Foi-se o último sobrevivente da geração de fundadores de Israel. Armou-o para as guerras. Batalhou para lhe dar paz. Era sua história viva. O único que o presidiu e o governou duas vezes como primeiro-ministro. Aos 93 anos, rejuvenescia com os jovens israelenses, o Facebook, Twitter e a internet. Morreu na madrugada desta quarta-feira, no horário de Israel, duas semanas depois de sofrer um derrame cerebral.
Shalom, Peres
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Persky escorregou quando escalava o “caminho da cobra” de Massada, a montanha do deserto do Negev em que 967 judeus resistiram ao cerco do exército romano, em 70 de nossa era. Foi rolando até fincar os dedos na terra, parando suspenso à beira de um abismo. Os amigos que estavam no topo deram-se as mãos formando um cordão que o trouxe de volta à vida.
No dia seguinte, Persky estava ali de novo, obstinado, vencendo o percurso completo do sinuoso “caminho da cobra”, por onde os judeus da “Metzuda”, ou Fortaleza, ou Massada, recebiam mantimentos.
Em outra aventura pelo deserto, querendo chegar a pé ao posto policial Umm Al-Rashrash, hoje Eilat, Persky descobriria um novo nome. Foi quando um amigo geólogo, Mendelson, mostrando um ninho de águias chamadas de “peres”, na bíblia, lhe perguntou:
– Por que você não muda seu nome para Peres?

Massada
Shimon Peres, 93 anos, conseguiu chegar ao topo de sua massada política? A escalada começou marcada por duas traumáticas quedas, uma em 1977 e outra em 1981, e nem todos seus amigos esticaram as mãos para salvá-lo.
Persky/Peres chegou à Palestina em 1933, quando tinha dez anos. Vinha da aldeia de Wieniawa, na Polônia, hoje Vishniev, na Bielo-Rússia, onde viviam apenas 170 famílias, e todas judias. Era um menino que apanhava dos outros, mais voltado para os livros de poesia do que as brincadeiras de rua, e quando sua mãe perguntava por que não se defendia, ele se espantava: “Por que eles me batem? Eu não fiz nada…”
Aos 14 anos, Peres e um amigo de escola, Mulla, entraram para o Hanoar há Oved, o movimento da juventude trabalhista patrocinado pela Histadrut, a federação geral do trabalho. E 43 anos depois, Mulla Cohen foi quem liderou a luta de Yitzhak Rabin para depor Peres da liderança do Partido Trabalhista.
A INTERNET, FACEBOOK E TWITTER CRIARAM COMUNICAÇÃO DE MASSA E ESPAÇOS SOCIAIS QUE REGIME ALGUM PODE CONTROLAR.
A escalada da “Massada política”, que teria início no Hanoar HáOved, foi sempre muito difícil para Shimon Peres. Este outro “caminho da cobra”, ou “de cobras”, pontilhado de armadilhas, seria percorrido solitariamente, sob o peso de fardos extras. A longa luta contra outro fundador de Israel e do partido Likud, Menachem Beguin, serve para ilustrá-lo: ele subia ao ringue, a tribuna do parlamento, como um boxeur que tem uma das mãos amarradas.
Quando o Partido Trabalhista, sob a liderança de Peres, estava para derrubar o Likud, eis que Yitzhak Rabin, ex-primeiro-ministro, publica seu livro de memórias em que o descreveu assim: “É um intrigante antigo que não se detém diante de nada para realizar as suas ambições. Ele usa e abusa das mentiras e das meias verdades. O Sr. Peres não pode pretender o acesso às funções de primeiro-ministro pois ele jamais vestiu um uniforme”. Como Peres derrotaria o eletrizante Menachem Beguin sofrendo ataques de dentro da cúpula do próprio partido?
Pode ser que Peres não tenha vestido um uniforme militar, mas desligá-lo do exército, como o fez o rival Rabin, é injustiça: afinal, ele foi o diretor geral das forças de defesa de Israel aos 29 anos, vice-ministro da Defesa aos 36, e ministro da Defesa entre 1974-77. Peres participou tão ativamente do desenvolvimento do exército israelense, armando-o nuclear, eletrônica e tecnologicamente, que um de seus biógrafos, Matti Golan, equiparou-o à sua “espinha dorsal”. Já Yitzhak Rabin, não: no mesmo livro de memórias, acusa-o de ter passado as 53 primeiras horas do sequestro do Airbus de Air France para Entebe, em julho de 1976, sem encomendar um urgente plano de resgate ao Estado-Maior. Peres dá outra versão: por ela, Rabin fora informado da “operação Entebe” no momento em que era viável desencadeá-la.
Anos depois, os dois se reconciliaram, unidos para uma nova batalha contra o Likud, então liderado por Yitzhak Shamir, político criado no mundo secreto do Mossad.
Como ao escorregar em Massada, Peres conservou para sempre a qualidade de se recompor rapidamente, e a obstinação para recomeçar do princípio. Quem o primeiro descobriu para a escalada politica foi “o velho”, foi David Ben Gurion, o primeiro primeiro-ministro de Israel. Ele o mandou como delegado ao Congresso Sionista na Basileia, Suíça, em 1946, o primeiro depois do holocausto nazista e da II Guerra Mundial. Até então, Peres tinha trabalhado em agricultura, ordenara vacas e pastoreara cabras até se alistar na Haganá, o exército judeu clandestino na Palestina do Mandato Britânico. Escrevia também uma coluna num semanário, “Diário de uma Mulher”, assinando-a como se fosse mulher mesmo, e se saía tão bem que uma leitora enviou um comentário à redação: “Finalmente, uma autêntica mulher”.
Quando vivia no kibutz Alumot, Peres recebia cartas de uma moça apaixonada, mas escritas por alguns de seus companheiros. Suas respostas, depois, eram compartilhadas por todos, até dramatizadas. Quando ele ficou sabendo, desapareceu por um ano. Sonya, filha do carpinteiro Gelman, tornar-se-ia sua esposa, em 1945, e os dois viveriam em Ramat-Aviv, ao norte de Tel-Aviv, até 2007, quando discretamente se separaram. O casal defendeu sempre sua privacidade com fanatismo. Poucos tomaram conhecimento.

