeu americano que matou 29 fiéis muçulmanos que rezavam na mesquita de Hebron, em 1994.

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“O assassino de Rabin é um garoto inocente que levou sua tradição muito a sério”, disse o rabino e filósofo David Hartman: Yigal Amir “ouviu a linguagem do ódio e dogmatismo que encoraja a destruição repetida por seus próprios rabinos”. Foi um assassinato abençoado por aiatolás judeus.

No túmulo de Rabin:

“Eu era contra o governo, pois acho que não devemos dar de

A retirada israelense de Yamit, a "nascida do mar", no Sinai

A retirada israelense de Yamit, a “nascida do mar”, no Sinai

volta qualquer pedacinho da Terra Santa”, diz Yael Raziel, 17 anos, uma religiosa chocada com a campanha antirreligiosa desencadeada depois do assassinato em Israel. Alguns motoristas de táxi estão rejeitando passageiros ultraortodoxos. Uma mulher reclamou ter ouvido no centro comercial de Jerusalém: “Matou o primeiro-ministro, agora veio fazer comprinhas, não é?”

Os ultraortodoxos visitam o túmulo de Rabin durante a noite, para evitar confrontos políticos. “Estou aqui apesar de ser totalmente contra as concessões do governo aos palestinos… Vim por respeito: o assassinato feriu a honra do povo, a bíblia e o nome de Deus”, diz Danny, 19 anos. Ele se consola com uma esperança: “Do mal virá o bem”. Ouvindo-o, um amigo acrescenta: “No fundo, todos falamos a mesma coisa – mas entre discutir e atirar vai uma enorme diferença”. Um terceiro jovem, trancinhas cobrindo as orelhas, todo de preto, comenta: “Vim para acender uma vela e recitar salmos, porque assim me sinto melhor”. E Uri Malchi, funéreo, profetiza: “O barco furou, faz muita água e vamos todos afundar”.

A soldada Tali, 19 anos, diz que é ”chocante” o que está acontecendo. Um pouco envergonhada, confessa: “A parte mais difícil de aceitar é a de que um judeu cometeu o crime… Terrível dizer isso, mas seria mais compreensível se um de nossos inimigos enviasse o assassino. Assusta muito que um judeu mate outro em nome de uma religião”. Mesmo observada por um oficial que a repreende com um olhar porque está falando com um repórter, ela continua: “Gostava de Rabin, como muitos no exército que não querem mais uma guerra. A minha geração se ilude achando que todos amam todos. Não consigo entender como um jovem teve a coragem de matar a nossa esperança” – que, para ela, ainda sobrevive: “Agora vai assumir Shimon Peres. O assassino não conseguiu matar o processo de paz”.

O imigrante Gerard Planas, 18 anos, chegou há dois meses da Venezuela e já está velando o primeiro-ministro assassinado de seu novo país. Ele espera que o impacto da tragédia consolide a paz e una os israelenses, contagiando ainda os sírios com a mesma febre pacífica que já atacou egípcios, jordanianos e palestinos. “Uma homenagem a Rabin”, ele sonha em voz alta no jardim do cemitério Herzl. As lembranças de Caracas não são das melhores, mesmo confrontadas com a violência que lhe deu boas vindas em Jerusalém: “Aqui tem liberdade, pode-se andar na rua sem medo, dá para estudar e trabalhar, e não se vive como animal”. E repete, com ódio não dissimulado: “Não gosto de exército, mas logo vou ter que serví-lo. Mesmo aí existe uma grande diferença: trata-se o soldado venezuelano como um animal; aqui, ensinam-lhe a ser um homem”. O garoto Rahamim Levi, 16 anos, lembra: “O inimigo não é mais só árabe, mas o povo em volta daqui”.

images O jovem testamento inscrito na Praça Rabin: “Ele teve a visão da paz, e vamos continuar procurando-a”, assina Etzion. “Esta canção não pode ser silenciada”, atribuída ao próprio Rabin ao prometer seguir em frente com o processo de paz apesar dos pavios humanos bloqueando o caminho com cadáveres e escombros. “Ao invés de atirar, conversar”, escreveu Talman, sete anos. “Tolerância!” A frase que chegou às camisetas, assinada pelo presidente americano Bill Clinton: Shalom Haver, ou Adeus Amigo. Frase assinada por um grupo de estudantes: “Nosso coração está partido, mas mantemos a esperança”. A nova ordem no adesivo nos carros: “Chega de violência”. Uma constatação: “Estamos órfãos”. Conclusão do primeiro-ministro interino Shimon Peres: “O otimismo é jovem”. Entre esquerda e direita, religiosos e seculares, judeus e árabes, Antigo e Novo Testamento, surgiram os jovens.

Sai Rabin, entra Arafat Noel.

Belém, véspera de Natal.

Belém, véspera de Natal: sem mais “presente da paz”.

BELÉM, Cisjordânia – A geração intifada dos palestinos largou as pedras da rebelião contra a ocupação israelense e está na praça da Manjedoura enfeitando a cidade natal de Jesus Cristo para a chegada triunfal de papai-noel Yasser Arafat. Será o primeiro Natal livre de Belém em 28 anos. Não há clima para velar quem tornou possível o presente de paz, Yitzhak Rabin.

“O problema é dos israelenses”, diz um shebab (jovem) que se apresenta como Ismail, 17 anos, veterano de prisões em Israel.

Os shebabs transitam sem mais temer os soldados israelenses patrulhando a praça da Manjedoura, entre a Basílica da Natividade e uma mesquita de onde ecoa o canto do muezim convocando os fiéis muçulmanos às orações. Estão excitados com o presente, e o futuro. Penduram bandeirinhas palestinas como se a festa fosse de São João. E pôsteres de Arafat. Crianças brincam de explodir traques dentro de um ralo.

“Esta é a primeira vez que os israelenses se matam”, lembra o comerciante Ramzi Nassar, 24 anos. “Rabin passou a maior parte da vida tentando nos matar, e nós realmente o odiamos… Agora que começávamos a gostar dele, foi assassinado”. Outro shebab, Assam, acrescenta: “Não estamos de luto; estamos chocados”.

Ismail prefere “não achar nada” sobre o assassinato de Rabin. Enquanto fala atrai os jovens tomando o sol de inverno em um café na Praça da Manjedoura, já que não tem trabalho como 40% dos 35 mil palestinos de Belém. Com público ele parece fantasiar um pouco os cinco anos passados numa prisão perto de Beersheba, no deserto do Neguev. Mas é definitivo: “Amizade com israelenses só no futuro; agora, ainda não dá, com a opressão ainda não cicatrizada”. Ele mostra no braço a marca de uma bala que passou de raspão. E não se deixa fotografar por ainda temer retaliações: “O exército de Israel só começará a sair dia 3… e completará a retirada em 15 dias, uma semana antes do Natal”.

Um menino no grupo em volta de Ismail lembra de Rabin, não do Nobel da Paz, mas do herói de guerra israelense quando ministro da Defesa em 1987, ao estalar a intifada: “Ele dizia que a solução era quebrar os nossos ossos”. A voz da prudência sobrepõe-se à das recriminações. “Cuidado: Shimon Peres pode não ter o respaldo militar para continuar a retirada da Cisjordânia.” O prefeito de Belém e ministro de Turismo e Arqueologia da Autoridade Palestina, Elias Freij, advertiu: “O assassinato deve incentivar mais atentados ao fanatismo de ambos os lados”. E o jornal palestino Al Hayat al-Jadida anunciou: “A ameaça de uma guerra civil paira sobre Israel”

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TEL-AVIV – O complô para liquidar a paz israelo-palestina, com um sexto suspeito preso ontem, matou o primeiro-ministro Yitzhak Rabin mas errou o alvo. A primeira pesquisa de opinião pública feita depois do assassinato revela que agora 3/4 dos israelenses apoiam o processo de paz, quando antes estavam divididos quase pela metade: 51% a favor e 47% contra. Se eleições fossem convocadas hoje, o trabalhista Shimon Peres esmagaria os partidos de direita.

