Os dias em que não morri

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Foto Creative Commons

Por duas vezes, na guerra do Líbano, vivi a morte bem de perto. Mas sobrevivi e estou aqui, agora, relembrando. Nada heroico. Apenas o dia a dia de um correspondente.

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Moussa Sadr

 

Saí correndo de Beirute atrás de um telex ao norte de Israel. Estava sem contato com a redação do jornal, em SP, desde que uma bomba destruíra, três horas antes, o gerador do hotel Commodore, onde ficávamos os repórteres que cobriam a guerra no Líbano. Sabotagem ou coincidência, sempre que o noticiário do dia era desfavorável à OLP, buuuum!, acabava a luz — e adeus transmissão de filmes, fotos e textos.

Peguei a estrada do litoral, deformada pelas sapatas dos tanques no asfalto amolecido pelo sol. Os correspondentes de tevês iam até Damasco, mais perto. Mas eu, barbudo, com carro com placa israelense e nome judeu, não seria bem recebido pelos sírios. Perto da veneranda cidade de Tyre, fundada em 2750 a.C., entrei num desvio sem mais asfalto, uma reta poeirenta com poucas casas do lado direito. Avistei uma multidão em passeata. Era muita gente, segurando cartazes e gritando.

E aí? Que fazer? Dar meia-volta, fugir? Isto já faria de mim uma presa, ou alvo de tiros. Ficar? Prisão certa, ou linchamento imediato. Não poderia acelerar contra a multidão… Então, travei portas e vidros automáticos, à espera.

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Israel no sul do Líbano, foto Creative Commons

A turba vinha furiosa. Reconheci a foto que muitos brandiam. Era o imã Moussa Sadr, líder xiita do sul do Líbano, nascido na cidade sagrada de Qom, no Irã.

A multidão engolfou meu carro, que balançou, balançou, mas ninguém tentou abrir a porta. Cegos de ódio, nem me notaram. Eu tremia. De repente, vi a frente livre. Saí devagar, depois acelerei fundo. Alguns quilômetros adiante, no asfalto de novo, parei para comprar água e saber o que estava acontecendo. Ouvi: Moussa Sadr havia desaparecido desde que seu avião fez escala em Trípoli, na Líbia, a caminho de Roma. Certos de que ele fora assassinado, seus súditos exigiam a cabeça do coronel Muamar Kadafi. O mistério não foi desfeito até hoje.

No mesmo Citroën esportivo branco, com placa do país invasor, me perdi uma noite em Beirute. Não existiam GPS, Waze e nem celular. Um sinal indicara que tinha entrado na “terra de ninguém”, uma zona neutra separando os inimigos. Como sair dali? E, dependendo da saída, quem encontraria?

Rodei a 20 km/h até ler uma placa em francês, Café du Brésil. Só podia ser um sinal para mim. O problema era um monte de terra, talvez uma trincheira abandonada, bloqueando o caminho. Mas fui! Acelerei, saltei ao bater na barreira, e pousei diante de alguns soldados que apontavam os fuzis para mim. Talvez não tenham atirado por causa da placa israelense. Ou deveriam, por isso mesmo: poderia ser um camicase com carro roubado. Pegaram meus papéis e foram checar com o serviço de imprensa, em Jerusalém, se eu era mesmo repórter credenciado. E a guerra continuou por mais cinco meses.

 

Lobo mau baleado. De verdade.

 

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O caçador deu um tiro no lobo mau. E não foi de mentirinha.

Sangrando, o lobo mau cambaleou três passos, sentiu a perna endurecer, tirou a máscara, e caiu desmaiado na cadeira da vovó.

A plateia ria de tanto realismo para um conto da carochinha. Chapeuzinho Vermelho “perdeu a voz”, tão assustada. A vovó irrompeu no palco, saindo detrás de um vaso, onde se escondera ao ser “comida” pelo lobo mau, e deu o alarme: “é sangue! … sangue!”

Era a abertura da anual Feira de Ciências e Cultura na Escola Cenecista Miguel Matias, em Campo Alegre, a 86 quilômetros de Maceió. A escolha de encenar Chapeuzinho Vermelho fora feita pelos 28 alunos do segundo grau. Tinham liberdade para decidir. O estudante José Claudevan, 21 anos, lembra: “No ano passado, tivemos câncer de mama como tema de uma exibição”. Mas, desta vez, “as meninas”, futuras professoras, sugeriram uma encenação que algum dia haverão de promover entre seus próprios alunos.