Namoro com Sonya e o enterro

Peres falou da separação só muito mais tarde em entrevista ao jornal Yedioth Aharonoth, quando já circulava que a abreviatura Gal substituía o Peres na caixa postal de Sonya, nascida Gelman. A causa que os separou foi a insistência dele em se manter na política.
“Eu disse a ela: eu servi o país, o povo, toda minha vida. Isso é o que me preenche: não sei sequer o que seja descanso – descanso para mim é como morrer. Mas Sonya retrucou: você já fez o suficiente. Há outros que podem servir o país agora”.
Inconciliáveis, separaram-se, mas não se divorciaram. Ele foi para Jerusalém, ela ficou em Ramat-Aviv. Sonya morreu em 2011, aos 88 anos. O casal teve três filhos, um deles piloto da Força Aérea, oito netos e três bisnetos.
A animosidade contra Peres em seu próprio partido seria consequência da primeira fase da escalada da “massada política”, rápida, passando à frente de veteranos como “Sharett, Lavon, Eshkol, Golda e Sapir, que se consideravam, todos, os verdadeiros herdeiros do ‘velho’, David Ben Gurion. Mais tarde, a sua união com Moshe Dayan no “Rafi”, que rompeu com o PT, provocaria novas inimizades. De crise em crise, e depois do trauma da guerra do Yom Kippur, em 1973, restou para Peres a imagem do homem de infinita paciência, um arquiteto de compromissos.
QUANDO VOCÊ ESTÁ DIANTE DE DUAS ALTERNATIVAS, A PRIMEIRA COISA A FAZER É PROCURAR UMA TERCEIRA NÃO IMAGINADA E QUE AINDA NÃO EXISTE.
Esta seria a última vez em que Peres tentaria chegar ao topo de sua escalada pelo “caminho da cobra”. Se escorregasse, outros disputariam a liderança do partido, principalmente Yitzhak Navon, ex-presidente, e o outro Yitzhak, o Rabin, ex-primeiro-ministro. A campanha os mostrou unidos. E as sondagens de opinião pública deu ao partido o favoritismo do eleitorado.
Mas o que Shimon Peres estava propondo?
Em primeiro lugar, Peres não aceitava o convite feito pelo Likud para formar um governo de união nacional. Queria dos eleitores o voto maciço pelo Partido Trabalhista, evitando assim que os pequenos partidos impusessem seus programas.
Depois, ele não separava economia de política externa, porque em Israel uma depende da outra ainda hoje: na época, a guerra no Líbano e a colonização na Cisjordânia consumiam muito dinheiro e não eram decisões econômicas, mas politicas. Preocupava-se ainda com a paz “fria” com o Egito, pretendendo ampliá-la para a Jordânia, como acabou ocorrendo, em 1994.