A pesquisa foi encomendada pelo jornal israelense Yediot Aharonot e revelada ontem: 74% entre 501 entrevistados na terça e quarta-feira são favoráveis à continuação do processo de paz, enquanto apenas 23% o rejeitam. A margem de erro é de mais ou menos 4%. Outra pesquisa, feita em Jerusalém, tradicional bastião da direita, mostra que Shimon Peres tomou a dianteira do seu principal opositor, o likudnik Bibi (Benjamin) Netanyahu, por 48% a 26%.

TIROS PELA CULATRA – A reviravolta na opinião pública israelense indica que o complô contra a paz pode ter disparado contra as próprias bases. Um único assassino confesso, Yigal Amir, assumiu a responsabilidade pelo atentado, repartindo-a somente com Deus, que ele disse tê-lo guiado, mas a polícia já prendeu outros cinco suspeitos de cumplicidade e desenterrou um arsenal que “daria orgulho” a qualquer organização terrorista.

O sexto suspeito foi levado a um tribunal de Tel-Aviv, ontem, para ser mantido preso enquanto prosseguem as investigações. Como todos outros, Michael Epstein é um judeu religioso de 23 anos que considera pecado passível de punição mortal a devolução da Terra Prometida por Deus aos judeus bíblicos, agora conhecida como Cisjordânia e capturada por Israel durante a Guerra dos Seis Dias, em 1967.

O nome de Epstein surgiu no interrogatório de Yigal Amir e de seu irmão Hagai, que foi quem preparou as balas dundum, explosivas, disparadas contra Rabin há uma semana, durante um comício de paz. Ele sabia dos planos do atentado, e se dele não participou, pelo menos não o impediu nem o denunciou à polícia.

Yigal Amir confessou duas tentativas anteriores de se aproximar do premiê Rabin, este ano, com a intenção de matá-lo e aniquilar o acordo com Yasser Arafat, concluído em 1993. Mas a polícia revelou ontem, sem dar detalhes, que houve, na verdade, três tentativas. Não ficou claro se as aproximações frustradas de Yigal estão incluídas. Quando a imprensa procurou esclarecer, ficou ainda mais confusa. O ministro da Polícia, Moshe Shahal, afirmou, então, que “parece ter havido mais do que três atentados à vida do primeiro-ministro”. Nenhuma fonte ousou detalhar um segredo do Shin Bet.

Arafat visita a viúva Rabin

Arafat visita a viúva Rabin, afastado do enterro por segurança.

Arafat em Tel-Aviv. Sem disfarce.pict6

TEL-AVIV – A primeira visita do líder palestino Yasser Arafat a Israel foi de pêsames à viúva Leah Rabin, secreta, noturna, organizada por um agente aposentado do serviço secreto Shin Bet e nem um pouco parecida à do rei da Jordânia e a do presidente egípcio Hosni Mubarak à Jerusalém, públicas, com pompa e audiências com o primeiro-ministro interino Shimon Peres.

   Ausente notável no enterro do “amigo pessoal” Yitzhak Rabin, porque sua presença era considerada por Israel um problema a mais de segurança durante a recepção a chefes de estado e representantes de cerca de 100 países de uma só vez, e de repente, Yasser Arafat sentiu ser “um dever” não deixar de vir apresentar condolências pessoalmente a viúva Leah. O mesmo fez o príncipe herdeiro da Jordânia, que não pode deixar o reino quando o rei Hussein viaja. Mas ele foi bastante visível ao chegar, na terça-feira.

   Os israelenses só souberam da visita de Arafat depois que ele já voava de volta para Gaza. Mas nada mais parece surpreender Israel, veterano do imprevisível desde a sua criação, há 47 anos. A visita que seria histórica se limitou a uma entre outras notícias do dia nos jornais e rádios.

   Voaram com o presidente da OLP e da Autoridade Palestina a Tel-Aviv apenas Abu Mazem e Abu Ala, dois assessores. No apartamento dúplex da viúva Leah Rabin, em Ramat-Aviv, um bairro ao Norte onde também vive a família Shimon Peres, Arafat sentou-se numa poltrona sem estar com a cabeça coberta pela tradicional kefiah, e declarou: “Perdeu-se um grande homem que fez a paz dos bravos com a gente”.

   A viúva Rabin garantiu a Arafat que tanto ela quanto os israelenses “querem continuar o processo de paz”. Ele agradeceu por ela manter “a marcha na estrada da paz”. E ainda ouviu um elogio: “Meu marido o considerava um parceiro no processo de paz”. Por trás da primeira visita conhecida de Arafat a Israel (ele diz ter entrado disfarçado em Jerusalém depois da Guerra dos Seis Dias, em 1967) estaria o mesmo agente do serviço secreto que iniciou em 1986 os contatos com a OLP, Yossi Ginnosar, a pedido do então primeiro-ministro Shimon Peres.

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O Brasil sempre

aparece em

Israel. Até na cena

do assassinato

de Rabin.

TEL-AVIV – Com a carteira de imprensa brasileira falsa um israelense está vivendo certo momento de fama, embora anônimo. Fotógrafo amador, com a carteira que diz ter conseguido no Brasil, ele se promoveu a profissional e chegou a meio metro do primeiro-ministro Yitzhak Rabin, no comício da paz em que ele foi assassinado.

À Rádio das Forças Armadas o fotógrafo amador apresentou-se como “Ziv”, nome tão comum em Israel quando José no Brasil. Para provar que não estava blefando, ele mostrou fotos em que aparece bem próximo de Rabin e outros políticos no palanque do comício da paz.

Como condição para dar a entrevista desmoralizante aos serviços de segurança, a voz de “Ziv” foi alterada. Afinal, descoberto, ele pode ser preso por uso de documento falso, brasileiro por acaso. Ele contou: “Quando cheguei à manifestação, para dar meu apoio ao processo de paz, perguntei a um policial por onde a imprensa subia ao palanque”. Orientado, sem ter que se identificar, ele alcançou a entrada. Então, ficou esperando passar alguma equipe de TV.

“Segui um cinegrafista por entre alguns guardas”, acrescentou Ziv. “Um deles me chamou de volta, perguntando-me quem eu era. Mostrei-lhe a carteira de imprensa. Ele nem a leu, só perguntou se eu estava armado e vistoriou minha sacola, sem mover nenhuma das lentes”.

O “fotógrafo brasileiro” Ziv clicou o primeiro-ministro Rabin enquanto ele cantava Shir Lashalom, a Canção da Paz, a letra depois retirada de seu bolso num papel banhado em sangue. Não fosse o assassino confesso Yigal Amir, poderia ter sido “Ziv”. E o Brasil estaria envolvido num crime político que chocou o mundo.

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Para lamentar: o ódio entre irmãos.

product_thumbnailJERUSALÉM – O “ódio entre irmãos” é o que lamentam os judeus no Muro das Lamentações. A tradição aponta o “ódio fraterno” como causa da destruição do Segundo Templo no ano 70. Nas frestas das pedras bizantinas que colorem Jerusalém, restos sagrados do Templo, os judeus enxertam papéis pedindo “shalom”, ou paz. O assassínio do primeiro-ministro Yitzhak Rabin ressuscita para os israelenses o medo do destruidor “ódio entre irmos”.

Rabin foi a segunda vítima. A primeira chocou Israel em 1983. Era também um comício pela paz, conclamado em plena guerra israelense no Líbano pelo movimento Paz Agora, Shalom Archav. Durante a manifestação, rolou uma granada. Ao explodir, ela matou Emil Grunzweig, um rapaz que ficou na memória dos serviços de segurança como um recorrente pesadelo. A neta de Rabin, no enterro, ontem, disse que “acordou para o pesadelo”: judeus matando judeus.

“Nada, absolutamente nada, é um golpe maior para a vida da nação judaica do que a violência fraterna, e nada torna esta violência mais ameaçadora do que o assassinato do chefe do governo” – lembra em editorial de primeira página o Jerusalém Post. “Se a nação for mais afortunada (do que ao tempo da destruição do Segundo Templo), o assassinato servirá como uma advertência de que a violência interna é o nosso mais perigoso inimigo”.