Campo Alegre dá as boas vindas aos visitantes com uma placa fincada pelo prefeito Miguel Felizardo no entroncamento da estrada para Arapiraca. “Alegre” e “Felizardo” não combinam com o clima de suspeição e hostilidade que paira sobre os forasteiros. É uma cidade dos boias-frias que trabalham no canavial de perder de vista da região. Diante de casas baixas, coloridas, muita gente fica sentada, gozando o fresco da sombra. São algumas compridas ruas pouco movimentadas. Crianças brincam de mirar os passantes com revólveres de plástico. A primeira impressão é a de que existem muitas funerárias para o tamanho da cidade. Mas, para um motorista conhecedor da zona da mata alagoana, “não faltam clientes”: a violenta política os produziria em abundância.

Não é de espantar, assim, que o final inesperado de Chapeuzinho Vermelho tenha alcançado Maceió, numa nota de três parágrafos ao pé de uma página interna de jornal, como mais um caso de agressão. Não foi. O lobo mau José Claudevan é muito amigo do caçador Iran do Carmo.

Soro na mão, esparadrapos no buraco de entrada e saída da bala na coxa direita, Claudevan deve receber alta hoje. Do palco no pátio da escola dois professores o levaram sangrando muito ao pronto-socorro de Arapiraca. Mas lá ninguém estava sendo atendido, por causa da greve geral nos serviços públicos estaduais de Alagoas. O jeito foi seguir para Aracaju, em Sergipe.

Lobo mau Claudevan conta que o anestesiaram para limpar os fragmentos “de chumbo ou pólvora”, observaram-no por três dias e o mandaram de volta para recuperação no hospital Senador Arnon de Mello (pai do ex-presidente Fernando Collor) em Campo Alegre.

“Nunca trabalhei em teatro”, explica Claudevan. E para ser lobo mau só ensaiou três vezes, todas na quarta-feira, véspera da estreia na Feira de Cultura e Ciências.

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Quando entrou em cena, o lobo mau, na verdade, era um macaco. “Não havia máscara de lobo… então, usamos a que encontramos” – conta Claudevan, de boné do time de basquete Chicago Bulls na cabeça e um radinho de pilha na cabeceira, dividindo um quarto da enfermaria com outro paciente.

Fada da Bela Adormecida e uma vez até “Nossa Senhora”, agora Sandra Madense, 18 anos, seria Chapeuzinho Vermelho, no lugar de outra “atriz” que desistiu de vergonha de cantar “pela estrada afora…” Também muito tímida, ela diz “não ter voz”. E fala pouquíssimo.

Sandra Chapeuzinho Vermelho lembra que a peça estava no momento em que ela correria atrás de socorro do caçador, desconfiada daquela boca grande do lobo mau. “Pra te comer”, disse-lhe o macaco-lobo.

Entra em cena Iran, o caçador. Tem nas mãos uma espingarda velha que “disparou” várias vezes nos três ensaios do dia. Do tipo “soca-tempero”, todos a experimentaram de brincadeira. Mas “arma antiga gosta de pegar resíduos de chumbo”, sabe o experiente vigia da escola Cenecista Miguel Matias. Para ele, foi apenas o que aconteceu. “Um infortúnio”. E nada mais pode declarar, desconfiado. No 2° Distrito Policial de Campo Alegre, o plantonista garante que não conhece ainda a nova versão de Chapeuzinho Vermelho. E que não há um processo teatral em investigação. Nem espingarda apreendida.

Sandra Chapeuzinho Vermelho tem namorado, e ele não é nem o lobo, nem o caçador. Assim ficaria afastada a suspeita de “agressão” provocada por ciúmes ou disputa entre dois adolescentes. Iran, o caçador, só não apareceu no sábado no hospital Arnon de Mello, o primeiro dia de visitas a Claudevan, porque vive em outro município, Limoeiro, e ainda afastado da cidade, na fazenda Recanto.

A “vovó” Alzineide Nazário dos Santos, 18 anos, sentou-se à beira do leito de Claudevan. Na hora em que o caçador quase matou de verdade o lobo mau ela estava escondida atrás de um vaso, já “devorada”. Ficaria dentro de um armário, cumprindo o roteiro da “narradora” Andrea Maria dos Santos, 18 anos. Não conseguindo, “o jeito foi improvisar com uma planta”.

