Niède Guidon

Niède Guidon, Serra da Capivara, Piauí (foto www.saoraimundo.com)

Niède Guidon, Serra da Capivara, Piauí (foto http://www.saoraimundo.com)

A dama das cavernas na caatinga do Piauí, Niède Guidon, arqueóloga paulista, desenterrou um Brasil de 70 mil anos que está revolucionando a pré-história das Américas. Mas agora ela só quer encontrar certo homo sapiens sapiens de apenas 238 anos, Wolfgang Amadeus Mozart, e não consegue descobrir nenhum rastro dele em São Raimundo Nonato, a 435 km ao Sul de Teresina.

  “Estou doente de não poder ouvir a Flauta Mágica” (de Mozart) – lamenta Guidon: “Chega a doer…” Perfumes ela tem: usa Diorissimo, até nas cavernas. Há vinho francês na adega. Lá fora a caatinga virou um jardim, tanto que choveu aplacando uma das maiores secas do sáculo: “É uma beleza que não se esgota” – maravilha-se. A seus pés brincam os três inseparáveis cachorrinhos Schnauzer, alemães. Ela vive um momento de glória: seu trabalho de 23 anos está conquistando o reconhecimento científico mundial e até o interesse do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em Washington.

  Só falta ópera, e nem mesmo o homo sapiens vivo a substitui. “De vez em quando a gente fica sozinha na vida, não é? Depois, já cheguei a uma idade em que essas coisas…” Guidon, 61 anos e solteira, ou “sábia” que pretende “permanecer sábia até a morte”, vai agora introduzir um sistema de vídeo com telão aonde muitos descendentes dos primeiros brasileiros estão só agora descobrindo a TV

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(divulgapiaui.com.br)

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O (próprio) passado não é importante para a arqueóloga que recuou o tempo dos primeiros homens na américa de 20 para 70 mil anos. Ela resiste em escavá-lo. Mas faz um “Resumo da ópera” pessoal: a paulista de Jaú formou-se em História Natural na USP, foi professora em escolas de pequenas cidades de interior, a mãe morreu quando tinha seis anos e o pai está com 90 anos, aposentado como fiscal de rendas do estado. Mais uma escavada, e revela:

  “Tive um problema. Éramos três professoras morando sozinhas. Também dirigíamos carro. E não íamos a missa aos domingos. Eu ainda tinha que falar de evolução em algumas aulas. Alunos perguntavam: mas, e Adão e Eva? Aí denunciaram que estávamos ensinando filosofia ateia e pregando amor livre. A Secretaria da Educação abriu um inquérito. Fomos absolvidas de qualquer erro, mas condenadas a partir por falta de clima para permanecer. Então nos comissionaram no Museu do Ipiranga, com vaga, na época, apenas no departamento de arqueologia”.

  Outra cavucada, e Guidon acrescenta: “Aí me perguntei o que era arqueologia. E descobri que não sabia a resposta. Fui ao diretor do museu para dizer que não poderia trabalhar, a menos que aprendesse. Só existiam cursos nos Estados Unidos, na Inglaterra ou na França”. Ela apostou na terra do avô, francês. E ganhou uma bolsa para a Sorbonne. Viveu Paris de 1961 a 62. E o Brasil do golpe militar de 1964, quando de novo a denunciaram, como subversiva. “Tinha ideias socialistas. Mas não fui uma socialista de carteirinha. E nem fiz política estudantil”. Mesmo assim a demitiram. Ela então voltou a ser professora e estreou no comércio até que uma tia relacionada aos militares aconselhou: “Suma”. E ela sumiu mesmo. Continua “sumida”, o lado franco mais pesado que o brasileiro, professora na Escola de altos Estudos em Ciências Sociais, com intervalos em que se transforma na dama das cavernas da Serra da Capivara, no sertão do Piauí, sob o patrocínio oficial da França e apoio da Itália.