Os irmãos que se odeiam, uns a favor e outros contra a devolução de terras da Cisjordânia aos palestinos, estão respeitando uma trégua não proclamada. Os colonos de Kiryat Arba, uma das fontes da violência verbal que se materializou em duas balas dundum disparadas contra Rabin, estão agora recitando salmos, chocados e amargurados. “Sentimos muita dor quando soubemos do assassinato”, disse o rabino Arye Weiss. Mas um rapaz de 17 anos, Shuvie Reuben, imigrante norte-americano, procurava ainda justificar a violência: “Rabin foi o responsável pelas mortes ocorridas desde o acordo de paz de Oslo”.

O assassino Yigal Amir também acusou Rabin, ontem, quando levado a um juiz em Tel-Aviv, de “dar nosso país aos árabes”. Seu objetivo declarado era o de parar o processo de paz. Ao explicar o que o mobilizou, ele não hesitou: “Foi Deus”. Para ele, a Halacha, código judaico, é muito claro: “Pode-se matar o inimigo”. E o inimigo era Yitzhak Rabin. “Toda a minha vida estudei a Halacha”, acrescentou. “Matar o inimigo numa guerra é um ato permitido”.

Há um esforço religioso de estancar a violência. O grão-rabino ashkenazi de Israel, Yisrael Lau, perguntou a todos os judeus: “Podemos erguer-nos em sã consciência e dizer que nossas mãos não compartilharam este sangue?” Há um mês, 20 religiosos do movimento ultra nacionalista Kach lançaram contra Rabin uma maldição, querendo-o morto.

O esforço de apaziguar os ânimos cria apenas uma frágil trégua, segundo o autor do livro Política da Provocação, Gadi Wolfsfeld, professor de ciência política da Universidade Hebraica de Jerusalém. “A tendência a longo prazo é a do confronto continuar, porque muita gente na extrema-direita está desenvolvendo uma ideologia que rejeita as regras democráticas”.

A profunda cicatriz que cindiu os israelenses era tratada ontem nas ruas de Jerusalém e em Tel-Aviv. Vigília permanente na praça Reis de Israel, onde Rabin foi assassinado, mantêm velas acesas. Um grupo faz plantão para consolar a viúva Leah, em Ramat Aviv. Num momento em que ela saiu de casa, dirigiu-se a ele: “Vocês deveriam estar aqui antes”, quando outros manifestantes exibiam cartazes contra o marido. Grupos param em jardins e organizam orações. Primeiras páginas com gigantescas manchetes sobre o atentado, coladas a muros, transformam-se em altares improvisados.

Líderes da extrema-direita vão a TV e pedem paz. O líder do Likud, o principal na oposição, Binyamin Netanyahu, ofereceu apoio para o primeiro-ministro interino, Shimon Peres, tornar-se o oficial, até as eleições do ano que vem. Muitos trabalhistas acham, porém, que o melhor será antecipar as eleições, capitalizando o impacto do “Ódio fraterno”, que, como um tiro no próprio pé, pode ferir mais o país.

O sucessor Shimon Peres, no enterro de Rabin

O sucessor Shimon Peres foi ameaçado de ocupar o próximo caixão político.

JERUSALÉM – Enterrado o primeiro-ministro Yitzhak Rabin, resta a paz no Oriente Médio e entre os divididos israelenses. Aos líderes árabes em torno do caixão azul e branco, no topo do Monte Herzl dominando a capital contestada de Israel, e a mais de 40 outros chefes de estado, observou o primeiro-ministro interino Shimon Peres: “Este é o coroamento glorioso dos esforços de Rabin pela paz – todos aqui, juntos”.

Sob o sol brilhante do outono nas colinas bíblicas de Jerusalém, emocionado, vestido com uma kefiah vermelho e branco, o rei Hussein disse a multidão de quatro mil convidados na esplanada onde está enterrado Theodor Herzl, o ideólogo da criação do estado de Israel. “Chegou o momento de todos nós batalharmos pela paz”.

Sucessor do mártir pioneiro da paz, Anuar Sadat, assassinado em 1981, o presidente egípcio Hosni Mubarak, alvo de um recente atentado na Etiópia, subiu também à tribuna – ele que relutava em visitar Israel, e menos ainda Jerusalém: “O melhor monumento a Yitzhak Rabin será a continuação do processo de paz que ele iniciou… Só assim honraremos verdadeiramente a memória deste abatido herói da paz”.

Solidéu na cabeça, que lhe caiu no momento em que o caixão era coberto de terra, o presidente Bill Clinton trouxe à Jerusalém uma comitiva de 100 pessoas, entre elas os ex-presidentes Carter e Bush, para a homenagem ao grande “chaver” (pronuncia-se raver, companheiro). Olhou para o rei Hussein e o presidente Mubarak, juntos em Jerusalém, como “uma fotografia” improvável a apenas alguns anos atrás. Como líder de uma nação três vezes sacudida por assassínios políticos (Abraham Lincoln, John Kennedy e Martin Luther King) ele aconselhou aos israelenses: “Não deixem que isso aconteça a vocês”.

Ausente, Yasser Arafat era onipresente. Ele não veio para permitir aos israelenses divididos uma trégua. Quanto mais dilata a autonomia plantada em Gaza e Jericó, mais cresce a violência verbal, agora com uma primeira vítima, Yitzhak Rabin. Perto do centro de imprensa montado às pressas para o enterro, como no tempo em que Sadat veio à Jerusalém, em 1977, foram rasgadas as fotos em cartazes do aperto de mão histórico entre Rabin-Arafat, na Casa Branca.

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Peres no memorial Rabin, na praça Rabin.

Lágrimas e soluços marcaram as lembranças da neta de Rabin, para quem ele era “um herói privado”, Noa Ben-Artzi, de 17 anos. “Sempre acordamos de um pesadelo”, ela disse. “Mas eu estou acordando para um pesadelo”. O avô era um “lobo solitário” que tinha por ela “o carinho macio” e um “meio sorriso tão significativo” que nenhum dos grandes líderes que o homenagearam “poderiam conhecer”. “Vou estar com você para sempre”, concluiu, quase não o conseguindo, e desceu rápido para os braços abertos do irmão, soldado.

Outro dramático momento teve o sangue de Rabin exposto. No comício da paz em que foi morto, pela primeira vez em público ele cantou, lendo a letra num papel, a “Canção para a Paz”. Depois, dobrou-o e o guardou num bolso. Então duas balas dundum, que explodem ao penetrar no alvo, cobriram-no de sangue. Da tribuna, o diretor do gabinete do primeiro-ministro, Eitan Haber, o releu para a multidão.

Um milhão de chocados israelenses passou pelo caixão de Rabin diante da Knesseth, o Parlamento em Jerusalém. Em 36 horas, 70 aviões com líderes de todo o mundo pousaram em Tel-Aviv. Os funerais lembraram uma mobilização para uma guerra. Mais de 10 mil policiais, soldados e agentes de segurança à paisana misturaram-se ao povo ao longo do trajeto até o Monte Herzl. Guarda-costas, surpreendidos com uma falha que custou a vida do primeiro-ministro, estavam alertas aos menores movimentos. Soldadas distribuíam bonés e garrafas de água contra o sol.

As escolas de Israel tiveram aulas sobre Rabin e a violência que o matou. A lição foi repetida para os adultos até por quem até antes do assassinato equiparava o processo de paz à entrega do país “aos árabes”. Todos permaneceram em silêncio ao soar por dois minutos o alarme de ataque aéreo. Ao falar, o primeiro-ministro interino assumiu a herança que recebeu: “O homem que matou Rabin não será capaz de assassinar a ideia que ele semeou”. E acrescentou: “Ficou a estrada aberta, e nós a seguiremos”.