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Publicado no Estadão em 16/9/1996

 

As visitas lotaram a enfermaria. Uma diretora do hospital ameaçou mandar todos embora por causa do repórter e fotógrafo “presentes sem autorização”. Um funcionário chegou a pedir que “essa história fosse esquecida”, porque “Alagoas já foi muito difamada por causa do (ex-presidente) Collor e do (empresário) PC Farias”.

Um final feliz: Chapeuzinho Vermelho e a vovó revelaram que, “agora, o lobo mau ficou sabendo que é muito querido por todos colegas de classe.”

 

 

 

 

 

No harém em Gaza com Bill e Monica

Queria saber: qual o impacto do caso Bill e Monica num harém? Mesmo em Gaza, num dos piores momentos de confronto com Israel, em 1998, consegui encontrar um harém que me aceitou como visita. Vamos entrar…

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No harém de Amin Ahmed Dahere, em Gaza, o presidente Bill Clinton é condenado por não ter comprado mais uma esposa, preferindo o adultério. E Mônica Lewinsky, que poderia valer o preço de um cavalo no mercado de Jerusalém, uns 2 mil dinares jordanianos, ou cerca de US$ 2.825, agora não seria mais aceita nem de graça.

“Mônica é o pivô de uma conspiração de Israel contra o processo de paz” – diz Ahmed Dahere, 37, apenas duas esposas por não ter como sustentar quatro, e 13 filhos de 7 meses a 14 anos. E Abu Amar, o Pai Construtor, como os palestinos chamam o presidente Yasser Arafat, está diante de um dilema: “Não tem alternativa a não ser confiar em Clinton, desacreditado como o presidente Saddam Hussein”.

A primeira esposa, Rehab, 37, comprada por 1.300 dinares (US$1.836), e Numa, 30, mais cara 200 dinares (US$ 2.118,60), não dão opinião: fazem o café, caladas. Cada uma tem o seu quarto e “são tratadas igualmente”. Já se foi o tempo em que sultões atiravam rubis em piscinas de água quente para suas odaliscas. Poucos são os haréns em Gaza ou Hebron no limite fixado pelo arcanjo Gabriel: “Se uma esposa não for suficiente, tenha quatro”. O profeta Maomé teve 15. “Hoje está muito difícil ter uma só em Jerusalém”, lamenta Magheb, maïtre de hotel e noivo: “O dote inclui, além do dinheiro, uma casa, eletrodomésticos, jóias, às vezes até um carro… Uma mulher sai mais caro do que um cavalo!”

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Os preços são mais acessíveis na miserável e poeirenta Gaza. Ahmed Dahere sustenta suas mulheres e 13 filhos trabalhando como operário de construção em Israel a US$ 36 por dia. A sala de seu harém é o hall entre andares de um sobrado. Outro senhor de harém de duas esposas, Jihad Ayad, 40, é um pequeno comerciante que poderia se dar o luxo de comprar uma terceira. Mônica? Ele a recusa até doada, mesmo que uma estrangeira possa ter valor extra. “Uma agente do Mossad”, ele a rejeita.

Surgindo no momento em que o presidente Clinton parecia prestes a pressionar o governo israelense a fazer concessões à Autoridade Palestina, Mônica Lewinsky foi saudada por religiosos judeus como a reencarnação da bíblica rainha Esther, que dormiu com o rei Xerxes, da Pérsia, e salvou o povo de Israel da forca coletiva. Agente secreta ou divina, ela continua paralisando o processo de paz no Oriente Médio. “Se Clinton cair e vier Al Gore será ainda pior”, diz Ayad. Harém vem de harim, “lugar proibido” ou “sagrado”, em árabe, e também “o que é”.

Conheci outro harém em Bethlehem, a Belém em que Jesus nasceu. Afastado um pouco da cidade, numa colina, era uma tenda enorme de beduíno. O sultão ali preferia as gordas, mas muito gordas mesmo. Tinha quatro que pareciam irmãs. Elas dividiam os afazeres do dia e cada uma teve alguma participação no chá com “nana” (hortelã) que serviram. Não o tomaram; ficaram olhando o maridão com as visitas.