  Madame Guidon não apagou em Paris a lembrança dos “bordados de pedra” que viu em 1963 nas fotos levadas ao Museu do Ipiranga pelo então (e atual) prefeito de São Raimundo Nonato, Gaspar Dias. “Era uma arte diferente de tudo aquilo que existia na literatura”, ela lembra. Tentou ver de perto, mas não passou de Petrolina, à beira do rio São Francisco, em Pernambuco, barrada por uma ponte caída. Conseguiu, sete anos depois, ao final de uma expedição franco-brasileira a tribos indígenas em Goiás: “Levamos uma semana rodando de jipe por um areão infernal”. Mas foi um vernissage pré-histórico. “Ah, vi que os desenhos eram de um gênero ainda desconhecido no Brasil. Catei cacos de cerâmica. E tirei fotos”. A França, interessada, logo liberou verbas para uma missão, em 1975, depois repetida em 1978. Hoje já são mais de 400 galerias, com um acervo de 25 mil cenas coloridas de sexo, dança, caça, animais, guerra, colheita e jogos, pintadas entre 17 e 12 mil anos, numa extraordinária paisagem esculpida pela erosão.

imagem015  O trabalho de desvendar a coleção de arte pré-histórica do Piauí foi passado há 13 anos a uma antropóloga francesa, Anne-Marie Pessis. Ela se adaptou à caatinga sem abandonar o perfume Rive Gauche. Alguns desenhos são de homens com pênis gigantes – “talvez símbolos de poder, como um cocar”. Já as mulheres têm a vagina representada fora do corpo, portátil. E há figuras sem sexo definido. As cenas variam do beijo ao sexo grupal. Nada por acaso: os primeiros artistas brasileiros dão aos especialistas a clara intenção de “registrar, marcar o cotidiano”. Guidon escreveu o livro Peintures Prehistoriques du Brèsil, publicado na França, em 1991, mas acabou se dedicando totalmente à chefia de uma pesquisa global, que incluiu zoólogos, geólogos e botânicos. O Brasil começou a coparticipar via Conselho Nacional de Pesquisas (antigo CNPq), o governo do Piauí, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), e os institutos de Desenvolvimento Florestal (IBDF) e o de Meio ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Um projeto de proteger os 130 mil hectares da Serra da Capivara com um Parque Nacional, anunciado em 1979, só nasceu depois de uma difícil gestação de nove anos, dando tempo a devastação de algumas áreas de caatinga virgem, primária, e a chegada dos grafiteiros. A ONU logo o batizou de Patrimônio da Humanidade.

  As comunidades vizinhas ao Parque Nacional entraram nos planos de Guidon. “Partimos do princípio de que preservação da natureza é um luxo que só existe quando se tem o suficiente para sobreviver. Quem está com fome vai caçar mesmo”. Ela se tornou “mãe” para 600 crianças: deu-lhes três escolas, três refeições por dia, chuveiro com água em plena seca, e postos de saúde. E um “pai” para os sertanejos sucessores dos índios Pimenteiras e Jaicós: ensinou-lhes a ler e escrever, a escavar e peneirar os tesouros arqueológicos sob seus pés, e os preparou para o turismo e a apicultura. Ê uma “cabra-macho”, dizem de madame Guidon, 1,5 metro de altura, porque ela pilota trator, escala íngremes paredões, sobreviveu ao ataque de abelhas que a furaram com 200 picadas, trabalha direto de 4 da madrugada às 10 da noite enfrentando pedreiros, posseiros, prefeitos e até preconceitos científicos ao desbravar a pré-história do continente americano.

(www.saoraimundo.com)

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  Um telefonema de Paris localizou Guidon em Teresina, num dia de 1981. “Temos duas datações de 25 mil anos”, ela ouviu diretamente do laboratório. E respondeu: “Não, vocês misturaram as amostras. Não pode ser: na américa do Sul não tem nada dessa idade. Impossível”. O chefe entrou na linha: “Por isso estou telefonando. Quero que amplie as escavações. O carvão que você nos mandou tem 25 mil anos”. A sondagem aprofundou oito metros. E cada metro representou um salto de 10 mil anos. “A datação mais antiga que já temos é de 48.700 anos”, ela conta. “E ainda há material mais abaixo que ultrapassa o limite de medição do Carbono-14. Estamos aplicando outras tecnologias. Mas podemos calcular que os primeiros homens chegaram há 70 mil anos na Pedra Furada”.