O presidente Clinton conclamou: “Agora recai sobre todos nós que amamos a paz e Rabin continuarmos a luta para a qual ele deu a vida e pela qual a perdeu”. E o rei Hussein prometeu: “Eu me comprometo diante de você”- e virou-se para o caixão, ao lado – “e do meu povo na Jordânia, e do mundo, a continuar fazendo tudo para deixarmos uma herança igual”. O vice-presidente Marco Maciel lembrou a um repórter o recente encontro de Rabin com o presidente Fernando Henrique Cardoso, em Nova York. E apresentou ao presidente Ezer Weizman as condolências do Brasil.

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JERUSALÉM- Ameaçados de morte por grafites e telefonemas anônimos, mas protegidos por um excepcional esquema de segurança, o premiê interino de Israel e seus ministros aprovaram ontem a formação de uma comissão de inquérito sobre o assassinato de Yitzhak Rabin, aceitando ao mesmo tempo a renúncia do general encarregado do grupo de segurança VIP do serviço secreto, o Shin Bet, e punições a três subalternos.

Enquanto o governo estava reunido, a rádio israelense anunciou a prisão de um terceiro suspeito nas investigações do assassinato de Yitzhak Rabin, baleado no sábado por um universitário de extrema-direita, Yigal Amir, 25 anos, que confessou ter agido só, mobilizado “por Deus”. O segundo suspeito, irmão do confesso assassino, Hagai, 27 anos, é acusado de cumplicidade, porque sabia dos planos e fabricou as balas dundum. O terceiro pode ser um instigador do crime.

O novo grafite em Jerusalém chamou a atenção por lembrar as ameaças que culminaram no primeiro assassinato político cometido por um israelense contra outro na história de Israel. “Rabin foi uma vítima da paz, Peres é o próximo da fila”. Como assinatura, o símbolo do movimento Kach, antiárabe, ultra nacionalista. Num bastião da extrema-direita na Cisjordânia, em Kfar Tapuah, abaixo de uma foto de Shimon Peres foi inscrito: “Viva Yigal Amir”.

Antes do assassinato de Rabin, os grafiteiros seriam considerados “lunáticos”. Agora não mais. A rua diante do prédio do primeiro-ministro foi fechada. Uma tropa extra montou um cordão de segurança impenetrável para a imprensa. Para agravar a tensão, vários ministros revelaram que têm recebido ameaças de morte anônimas, pelo telefone.

Mesmo sob este clima, o governo divergiu na hora de votar a formação da Comissão de Inquérito. A maioria a queria com poderes ampliados para investigar os grupelhos de radicais que brotaram em terras férteis de violência na Cisjordânia. Só dois, afinal, resistiram, e 17 outros foram na direção apontada por Peres, que a limita a um mergulho profundo em todo o sistema de proteção “a indivíduos em geral, e na manifestação em que o crime ocorreu, em particular”. A parte podada pode merecer outro fórum, por ser mais sutil e envolver o direito à livre expressão na democracia israelense: quando um discurso passa a ser inflamatório ou instigador?

Chefiará a comissão, provavelmente, o juiz Meir Shangar. As investigações estarão a cargo de um militar, o general da reserva Moshe Levy, comandante das forças armadas nos anos 80. Os dois podarão sugerir punições ao apresentarem o relatório final. Mas já existe um relatório inicial. Preparado pelo próprio Shin Bet, constatou falhas na segurança de Rabin, um VIP mirado por fanáticos que se recusava a vestir um recomendado colete a prova de balas.

Rabin, em 1967, Guerra dos Seis Dias.

Rabin, em 1967, Guerra dos Seis Dias.

Dentro do carro que levou Rabin em três minutos ao hospital Ichilov, o motorista Menachem Damti perguntou:

-Está ferido, primeiro-ministro? No que ele respondeu: “Estou, mas não é assim tão grave”. Então, sua cabeça pendeu. Era muito grave. Ele foi alvejado quando seus guarda-costas falharam em imunizá-lo com um escudo humano. Eram poucos os que o cercavam. Penetras andavam pelo estacionamento, entre eles o confesso assassino, que simulava ser um dos motoristas da comitiva. Ele chegou a 1,5 metro de distância de sua vítima. Uma escada não estava bloqueada.

O filho de Rabin, o paraquedista Yuval, é quem resumiu a situação: “O sentimento generalizado parecia ser: -Confie em nós, tudo estará OK, nada acontecerá”. Quem quisesse disparar no primeiro-ministro teria um alvo livre. Um segundo círculo de segurança não o cobria. Os agentes secretos também não cercaram o carro oficial como preparativo básico para a partida numa manifestação com mais de 100 mil pessoas. Até a imprensa ousa agora perguntar ao “infalível” serviço secreto: como é que Yigal Amir não teve cassado o porte de arma depois de ser detido ameaçando Rabin por sua política de paz? Agora se sabe: o banco de dados sobre potenciais terroristas judeus é incompleto porque toda a ênfase era dada a camicases árabes em 47 anos de Israel.TelAvivYitzhakRabinMemorial

O general que chefiava o corpo de segurança de VIPs renunciou antes de ser demitido. A praxe em Israel é a de que ele não tem nome. A imprensa, conhecendo-o, não pode entregá-lo à opinião pública. Um subordinado imediato, também de alta patente militar, foi suspenso. E dois agentes transferidos para outras missões.

Venerado Homem-Bomba

O palestino Ayyash foi um gênio

de bombas do terror detonadas em

Israel. Foi morto pelo serviço secreto

israelense com uma bomba

acionada por controle remoto.

Yahya Ayyash, 22/2/1966 - 5/1/1996.

Yahya Ayyash, 22/2/1966 – 5/1/1996

JERUSALÉM – Do céu surgiram três mulheres vestidas de branco para proteger, o novo grande mito nas colinas bíblicas da Judea e Samaria. Cultuado como “santo” da guerra santa dos radicais palestinos, ele está bombardeando, com pavios humanos, a frágil paz entre Israel e a OLP. É o homem mais caçado na Cisjordânia e em Gaza pelo exército israelense e pela Autoridade Palestina. Já esteve à beira da morte e da prisão, e escapou porque “Deus o ajuda”, como se crê em Rafat, a pequena aldeia onde ele há 29 anos nasceu, entre Nablus e Ramallah.

O nome de guerra de Yihya Ayyash (fala-se Irriá Aiach) é “Mehandess” – “O Engenheiro”, em hebráico e em árabe. Um engenheiro elétrico e químico formado na Universidade Bir Zeit, a Harvard palestina, ao tempo da Intifada, a rebelião na Cisjordânia, e “doutorado” em 1992 com um carro-bomba feito com explosivos de baixa qualidade – a característica assinatura das explosões que mataram 77 pessoas em Israel desde o acordo de paz com a Organização de Libertação da Palestina (OLP), em 1993.

maxresdefault   Quando Israel apagou a luz contra os ataques de mísseis iraquianos, em 1991, só uma casa de Rafat ficou iluminada – a dele. Fez-se luz com um pequeno transformador plugado na bateria de um carro. Ele também se revelou um perito em consertar antigos aparelhos de TV e rádio. E nenhum menino o superava nas atiradeiras. “Era o melhor”, lembram amigos. No que resta hoje do quarto dele, na casa de pedra em Rafat onde ainda moram os pais, Abdel-Latif e Aysha Ayyash, há um caixote em que se misturam livros como “Basic Circuit Theory”, “Electrical Machines and Transformers”, “Martyrs of Islam” e “Secret Resistance”.

No caixote, um retrato de Yihya Ayyash: engenheiro, religioso fervoroso e devoto militante do Ezzedin Al-Qassem, o braço armado do Hamas, grupo de palestinos que está detonando com homens-bomba a negociação entre OLP e Israel para a expansão da autonomia palestina na Cisjordânia, a ser concluída com uma grande festa, em 7 de setembro, na Casa Branca, em Washington. O chanceler israelense Shimon Peres já duvidava da data da festa, no final da semana em que mais um ônibus explodiu, em Jerusalém.