John Frederick Lewis - 'Life in the Harem'

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Por duas vezes, passeando com brasileiras no “shuk” (mercado) dentro das muralhas da velha Jerusalém, fui assediado por árabes que queriam comprá-las. Uma era uma negra exuberante, ex-dançarina de programas dominicais de TV. Os interessados se revezavam, seguindo-nos pelas ruelas da santa Via Sacra, cada um aumentando a oferta do anterior, baseada no câmbio de camelos (a cotação era publicada no Jordanian Times). Podia sair dali com uma manada, ou um saco de dinares. A outra amiga, loura. Ameacei vendê-la, de brincadeira. Bastou insinuar que havia uma pequena chance de negociação, instaurou-se uma perseguição sem trégua. Corremos até o Muro das Lamentações. Aqui recuperamos a monogamia e a paz.

 

Mister Fordwagen

 

Na balsa Guarujá-Santos, a pé, Henry Ford II e a mulher estavam se empapando na forte chuva de vento que desabara de repente. O melhor refúgio, até já oferecido, seria uma Kombi. Mas o poderoso dono da Ford, que veio ao Brasil lançar o primeiro Galaxie 500, entraria na concorrente Volkswagen? Façam suas apostas…

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Pouco antes, o dono da Ford Motor Company, neto do criador do Modelo-T e da primeira linha de montagem de carros do mundo, estava a pé, uma pasta em cada mão, ao lado da mulher Maria Christina Austin Ford, e acuado por um garoto que vendia laranja.

“Ô moço: leva uma aí…” – ouvia o grandalhão e rosado Ford II.

Armava-se um temporal de verão. Raios riscavam o céu. O casal Ford tinha ido ao Guarujá passar o fim de semana de sua visita de cinco dias ao Brasil, no final de janeiro de 1966, convidado de honra da festa anual do Clube Samambaia. A italiana Maria Christina, no primeiro ano de Miss Ford, brilhou no baile com um palazzo-pijama azul. Só não dançou.

“Aqui é a Saint-Tropez da América do Sul!” – ela descobriu.

Mister Ford estava no Brasil a negócios: “Nossos 233 revendedores vão vender o mais moderno automóvel fabricado na América do Sul” – anunciou ao desembarcar de seu Jet Star, em São Paulo. Era o Galaxie, a novidade do Salão do Automóvel de 1967. “… E seu preço será razoável, um pouco mais caro que o Aero-Willys e o Simca”.

Mister Ford comentou que “o carro no Brasil é caro por falta de concorrência”. E deu, por exemplo, a própria produção de mais de dez tipos só de carros-passeio: o Lincoln, Mercury, Comet, Fairlane, Galaxie, Thunderbird, Mustang, Falcon, Taunus, Cortina, Cobra e Bordinat Cobra. Para circular em São Paulo com seus convidados ele mandou trazer três Galaxies-500 do ano, dois outros de 1964 e um de 65. Mas não levou nenhum deles para o Guarujá. Sua mulher tinha descido a serra com amigos, no começo da tarde. E ele a seguiu à noite, de carona. Ficaram no prédio de 11 apartamentos de Luís e Alice Campelo, na praia das Tartarugas.

-Se seu carro quebrar no Brasil, qual outro alugaria ou compraria? – perguntou um repórter. Mister Ford ponderou: “Isso é muito difícil de acontecer… mas, se… eu pegaria um nacional, de preferência o Volks, agora muito popular nos Estados Unidos”.

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Mister Ford inspecionou as fábricas do Ipiranga e São Bernardo do Campo, com 4.088 empregados. Foi recepcionado na casa do industrial Ermelino Matarazzo e na Hípica. Agora esperava com a mulher a balsa para Santos, deixado no cais de Guarujá por seus anfitriões. Suava andando impaciente de um lado ao outro da rua. Tinha 49 anos e era dono de uma fortuna que chegaria a 200 milhões de dólares.

“Ô moço: leva uma laranja!” – o garoto perseguia Mister Ford.

Estava duas horas atrasado: no Rio o esperavam o presidente Castelo Branco e três ministros. Um Galaxie o levaria do cais de Santos para o seu Jet Star, no aeroporto de Congonhas.