A estreia de Shimon Peres como primeiro-ministro, em 1977, foi breve: ele substituiu Yitzhak Rabin, que renunciou ao perder a maioria no parlamento por causa de uma conta bancária no exterior e por perder o apoio de partidos religiosos ao receber os primeiros F-15 dessacralizando o shabat. Os aviões atrasaram pousando depois do pôr do sol de sexta-feira. Foi o fim de 30 anos de hegemonia do Partido Trabalhista.
Eleito Menachem Beguin, o incansável Peres assumiu a presidência do Partido Trabalhista e a vice-presidência da Internacional Socialista. Mas, durante esse período, por um acordo de rotatividade com o Likud sob Yitzhak Shamir, voltaria à cadeira de primeiro-ministro de 1984 a 86, herdando o desastre econômico da Guerra do Líbano do general Ariel Sharon — que, como ele, saiu da política com um derrame cerebral irreversível, em 2006; e que, ainda como ele, passou os últimos dias no hospital Tel Hashomer, em Ramat Gan.

Com Arafat e sua mulher, Sonya
VOCÊS SABEM QUEM É CONTRA A DEMOCRACIA NO ORIENTE MÉDIO? OS MARIDOS. ELES SE ACOSTUMARAM À VIDA TRADICIONAL MAS É PRECISO MUDAR. SE VOCÊ NÃO DER DIREITOS IGUAIS ÀS MULHERES, NÃO HAVERÁ PROGRESSO.
Nomeado ministro das Relações Exteriores em 1992, Peres iniciaria as negociações de paz com os palestinos que lhe renderam, e a Rabin e a Yasser Arafat, o prêmio Nobel da Paz de 1994. Então, o imprevisível o levaria a reassumir de novo o cargo de primeiro-ministro — e, de novo, em substituição a Rabin, assassinado por um fanático religioso judeu, durante uma manifestação pela paz em Tel-Aviv.
A escalada da “massada política” transforma Peres em Sísifo. Chega ao topo carregando pedra, mas ela cai rolando montanha abaixo. O topo pode ser qualquer das múltiplas funções que ele alcançou em Israel, nas quais, como próprio da política, não pode se perpetuar. Passou 60 anos no Partido Trabalhista, mas o abandonou para se unir a um novo partido fundado pelo primeiro-ministro Ariel Sharon, o Kadima (Adiante, Pra frente), em 2006. Foi ministro do Desenvolvimento do Neguev e da Galileia e vice-primeiro-ministro por um ano, quando se tornaria o nono presidente de Israel e, mais até, o primeiro israelense a ter tido os dois maiores cargos do país.
Curioso na metáfora da escalada de Massada é o sonho que atormentava o general Moshé Dayan depois que ele revelou aos israelenses, quando esse tipo de confidência não era comum, estar com câncer, e à morte. Convidou alguns jornalistas à sua casa – e eu estava entre eles — para contar que em muitas noites sonhava que escalava uma montanha sem conseguir chegar ao topo e ver o que havia lá que tanto o mobilizava. Uma vez ele viu. Eram os túmulos de seus pais. Morreu pouco depois.
PENSO QUE A PAZ DEVE SER OBTIDA NÃO SOMENTE ENTRE GOVERNOS, MAS ENTRE POVOS. ISTO ERA IMPOSSÍVEL ANTES DO FACEBOOK.
Shimon Peres foi o último fundador de Israel a morrer. Chegada a hora da passagem da tocha, como na Olimpíada. Nos últimos anos, ele era o político mais querido dos jovens. “Darling”. Por que rejuvenescera fascinado com a nanotecnologia numa nação de startups. Entrou no Facebook. No Twitter. Dava entrevistas pelas redes sociais. Os gênios de Silicon Valley não deixavam de visitá-lo passando por suas filiais e laboratórios em Israel.
“Para mim”, dizia Peres, “sonhar é simplesmente ser pragmático”.

Sentado no Iron Throne