A fama (ou a infâmia) de Ayyash dá aos palestinos “o senso de que eles não estão desamparados”, explica o professor Yifrah Zilberman, da Universidade Hebráica. “Parece-lhes um herói que bate os israelenses em seu próprio jogo”, diz o jornal Maariv, acrescentando: “ele usa o próprio brilho técnico contra um gigante tecnológico armado de bombas nucleares”.

Famoso, porém não único, lembra um especialista em extremismo islâmico, Raphael Israeli: “Se as forças israelenses conseguirem capturá-lo, três outros Engenheiros vão surgir”.

100 mil foram ao enterro

100 mil foram ao enterro

Um discípulo de Ayyash foi preso no sábado passado. Mas a bomba que ele fabricou explodiu, assim mesmo, dois dias depois. O serviço secreto só ligou o autor à obra ao receber autorização de voltar a “sacudir” durante os interrogatórios. O método estava proibido desde a morte de um prisioneiro do Hamas, “sacudido” em abril. As “sacudidelas” mantém o preso acordado, minando suas resistências. “Sacudido”, Abdel Nasser Shaker Issa confessou ainda uma bomba anterior, detonada por um pavio humano em Ramat Gan, em julho. Uma célula inteira de “O Engenheiro” caiu, com mais de 30 pessoas. Na sexta-feira, um comando israelense matou outros dois membros do Hamas durante um tiroteiro em Hebron. Agora, uma polêmica “sacode” Israel: direitos humanos para suspeitos de terrorismo ou direito à vida humana para as vítimas dos atentados?

O jornalista Roni Shaked, autor de um livro sobre o Hamas, acha que só com interrogatórios de prisioneiros Israel poderá alcançar “O Engenheiro”. Os camicases palestinos são diferentes dos terroristas da OLP. Eles não se deixam recrutar como espiões. Vivem numa órbita impenetrável. Não se pode afirmar que “sacudindo” Shaker Issa se evitaria a explosão da bomba em Jerusalém. Mas o governo autorizou mais “sacudidas” em situações em que uma nova explosão pareça iminente. Nos jornais do fim de semana apareceu um pequeno anúncio: “Rabin & Peres/ Peguem um ônibus/ Como todos nós”. Ao prefeito de Jerusalém, Ehud Olmert, do partido Likud, na oposição, um repórter perguntou, refletindo um pânico geral: “Você pegaria um ônibus?” Ele respondeu que ainda vai fazer um passeio de ônibus, na semana que vem. “Mas, em geral, uso meu carro”, explicou.

Os passageiros de ônibus se olham com desconfiança. A polícia quer treinar cães para farejar pavios humanos. Cada nova explosão mina o apoio do governo Rabin para prosseguir as negociações com o líder da OLP, Yasser Arafat. Esta é a vitória de um único homem, “O Engenheiro”. Os israelenses o prenderam uma vez. É a lenda que corre na Cisjordânia. “Os soldados o sequestraram na Universidade Bir Zeit e o levaram para um lugar deserto. Quando iam matá-lo, eis que surgem do céu três mulheres vestidas de branco. Então, elas o protegeram”. Sob proteção divina, Ayyash planejou o seu maior ataque até hoje, o homem-bomba que explodiu dentro de um ônibus no centro de Tel-Aviv, em outubro de 1994, matando 22 pessoas.

maisMilitantes do Hamas dizem que “O Engenheiro” também conta com a proteção de um país árabe, onde agora estaria morando. Seria a Síria, mas o serviço secreto de Israel afirma que ele se esconde em Gaza, com uma jovem esposa e um filho. O pai não o vê entre suas oliveiras em Rafat “há dois anos”. E se lembra com orgulho de uma bomba de água que ele montou: “Até hoje dela não vaza uma gota”. Outros dois filhos, Younis, 20 anos, e Merae, 25, estão presos. Vizinhos o lembram como a um santo: “Ele nunca perdia nenhuma das cinco orações do dia, e começou a jejuar no sagrado mês do Ramadan quando tinha apenas 7 anos, bem antes da idade requerida pelo islamismo”.

Intifaca

terrisrael-1Intifaca é a Intifada com faca. O terror na Terra Santa já passou por várias ondas. Pedras, sequestros de ônibus e de aviões, massacres como o das Olimpíadas de Munique, laranjas envenenadas, celulares explosivos, guerra secreta pela Europa, cartas bombas e pedradas. Já são 48 anos de terror, respondidos a dois olhos por um olho, e a paz entre israelenses e palestinos vai se distanciando, cada vez mais inalcançável.

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Palestino com colete de jornalista esfaqueia um soldado. Foi morto.

O terror palestino inaugurou a Intifaca. Por uma cronologia de ataques e contra-ataques desde 1948 que sigo, com crescente horror, 29 morreram de ambos os lados, só neste outubro. Mas outubro ainda não acabou. Para comparar, de janeiro a setembro de 2015 foram 7 os mortos.

Vivi sob o terrorismo nos ônibus em Israel. A ida de um bairro a outro, em Jerusalém ou Tel-Aviv,

muitas vezes terminava °°no cemitério. Quando um passageiro parecia suspeito, todos o fixavam, em estado de alerta máximo a qualquer gesto que fazia. Eram camicases, com cinturão explosivo no corpo e 72 virgens no paraíso, ou apenas uma bolsa, mochila e embrulho esquecidos embaixo dos assentos.

Também testemunhei sequestros de ônibus intermunicipais, freados com tragédias. Vítimas e algozes sabiam que Israel não negociaria: seria rendição ou morte. Os ônibus eram a nova versão do terror aéreo. Aviões decolavam para Tel-Aviv e pousavam em Entebe (Uganda), ou na Líbia, Sudão, Suíça. A batalha final se dava nos aeroportos.

Os reféns de Entebbe chegam a Tel-Aviv

Os reféns de Entebbe chegam a Tel-Aviv

muniqueO terror também injetou veneno nas famosas laranjas de Jaffa que Israel exportava para a União Europeia. A mira era a economia, mas as vítimas nada tinham a ver com o conflito no Oriente Médio. Veio a idade das pedras das Intifadas I e II. Os massacres sempre marcaram presença, desde antes da proclamação de independência de Israel, em 1948 – quando os palestinos rejeitaram a parte que lhes cabia na partilha da ONU. Alguns distantes da Terra Santa, como o das Olimpíadas de Munique, e outros em creches, kibutzim e baladas israelenses, e em aldeias palestinas. Vigorava a lei de talião mais dura do general Ariel Sharon: dois olhos por um olho.

Os 1.151 atentados contados até o último 18 de outubro produziram 2.729 mortos e 11.825, entre eles muitos mutilados. Aqui não estão somados os soldados e palestinos mortos na invasão de Israel ao Líbano, em 1982, para vingar o atentado na véspera ao embaixador israelense em Londres. Nem as guerras de 48, 56, 67, 73 e 1982.

Cada onda de atentados marcou uma época, como agora a Intifaca. A primeira vez que fui a Israel, em 1967, o perigo morava nas ruas, com bombas dentro de lata de lixo ou deixadas como embrulhos no meio-fio. As ruas das cidades eram obsessivamente varridas. Qualquer lixinho chamava a atenção. Ainda hoje, no aeroporto de Tel-Aviv, os passageiros podem apreciar o exército de varredores que esvaziam lixeiras a todo momento. Se o perigo rodava com o carro, que explodiam, nos estacionamentos cada um passava por um rigoroso exame, com o hoje chamado selfie sendo feito entre as rodas, um espelho grande e redondo no lugar da câmera. A entrada a cinemas, shopping-center e lojas lembra ainda o trânsito pela segurança dos aeroportos. Isso quando pelo correio não chegava uma carta-bomba. Ou o celular matava assim que atendido.

Tantos anos de terror e contra terror, guerras e confrontos de agentes secretos mundo afora não mudaram a relação israelo-palestina. O então líder Yasser Arafat e o premiê Yitzhak Rabin deram-se as mãos, como o presidente egípcio Anuar Sadat e o premiê Menachem Beguin. Sob o governo de Bibi Netanyahu cada golpe terrorista sempre correspondeu a um enrijecimento maior, quando se imaginava que não havia como piorar mais. Mais voltas do círculo vicioso. Assim a Intifaca já inclui atropelamentos propositais, como na fase em que condutores palestinos de tratores saiam tresloucados contra carros até que parados, a tiros.