A balsa atracou no Guarujá e partiu para Santos já debaixo do temporal. Mister Ford e Maria Christina, com um vestido de bolinhas pretas e rosas, correram para baixo da marquise. Mas a tempestade era de vento. Estavam encharcados, apertados no meio dos passageiros, quando o relações públicas da Ford avistou um abrigo: era uma Kombi da Breda Turismo.

Mister Ford ria muito ao passar as mãos nos vidros embaçados da Kombi. E Miss Ford reclamava de seus documentos molhados. A travessia de dez minutos já tem 37 anos.

PS.: este texto rendeu um aparelho de som num concurso da Volkswagen

 

Meu amigo Porro

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Valéria Schilling, Porro e Paulo Kus

Enfim, ontem, dia 1° de fevereiro, reabri meu arquivo em Folio. Filtrei-o via Windows para o Mac. Fácil, depois de anos de tentativas frustradas, desde que o Folio acabou. O primeiro artigo que surgiu foi o elogio fúnebre que escrevi para meu amigo Alessandro Porro, jornalista com quem partilhei guerra e paz no Oriente Médio por oito anos. Ficamos muito amigos. Chamava-o de Porro, como os outros jornalistas estrangeiros em Israel. Dia seguinte, hoje, 2/2, recebi uma mensagem de amigos em Atlanta, nos EUA, lembrando: “Hoje o Porro faria 86 anos”. Googlei “Alessandro Porro” e pouca coisa retornou. Nenhuma foto. Li, e recomendo, um longo e ótimo artigo de Ali Kamel para o Observatório da Imprensa (www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/mem211020031.htm), mesmo que tenha me irritado muito. Nele é dito que quem chamava o Alessandro de Porro não podia ser amigo dele. Como assim? Nunca o Porro me pediu para chamá-lo pelo seu nome, nem reclamou que eu e todos o chamássemos pelo sobrenome, mais curto. Que arrogância desqualificar dezenas de amigos do Porro por achar que o certo seria tratá-lo por Alessandro! Sabia dessa parte do texto sem tê-lo lido, até ontem. Escrevi para o Ali Kamel até que ele me concedeu o direito de ser amigo do… Porro. O elogio fúnebre que reproduzo agora, aqui, escrevi para o Observatório da Imprensa (embora não surja na pesquisa do Google). Se bem me lembro, Alberto Dines o encomendou, enquanto ambos víamos o caixão baixar à cova. Tenho um enorme respeito pelo Dines, meu guru desde sempre. Mas estou magoado com uma decisão que ele tomou: passou o título Meu Amigo Porro para Meu Amigo Alessandro. E substituiu sobrenome pelo nome em todo o corpo do texto. Merecia ser consultado. Impôs essa lenda de que o Porro só pode ser chamado de Alessandro. Que há de feio em Porro para que Dines e Kamel o evitem? Se não gostasse do próprio nome, porque nomeou uma filha de Alessandra Porro, mudando apenas uma letra. Ora, por favor… Mas aí está: Alessandro Porro continua polêmico e controvertido mesmo depois de morto. Saudades dele. Cometeu pecadilhos no jornalismo que o tornaram famoso, com Ché Guevara e com Cazuza, e também muitos acertos que, num balanço final, o absolvem. Tinha um imenso coração. E para todos: para quem o tratasse de Porro, ou Alessandro.


 

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A lembrança de Alessandro Porro me afligia nos últimos dias. Sabia-o mal de saúde e havia meses tentávamos marcar um encontro. Aí ligou Alessandra, uma de suas quatro filhas: “Papai morreu”.

Estava fechando a edição de segunda-feira do Diário do Comércio. Teclei “Alessandro Porro” no Google para coletar dados para uma nota de falecimento. Surgiram alguns textos que ele assinou na coluna Swan, em O Globo. Notícias de mais um livro que publicou, Casamento & Divórcio. Uma citação rancorosa em uma entrevista. Praticamente só. Quanta injustiça!

A Porro (no Brasil só o chamavam de Alessandro, mas no exterior, onde o conheci em 1977, era Mr. Porro) é debitada uma grande besteira jornalística. Não a li, não a vi, não a testemunhei, não conheço quem a confirme, mas apenas quem a repita, como se fosse lenda. É o relato da morte de Ché Guevara, escrito como se ele a tivesse assistido na Bolívia, mas despachada da redação da revista Realidade, na marginal Tietê, em SP. Como um bumerangue, o “furo” de reportagem voltou ao Brasil e o acertou em cheio, ferindo-o para toda a vida.