A onda atual é difícil de conter. Muitos palestinos trabalham em Israel. Muitos também são israelenses. Puxar uma faca de repente não tem antídoto policial. Pode acontecer em qualquer lugar, a qualquer momento. Revela que as duas comunidades estão se afastando num abismo de ódio e a conta-gotas de sangue. Nos anos 70 ouvi do prefeito de Jerusalém, Teddy Kolek, que árabes e judeus da cidade Santa estavam finalmente unidos para todo o sempre porque ele acabava de unir os esgotos. “Não tem volta”, orgulhava-se. Ainda acrescentava a moeda única, o shekel, que sobrepujou o dinar jordaniano.

Nesta terra de profetas bíblicos, ninguém se atreve a prever o futuro. Quando Israel avançou sobre o Líbano, em 1982, foi recebido com chuva de arroz pelos sul-libaneses cansados da guerra da OLP. E Saiu em 1984 sob chuva de pedras. Quando Sadat foi assassinado fui até Ismailia, no deserto do Sinai, para rever uma família que o santificava, com seus retratos por toda a parte. Surpresa: só havia agora fotos tiradas de jornais e revistas de Hosni Mubarak, o sucessor. Como Sadat sequer tinha sido enterrado, perguntei o que tinha acontecido. Ouvi:

– Ah, Sadat acabou, né?.

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No ônibus do terror

Ashkelom, 13/4/1984 — Pareciam sombras movendo-se dentro do ônibus iluminado por vários holofotes. Eram quatro, estavam armados com facas, granadas e uma, pasta “James Bond” com explosivos. Em troca de seus 30 reféns, queriam a libertação de 500 prisioneiros palestinos e a garantia de livre passagem da fronteira para o Egito, Ali Perto.

Os soldados aproximaram-se do ônibus, silenciosamente. Um hospital de campanha foi preparado, helicópteros e ambulâncias esperavam. Eram 4h45 da manha, e começava a clarear, embora a lua ainda fosse visível, quase cheia.

-Fui a uma das janelas, e vi um terrorista. Apontei a arma, e disparei conta um dos soldados da unidade de elite do exército israelense encarregada pelo assalto ao ônibus sequestrado dez horas antes, em sua viagem entre Tel-Aviv e Ashkelon.

-E o que acontecia enquanto você disparava?

-Realmente, não sei. Quando disparava, sabia apenas que estava disparando. Não sabia nada mais. Corri para a porta do ônibus, tentei entrar, entrei e ouvi alguém gritando uma ordem: “resgate os civis”.

Zeev, um dos passageiros resgatados, 26 anos, que viajava com a namorada para Ashkelon, viveu o assalto ao ônibus de uma outra perspectiva:

-Foi tão rápido…eu não me lembro, houve o tiroteio, vidros quebraram, cai no chão. Soldados pularam para dentro do ônibus, alguns passaram por cima de mim. Um deles me tirou, através de uma janela. E agora estou aqui, vivo.

-E os terroristas, Zeev?

-Estavam nervosos. Um deles fumava um cigarro atras do outro.

-E os outros passageiros?

-Estávamos todos calmos, prontos para ajudar.

-Estávamos todos com sangue frio — diz outro dos reféns, uma marroquina que se orgulha de “já ter sobrevivido a seis guerras em Israel”: -Estivemos magníficos. Mas tivemos medo. Eu não conheço ninguém que não tenha medo. Todos os homens, diante da morte, sentem medo.

O soldado da unidade de elite ri ao lembrar-se dos passageiros que retirou do ônibus:

-Ah, ah…eu acho que havia entre eles um pouco de pânico. Mas quem pode culpá-los?

Helicópteros iam e vinham. E a região toda, bloqueada como se estivesse em guerra, passava a animar-se, o policiamento relaxando, a tensão passando á alegria, com alguns militares se cumprimentando.

Eram 18h20, anteontem, quando o ônibus Egged, da linha 300, deixou a estação rodoviária de Tel-Aviv rumo ao sul, pela estrada do litoral. Levava 35 passageiros, e entre eles aqueles três jovens e um senhor árabes, os quatro sentados em dois bancos.

Era uma noite eleitoral, em Tel-Aviv. No partido trabalhista, votava-se um terceiro mandato para deputados que já passaram por dois tendo em vista às próximas eleições, em 23 de julho. E o Heruth reunia-se para o duelo entre o primeiro-ministro Yitzhak Shamir e o general Ariel Sharon. Aqui, no parque das exposições, desde 19h30 corria um rumor inquietante: algo não muito bem explicado acontecendo em Ashkelon.

Acontecia que o alarme do sequestro já tinha soado. A seis quilômetros de Ashkelon, no ônibus já dominado pelos quatro passageiros árabes, uma mulher no oitavo mês de gravidez começou a passar mal, e obteve o direito de descer, na estrada, pedindo carona, entrou num carro equipado com radiotelefonia, e a polícia recebeu a denúncia. Por isso, um jipe com alguns policiais esperava o ônibus na entrada de Ashkelon.

Dentro do ônibus, um dos terroristas segurava o que parecia ser uma garrafa de champanha ao lado do motorista, advertindo que a explodiria, se alguém tentasse qualquer coisa. No meio do ônibus, outro tinha na mão uma pasta 007, e depois viu-se o que continha: dois foguetes antitanque. Os outros dois cuidavam de separar os passageiros em dois grupos. Usavam facas. E um deles falava hebraico o suficiente para explicar:

-Hoje não vai haver paz. Vamos matar todos vocês pelo que os seus soldados fazem com o nosso povo.

O ônibus passou pelo jipe a quase 120 quilômetros por hora. Os policiais, concluindo que o alarme tinha sido realmente serio, abriram a sirene, enviaram mensagens á central de Ashkelon, e todos os serviços de segurança e unidades de elite antiterrorista começaram entrar em ação.

Logo, eram quatro jipes atras do ônibus, os policiais disparando suas armas. O cortejo atravessou o porto de Ahskelon, passou pelo Kibutz Yad Mordechai, e em Gaza o exército o esperava. Um dos bloqueios armados foi cruzado pelo motorista, que tinha ao lado um dos jovens árabes a lhe repetir:” corra, corra…vamos para o Egito…”

Yossef Steve, habitante de Ashkelon, passageiro do ônibus sequestrado, lembra que quando a estrada, ao sul de Gaza, perto do campo palestino de Deir Al-Balah, fica bem mais larga, pareceu-lhe ver soldados de ambos os lados disparando rente ao asfalto. Os pneus furaram, mas o ônibus prosseguiu mais um quilometro, diminuindo a marcha. Quando parou, estava completamente cercado.

-Os terroristas davam a impressão de estarem chocados com a imobilidade do ônibus. Disse para mim: é agora… Abri a janela, e me joguei para fora. Vi um deles correndo com a faca na minha direção… Ele não me alcançou. E parece ter voltado, porque um soldado que se aproximou, pelo lado de fora, extraiu mais gente pela mesma janela, mais seis adultos e duas crianças.

O rádio do ônibus estaria ligado? A censura e o porta-voz militar explicavam que a proibição para a transmissão de qualquer informação era para “não dar aos terroristas a publicidade que eles queriam”. E nem alertar os países vizinhos, todos captando o noticiário em todas as línguas transmitido de Israel a cada hora. Nem provocar o pânico entre os israelenses. E foi assim que quando o vice-primeiro-ministro David Levy desapareceu da convenção do Heruth, concluiu-se: “ciúmes da vitória de Ariel Sharon”. Mas a imprensa começava também a desaparecer. E que estranho aquele locutor da rádio militar dizendo durante o programa dedicado “aos que não querem dormir”, e ouvem pequenos contos de terror, que “se permitirem, teremos uma noite agitada”. O silêncio sobre o sequestro foi realmente efetivo. E quando a imprensa atingia Gaza, já tinha que enfrentar bloqueios militares. Uma fila de carros começou a formar-se na estrada, até então deserta, enluarada e cheirando a flor de laranjeira. Os soldados estavam nervosos, e muitos á paisana, pegos de surpresa. Um deles apontou a metralhadora contra mim, como se minha intenção fosse a de romper a barreira. Não era, protestávamos contra a falta de acesso, e um grupo de correspondentes tentou descobrir outros caminhos. Não havia mais nenhum acessível depois da meia-noite. Só quem passara por ali bem antes, às dez da noite, poderia estar mais próximo do assalto ao ônibus. E ali já sabíamos que ele ocorreria na primeira luz da manha, olhando para os helicópteros, as forças que passavam para o sul e ouvindo pedaços de transmissão das comunicações militares.

Outro ataque: o ônibus viajava de  Beersheva a Eilat.

Outro ataque: o ônibus viajava de Beersheva a Eilat.

Ao lado do ônibus, para uma negociação que nunca seria concluída, por ser uma decisão política adotada por Israel, o ministro da defesa, Moshe Arens, e o chefe do estado-maior do exército, Moshe Levy, ganhavam tempo, os sequestradores pediam um embaixador como intermediário. Exigiam a libertação de 500 prisioneiros condenados a penas de vinte anos de prisão, incluindo os dois ainda não julgados que há doze dias dispararam seus fuzis e atiraram granadas no centro comercial de Jerusalém, ferindo 48 civis.

E o ministro da defesa, Moshe Arens, já desde a meia-noite tinha dado ordem para que se organizasse a operação resgate contra os sequestradores. De manha, diria:

-Foi uma longa noite, e difícil. Seguimos uma política que existe: a de não fazermos concessões a terroristas.

Para Arens, essa onda de atentados em Israel tem por objetivo “demonstrar que os grupos terroristas ainda estão vivos, e são capazes de golpear”. A frente popular de libertação da palestina, do médico George Habash, reivindicou a responsabilidade pelo sequestro do ônibus. Mas os órgãos de segurança israelenses concluíram rapidamente que os quatro árabes pertenciam ao Fatah, de Yasser Arafat, sendo habitantes de Gaza, e não um comando despachado através do Líbano, como os últimos que o precederam.

O primeiro-ministro Shamir elogiou a eficiência do grupo de assalto ao ônibus. E o chefe da policia advertiu a população para a possibilidade de novos grandes atentados, apelando á vigilância nacional. Dos sete feridos do assalto ao ônibus, quatro continuavam ontem á noite hospitalizados. A única refém morta, a soldada Irit, portuguesa, de 19 anos, será enterrada neste domingo, e um porta-voz militar confirmou a morte dos quatro terroristas, desmentindo a versão de que dois deles estariam presos.

Facadas no ônibus, em outubro.

Facadas no ônibus, em outubro.

Na boca das motos

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Este troféu da Abraciclo ganhamos o fotógrafo Luis Blanco,

eu e a revista Cycle World. Foi o meu primeiro e único

freelance em um ano desempregado. Agradeço

ao editor Luis Guerrero por confiar num

repórter septuagenário, que o mercado editorial, em geral,

marginaliza. Durante a premiação, ele escreveu no Facebook 

que sou “jovem repórter”. E esse foi um outro prêmio.


Moto não fica velha; vira relíquia. Não fosse o pequeno relicário que conserva viva a paixão por motos querua1 venceram o tempo, a Boca das Motos no centro de São Paulo, talvez a maior do mundo, com mais de 70 anos, já estaria derrotada pela expansão da Cracolândia vizinha, os receptadores que vendem peças de desmanche e a prostituição nas ruas quando as lojas fecham.

Zezé, por exemplo, está aqui há 36 anos. Ele pega uma moto 2014 e a leva para a década de 50. Tem clientes em Portugal, nos Estados Unidos e em todo o Brasil. “Eu continuo na década de 70”, diz ele, José Pelose Filho, 56, dono da Recar, na rua dos Gusmões, 777. “Sou do tempo em que moto era glamour, os motoqueiros se respeitavam e quando emparelhavam, nos faróis, cumprimentavam-se”.

rua2Outro exemplo é Sylvestre Martines Paschoal, o Corvo. Aos cinco dias de idade, já levava o primeiro tombo de moto. Seu pai, o espanhol Perez, foi tirar a mulher e ele, bebê, na maternidade, no Cambuci, montado numa Velocette Mark 350. Como levara ainda outros dois filhos, voltaram cinco a bordo. Mas havia uma boiada no caminho. Ia desviar, não fosse um caminhão cortar-lhe à frente, levantando muita poeira. Despencaram ribanceira abaixo. Mais que um recorde no Guinness, ganharam a vida. O Corvinho, com três anos, já brincava na oficina de motos e motonetas do pai. Hoje é dono da Silverstone Moto, na rua General Osório, 440.

O Corvo, como Zezé, é um exímio restaurador de motos. Faz das modernas, clássicas. Em cima do balcão, expõe a Honda S90 pilotada por Beto Rockfeller, na novela de 1968-69, na TV Tupi. Avisa, por escrito: “Não vendo”. Ele ainda guarda outra relíquia: a moto do pai, autenticada por uma foto já se apagando, amarelecida, em que aparece com a irmã com a altura já alcançando o selim.

Na loja de Zezé, entre dezenas de motos, está estacionado um imponente Rols Royce azul, direção à direita, placa FQU 7074 — ano? Qual ano? “Por favor, não vamos falar disso” — ele apela. “É de um amigo que me pediu para reformar a tapeçaria”. Não fosse “muito amigo”, não faria. Dono de uma frota de motos, ele gosta de sair com Raimunda, sua Vespa. “Mas não põe no texto” — também pede. Quando compara sua Boca com a de hoje, baixa a voz, e como se fosse um segredo, fala a palavra que marca uma enorme diferença: “Desmanche”. Se o atendesse, censurando-me, cometeria um outro tipo de desmanche.

rua3 rua4 O que não tem problema algum de contar é que Pelose/Zezé chegou à Boca ao tempo em que reinavam seus indisputados três pioneiros: Edgard Soares, Felipe Carmona e Luiz Latorre. Começava a década de 30. O polígono formado pelas ruas General Osório, dos Gusmões e Aurora, cruzadas pelas ruas Conselheiro Nébias, Guaianases, Barão de Limeira e Avenida Rio Branco, pertencia ao bairro chique dos Campos Elísios, onde moravam as famílias tradicionais de São Paulo. O total de 80.350 metros quadrados abriga hoje cerca de 500 lojas de motos, peças e acessórios. Difícil saber quantas exatamente. Há oficinas e revendedores instalados até mesmo em apartamentos de prédios residenciais.

A primeira moto nasceu em 1867, de pai americano, Sylvester Howard Roper. Com cilindros a vapor, exalava um fedor incompatível com os pedestres e produzia um barulho ensurdecedor que espantava os cavalos montados pelos poderosos da época. A versão inodora, a carvão, foi testada numa corrida contra bicicletas, na pista de madeira de Charles River, pouco mais de 30 anos depois. Roper, então com 73 anos, chegou à frente, a 48 km/h. Tão empolgado ficou, ele resolveu comemorar dando outra volta. Aí perdeu: teve um infarto fulminante, caiu morto. A história oficial, como no caso de Santos Dumont e a invenção do avião, consagra o engenheiro mecânico alemão Gottlieb Wilhelm Daimler como o “verdadeiro” pai das motos, e ao primeiro motor de combustão interna de quatro tempos, a Nikolaus August Otto. Mas o motociclista pioneiro, oficial, estava mais interessado, porém, em quatro rodas. E dele viria, com Karl Benz, o Marcedes. O Brasil, perto de 1920, era apenas importador. Vinham as americanas Indian e Harley-Davidson, a belga FN de 4 cilindros, a inglesa Henderson e a alemã NSU. Depois, chegaram a japonesa Asahi, a italiana Guzzi e a tcheca Jawa. A Monark foi a primeira brasileira, com motor inglês BSA, em 1951. Em São Paulo já rodavam as motonetas Lambreta, Saci e Moskito, enquanto no Rio era fabricada a Iso, a Vespa e um ciclomotor, Gulliver. O resto é História.