Nunca ouvi Porro falar de Ché desde que fomos apresentados, em Tel-Aviv. Ele era correspondente de Veja, eu do Estadão. Ele, veterano, eu começando. Frequentávamos o centro de imprensa com os brasileiros de O Globo, Jornal do Brasil e da Folha. Último a chegar, levei algum tempo até descobrir a concorrência mortal que nos unia cinicamente apenas no cafezinho, enquanto líamos comunicados do governo depositados em nossos boxes e ouvíamos o noticiário em inglês ou francês, cada um com seu rádio-gravador de pilha. Porro orgulhava-se de ter o melhor de todos. Em casa, o exibia: era um rádio tipo militar, reforçado para guerras, mas grande demais para carregar.

Porro não me declarou guerra. Até me ajudou com o credenciamento e a escolha do bairro para viver. Mostrou-me restaurantes. Aclimatou-me à vida israelense. Por ser o único semanário entre diários, ele se dava com todos, sem concorrência. Passava as noites de quinta-feira escrevendo; às sextas, comemorava. Lia com sotaque italiano a sua reportagem para os amigos. Depois, shabat, ia beber chá com hortelã no Café Kassit, na rua Dizengoff, onde se encontrava com Ibrahim, o seu amigo palestino. Visitava livrarias. Preparava ele próprio o jantar, quase sempre um espaguete a putanesca. O fim de semana só acabava na segunda-feira à tarde. Tinha um acordo com a mulher, Irene: ele limpava a casa de seu umbigo para cima, incluindo a montanha de louça suja que deixavam acumular, e ela ficava com o chão, o lixo, a roupa e um cão que tinha medo de tudo, até de passear.

Irene era uma negra escultural, descoberta por Porro quando dançarina dolivro-memorias-do-meu-seculo-lembrancas-de-um-corsario-8539-MLB20005831720_112013-O Sargentelli, num show brasileiro em Paris. Ela acabaria se tornando conhecida em Israel depois de fotografada com os seios oferecidos numa bandeja para capa de disco. Os árabes a saudavam com salamaleques, quando turistava pelas cidades palestinas da Cisjordânia. Mas alguns religiosos vizinhos de prédio não a queriam, nem ao marido, menos ainda ao cachorro – e uma vez tiraram dele alguns pelos para um antídoto contra os três.

Porro tinha um amigo inseparável em Israel: o norte-americano Barry Riesenberg, casado com Malka, então funcionária da El-Al, a companhia aérea israelense. Os dois escreveram um livro: como a paz em fim de negociações entre egípcios e israelenses seria recebida em várias partes do mundo. Eram páginas brancas, com uma frase só, às vezes com uma única palavra. O motorista de táxi em Nova York exclamaria: “Socorro!”, em iídiche. Yasser Arafat: “Socorro!”, em árabe (acho que também em hebraico). O papa: “Socorro!”, em polonês. Queriam publicá-lo a tempo de pegar a onda de consumo de fim de ano. Estavam seguros de que seria um grande sucesso. Mas a gráfica atrasou muito esperando o texto, que não existia. Pronto o livro, nenhuma editora aceitou distribuí-lo. Os dois autores resolveram protestar bloqueando a porta da principal livraria de Tel-Aviv, a Steimatsky, com um montão de exemplares. Mas um caminhão de lixo os levou todos embora.

No avião com o primeiro-ministro Menachem Beguin e a imprensa internacional, no primeiro voo histórico Tel-Aviv-Cairo, Porro pôs um exemplar do seu livro para circular. De repente, um jornalista gritou em inglês, mostrando-o a todos: “Eu comprei essa merda!”

Porro levantou-se e também berrou: “Ah, foi você!” A discussão continuou porque o único comprador queria seu dinheiro de volta. O avião gargalhava. Beguin pegou o livro e o repassou sem sequer folheá-lo. O coautor Barry acabaria usando o encalhe para calçar a própria cama ou como blocos de anotação.