O trio pioneiro da Boca era unido pela paixão comum às motos, mas separado pelos negócios. Carmona e Paco, pai de Edgardo, montaram uma revenda de modelos americanos e europeus, entre eles a Harley-Davidson, Panther, Indian, BSA, NSU, Norton e Horex. A 50 metros de distância, Latorre abriu sua loja com as italianas Laverda, Guzzi e Ducati. Mais tarde, em 1958, Edgardo proclamaria independência da sociedade herdada do pai, e se tornou um terceiro concorrente, levando a rivalidade comercial entre eles para as pistas de corrida e os pegas da Barão de Limeira ao aeroporto de Congonhas. Os três competiam em vendas na mesma rua, General (Manuel Luís) Osório, o patrono da Cavalaria, que, de certa forma, guarda certo parentesco distante com a montaria

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Moto, então, era um veneno, por viciar seus aficionados. Daí para a famosa Esquina do Veneno foi um pulo semântico nos anos 30. Era ali, no encontro dos barões de Limeira e do Erval, outro título do general Osório. O point chegou aos tempos em que Jô Soares o frequentava, ainda motociclista. Aqui Edgard tramava soldar a antiga3porta da loja do Carmona, e realmente a soldou um dia, para que ele não chegasse a tempo de ver os ajustes das motos rivais em Interlagos, antes da largada. A decadência coincidiu com a invasão das japonesas Yamaha e Honda. O golpe de misericórdia foi o golpe militar de 1964, que dificultou as importações com inúmeras barreiras alfandegárias. Os filhos dos patriarcas da Boca romântica tiveram que se virar com máquinas rodando no mercado, restaurando-as, customizando-as, ou montando as Vespas que recebiam em peças de Manaus ou direto da Itália. A Lambreta era fabricada perto do Pico do Jaraguá. Outros nomes se juntaram aos pioneiros, como o dos irmãos João e Zé Loco Benedetti — autoproclamado “o primeiro motoboy”, porque entregava as peças para os clientes.

A Esquina do Veneno morreu, ou mudou-se para algumas quadras adiante, na Cracolândia. Como manter o romantismo e charme antigos num Estado que hoje tem cerca de 5 milhões de motos? Para conquistar o enorme mercado, vale tudo. Comprar moto roubada para desmanche é, talvez, a principal estratégia. Peças sem origem e sem nota fiscal, portanto abaixo do preço, são o que procuram todos motoqueiros, nos sábados de alta visitação. A Boca aparece mais nas páginas policias que esportivas dos jornais. A PM e fiscais da Receita fazem batidas de quando em quando, emparedando os cubículos que não têm como justificar a origem de suas mercadorias. Já fecharam por quatro meses uma das grandes lojas, pretendendo dar um exemplo intimidador. O policiamento hoje inclui duas peruas com soldados, na fronteira com os craqueiros. Grupos de haitianos e africanos fazem parte agora da paisagem. Por eles florescem pequenas lan-houses, a conexão via Wi-Fi com famílias distantes. A demarcação de terreno lembra a passagem entre quarteirões étnicos em New York.

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The King of Helmets, Luiz Cláudio, dono da loja de capacetes Xaparral, na rua Conselheiro Nébias, 507, faz uma constatação bastante elucidativa: só poucos lojistas hoje têm motos. Há 20 anos, não havia quem não as tivesse. Mais que negócio, era e continua sendo um hobby. Ele próprio, a mulher e três filhos, usam quatro Scooters, mais uma 750 e outra, 650, montada artesanalmente. Na família, porém, Lucas Xaparral partiu noutra direção: adotou o skate, com o qual foi campeão no Circuito Plasma, de SP, em 2004. Carro? Há um, sim, mas fica na garagem. Todos o conhecem na Boca, para onde veio de Londrina na década de 70. Seu celular não para. Como os outros veteranos, a parte melhor de seu negócio é o restauro do passado. “Está na moda capacete antigo”, ele diz. “Faço réplicas”. Os lojistas do ramo de viseiras são seus bons e fiéis clientes, não concorrentes. Confiam-lhe os ajustes para as cabeças dos compradores, principalmente motoqueiras. Devolve-os “sob medida”.

Luiz Xaparral atribui a decadência da Boca ao crescimento do centro de SP. A Esquina do Veneno virou Esquina do Medo para muita gente. Nunca foi assaltado, e lá se vão 30 anos. Mas reconhece: “Os malandros respeitam quem é daqui”. Foi ele quem nos introduziu a um mundo invisível e inesperado entre centenas de lojas. São pequenos apartamentos em prédios residenciais transformados em revenda, fábrica e retífica de peças para motos. Uma proeza subir tornos escadas acima. O húngaro Janos Arpad Danicz estava na cozinha de ladrilhos brancos, ocupada por máquinas. “A vida é aqui”, ele diz sorridente. Não está exagerando: nasceu a três quarteirões da General Osório há 53 anos. O Corvo/Paschoal, da Silverstone, aquele do tombo de moto aos cinco dias de idade, tem uma escada em caracol, no fundo da loja. Por ela, entra-se em apartamentos acoplados com o tempo, depósitos de incrível parafernália juntada em aparente desorganização. Só não tem, com certeza, uma vassoura, ou espanador. Vi uma relíquia, uma enceradeira Arno, deixada num canto há anos. Muita poeira, graxa, máquinas, peças – e desse caos o dia-a-dia continua.

rua6 rua7O Corvo gosta do apelido. Sua trajetória passa por anos em que foi preparador de motos dos pilotos Mário Tamburro (Honda MT), de José Casarini (TZ 350) e do chinês King Man Hol (RS 125). Um dia, não resistiu, e foi para as pistas com uma RD 50. Competia com “canhões”, sem dinheiro nem patrocínio, e ainda chegava em terceiro lugar. Apelidaram-no de Maluquinho. Depois, Loukinho. Já o diminutivo Corvinho ficou para o seu filho. Em outra fase de sua vida, atuou como dublê em cenas perigosas de filmes ou novelas de TV, ou assessorava produtoras na escolha da moto ideal para anúncios. O Corvo decidiu homenagear a Honda CB 400, de 1981, que deixou um séquito de fervorosos apaixonados. E a recriou tal qual. Recebeu propostas de vendê-la. Mas a conservou em família, como a usada pelo Beto Rockfeller e a do seu pai.

Lembra de filmes como Easy Rider, com as suas Harley-Davidson Panhead 1951? Ou Top Gun Tom Cruise montado numa Kawasaki GPZ 900R? Do Exterminador do Futuro pilotando uma Fat Boy? De James Bond com uma BMW 1200C? Che Guevara na Norton 500? Do Batman, com sua Batcycles? Você entra na Hot-V2, na rua Conselheiro Nébias, 532, e o clima é esse, de cinema. Está lá escrito: “Lendas never die”. A loja vende “life style”, diz o dono Arnold Santos, 57 anos, baiano de Feira de Santana com longa vivência nos Estados Unidos. Ele está na Boca há 19 anos. Os filtros de ar de suas duas Harley têm o formato de caveira. Os rostos de suas duas filhas tatuados num braço, relojão, anéis, calça de couro, bota e um pipe de duas bocas para fumar não sei o quê preso na cintura, como revólver em faroestes, seriam de um hippie conservado em formol, se os tempos não fossem outros.

Arnold é um artesão bem conceituado. Seus alforjes para motos são cobiçados. Na sua loja cult tem tudo que um easy rider possa pretender, até bandeira americana desbotada. Tanta quinquilharia, será preciso muito tempo para ver tudo. Mas a música é boa para quem se identifica com os sinais ostensivos da era de Aquário, Beatles, Califórnia e Harleys estradeiras. Um casal bull terrier, Chayene e Spy, completa o cenário. Montam nas motos, e no selim adormecem. Alguns motoqueiros também não envelhecem; viram relíquias.