No Cairo, Porro e um dos seguranças de Beguin se desentenderam à entrada da preciosa sinagoga dos remanescentes judeus do Egito. Foram apartados antes que se engalfinhassem. Barrado, ele aproveitou para ir ao shuk, o mercado. À noite, no Mena House Hotel, lá estava ele, como se nada tivesse acontecido, vestido com uma galabyia, a túnica dos árabes, toda branca. “É de linho”, exultava. Depois desta viagem, ele nunca mais pôde entrar em Israel sem ser levado por policiais para uma revista detalhada, em que até a pasta de dente era espremida. Cortesia do vingativo guarda-costas da comitiva de paz israelense.

O jornalista Porro que eu conheci prezava cada palavra que escrevia. Comparava as traduções para o árabe e o hebraico de acordos assinados em inglês. Atualizava-se obsessivamente sobre o Oriente Médio. Eram livros de história, biografias, ensaios, até a Bíblia, a Torá e o Alcorão. Lia os jornais americanos, italianos e franceses. Vendo-o tão zeloso imaginava que ele estava querendo abrir uma trajetória de trabalhos consistentes que o distanciassem cada vez mais do mito sombrio de Ché Guevara.

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No Egito: Porro, obviamente o mais elegante; eu entre ele e Wladimir Weltman

Porro tinha tanto humor quanto pavio curto. Eu o vi explodir dentro de um banco que não aceitou sua credencial de jornalista como documento de identidade. E o vi também se aproximar de um casal de velhinhos, abraçá-los como se os reencontrasse depois de perdê-los na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, fazer um escândalo público, eufórico, para depois se retirar sem dar nenhuma explicação. Ficou possesso quando alugou um carro branco, com motorista, para receber um Civita em Tel-Aviv, e apareceu um azul. Brigou comigo porque eu ia veloz de Beirute a Haifa, atrasado para enviar o artigo do dia, e ameaçou saltar no meio da estrada aberta por tanques, numa aldeia xiita. Não parei. Mas ele ainda me fez voltar uns 50 quilômetros, enfrentando de novo inúmeros check-points do exército israelense e de facções palestinas, ao descobrir que tinha esquecido os óculos no bar do hotel Commodore, nosso ponto de partida, horas antes.

Vivia uma vida desregrada. Fumava sem parar (e morreu aos 73 anos “sem pulmão”, como contou o amigo que o levou para o hospital). Bebia. Emendava dias e noites. Nunca o vi preocupado com dieta ou em fazer ginástica, caminhar. Um dia ele foi transferido de Israel para a Inglaterra. Em Tel-Aviv deixou a exuberante Irene, que passou a namorar um ferido de guerra sem uma perna. (Esse detalhe é importante: ao chegar em casa, ele tirava a “perna” e a arrumava, bem visível, ao lado da televisão). Em Londres deixou um olho, ao bater o rosto no corrimão da escada de um bar. Ganhou uma indenização por acidente paga por um de seus cartões de crédito. Dizia que ia comprar uma casa… Ele sonhava em abrir um restaurante pequeno. Mas não largava o jornalismo. Em todo grande acontecimento no Oriente Médio, lá vinha ele avisando, pelo telex, que estava voltando. Não importava a demorada revista-punitiva no aeroporto — ele não se permitia perder mais um capítulo de guerra e paz entre judeus e árabes palestinos. Sempre aparecia com um malte escocês para abrir com os amigos. Numa dessas viagens ele fez um trabalho memorável. Foi a reportagem da tragédia de Sabra e Shatila, o massacre de palestinos por forças cristãs libanesas, consentido pelo ministro da Defesa israelense na época, general Ariel Sharon. Ele mostrou ser inadmissível que Israel não soubesse o que acontecia nos campos de refugiados.

Porro gostava de casar (e dizia que procurava agora a sétima mulher) e de escrever livros (quantos publicou? não sei… Surpreendeu-me uma vez como autor de um livro sobre a operação Entebe; e ontem, como autor do guia Casamento & Divórcio; sempre, com projetos mirabolantes logo abandonados.) Um dia o reencontrei na plateia de uma palestra que fiz em São Paulo. Combinamos nos ver algum dia. Ele me mandou um e-mail com uma charge em que um nadador judeu abre uma piscina como Moisés, o Mar Vermelho, e uma pergunta sobre o jantar: “Quando?”

Pensei no “quando?” nos últimos dias. Como estaria o Porro? A poucas horas de ir a seu enterro, agora, senti que deveria escrever este testemunho. Será uma injustiça se um jornalista de tantas coberturas importantes e históricas, um homem notável, ficar relegado ao esquecimento ou só ser lembrado por um erro pelo qual pagou a vida toda.

 

Cocaína na Casa Branca

Os marqueteiros do presidente George W. Bush queriam uma dose real de cocaína no discurso que proclamaria a retomada da guerra às drogas. Para maior dramaticidade, a cocaína teria que ser negociada diante da Casa Branca. Feita a encomenda aos agentes da DEA, um pacote com pó branco foi mostrado pelo presidente Bush aos americanos, ao vivo na TV, em 5 de setembro de 1989, enquanto ele comentava: “Foi apreendido na praça do outro lado da rua da Casa Branca… Poderia ser heroína…”. A verdade foi bem outra. Toda a encenação não escondeu a trapalhada em que se envolveu a DEA. Deu tudo errado. E nem precisava. O Distrito de Colúmbia já era famoso por consumo de drogas. Apenas alguns meses depois, em 1990, o prefeito da cidade, Marion Barry, seria flagrado pelo FBI fumando crack, num quarto de hotel. E poucos anos antes, em 1981, o traficante mais procurado do mundo, Pablo Escobar, se deixou fotografar pela mulher, Maria Victoria, posando de turista diante da Casa Branca, com o filho (foto abaixo). Os três, depois, ainda visitaram o FBI.

O turista Pablo Escobar com o filho, diante da Casa Branca.

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Washington, DC — O discurso do presidente George Bush requeria um pacote de cocaína comprado diante da Casa Branca para ganhar maior dramaticidade. Marcaria o recomeço da guerra às drogas. Só que agora, quando um Juiz começou a ouvir o investigador encarregado da compra, e o traficante que foi preso, o drama virou uma comédia.

O investigador, Sam Gaye, lembra que seu chefe lhe perguntou, em 31 de agosto: “Você pode comprar droga perto na Avenida Pennsylvania, 1600? Dá para chamar qualquer dos traficantes que conhecemos?” O endereço era o da Casa Branca. E a missão tinha que ser cumprida em 24 horas. A ordem vinha diretamente do ministro da Justiça, Dick Thornburgh.

O primeiro traficante contatado não apareceu. O segundo, Keith Jackson, um estudante de 18 anos, não sabia onde era a Casa Branca. “Tivemos que manipulá-lo para que fosse até lá” — lembrou o encarregado das investigações da Drug Enforcement Agency (DEA) em Washington, William McMullan. O encontro, marcado por telefone, foi gravado. Mas quando o juiz Stanley Sporkin pediu a fita, ela já não existia mais.

O microfone secreto que Gaye levou para a operação de compra de droga na praça Lafayette, diante da Casa Branca, não funcionou. O câmera que filmava o encontro perdeu exatamente o momento da passagem da droga, porque uma mulher – um dos vários sem-teto que se manifestam ali – o atacou, aos gritos:

“Não tire minha foto, não tire minha foto.”

Os jurados não contiveram as gargalhadas. Riram ainda mais quando o vídeo foi exibido. Ele começa mostrando um dia de verão na praça Lafayette. Gaye é visto esperando na avenida Pennsylvania, com a Casa Branca e dezenas de turistas ao fundo. Logo que o traficante desce do carro, com o informante da polícia, vê-se uma mulher irritada aproximando-se da câmera. Por alguns momentos, o foco passa para a grama, o asfalto, o horizonte, e quando volta a focar na direção certa, o negócio já havia sido concluído, e traficante e policial já estavam distantes um do outro.

cocaPor fim, o negócio não ocorreu como se esperava. Jackson não passou o pacote de crack- cocaína fumável diretamente para Gaye, mas para o informante que arrumou o encontro. Uma foto que o mostra saindo do carro, para receber o pagamento de 2.400 dólares, foi tirada depois que da droga ser entregue. Jackson estuda no colégio Spingarn, em Washington, e não tem antecedentes criminais. Ele foi acusado por quatro vendas de cocaína — uma delas a que rendeu o melhor momento da proclamação de guerra às drogas do presidente George Bush, ilustrando como é fácil comprar drogas. Até mesmo diante da Casa Branca.

 

Comprei crack em SP: http://wp.me/p5l96l-87