  Chovia muito no sertão há 22 mil anos. “Era uma imensa quantidade de água” – e Guidon aponta para um vale ressequido, acrescentando: “Ali corria um caudaloso rio”. Antes, há 70 milhões de anos, as ondas do mar vinham bater por aqui. Grandes animais rondavam até 10 mil anos atrás a Pedra Furada – esse buraco de 15 metros de diâmetro num paredão com mais de 60 metros de altura, o cartão postal da Serra da Capivara que os franco-sertanejos apelidaram de Arco do Triunfo. Manadas de mastodontes e de superlhamas dominavam a paisagem. Os bichos-preguiça chegavam a ter oito metros de altura. E dos tigres dente-de-sabre restou uma preciosa mandíbula que disputa com um pedaço de crânio fossilizado, a cerâmica de 8.960 anos e um machado de pedra polida de 9.200 anos, o lugar de honra no Museu do Homem Americano, recém-fundado em São Raimundo Nonato.

  Um exame de fezes fossilizadas (coprólitos) do homo sapiens sapiens abala a tese de que os descobridores pré-históricos da América vieram da Ásia por um tapete gelado formado no Estreito de Behring. Elementar, como explica Guidon: “detectou-se a presença do Ancilóstomo, o verme do amarelão. Ê um parasita de clima quente. Ele não resistiria ao frio do Polo Norte. Até hoje não o encontraram na Ásia nem nos Estados Unidos. E ele existe na África e no Mediterrâneo. A tribo que chegou ao Piauí veio por um caminho quente”. Mas ela não rejeita nenhuma hipótese, e acrescenta outras: viagens por mar, através das ilhas aleutas, ou pelo Atlântico. Falta-lhe uma ossada para uma conclusão científica. O esqueleto mais antigo desenterrado na Serra da Capivara tem dez mil anos. A acidez da areia de clima tropical úmido corroeu os mortos pré-históricos.

  A dama das cavernas vai logo voltar à rotina de madame em Paris. “Importante”, diz Guidon: “Este trabalho não é meu. Sozinha não o teria feito nunca. Agora chegou o momento de ir me retirando aos poucos”. Ela tem que reassumir em dezembro seu posto na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. Precisa trabalhar: “Gasto o que ganho, porque o que a gente leva do mundo é o que viveu de bonito”. Para Cloet, Dachta e Mimo, os três cachorrinhos, já assegurou uma herança em dólares para que “vivam como sempre viveram”. Como antes, então, virá a São Raimundo Nonato só durante as férias, para continuar as escavações na Toca do Caldeirão do Rodrigues, iniciadas pelo arqueólogo italiano Fabio Parenti, 36 anos, autor de uma tese de doutoramento que formalizou para a comunidade científica as datações mais antigas da Serra da Capivara. Espera aterrissar num aeroporto já dentro da cidade, e não mais há 300 quilômetros, em Petrolina. Ela também quer encontrar um Parque Nacional funcionando como uma Disneylândia da pré-história. Está deixando pronto o projeto, com espetáculos de luz e som, grutas iluminadas por energia solar, hotel cinco estrelas, plataformas para mergulhos de asa-delta, cânions para escalar, anfiteatros naturais e guias formados. No antigo quartel da PM em que vive, ela começou a transferir a administração da Fundação Museu do Homem Americano (Fundham) para uma profissional contratada. E já escuta ao longe a Flauta Mágica.

Lagoa do Barro liga a TV

Foto de Clóvis Ferreira, Estadão Conteúdo, 19/11/1933.
Foto de Clóvis Ferreira, Estadão, 19/11/1983.

Faz 21 anos, em 19 de novembro, que a energia solar chegou a Lagoa do Barro, cidade do Piauí então acessível apenas a carro à gás, com bujão extra para a volta. Quem imaginar que houve corrida, enfim, às geladeiras, pois até aqui tudo apodrecia sob o calor do sertão, está enganado. O povo se reuniu diante da janela da Prefeitura para ver aquilo que muitos já tinham ouvido falar, mas nunca tiveram chance de ver:  a TV.

Hoje, quando texto e foto chegam a um blog na internet, a 510 milhões de quilômetros da Terra e a mais de dez anos de viagem, o robô Philae transmite as primeiras análises da superfície e as fotos de um cometa que pode explicar a origem do universo. 

A caixa preta foi se iluminando de cores até formar imagens e soltar um som que hipnotizaram a plateia de pé ou em lombo de burros. Pronto: acaba de chegar a TV em Lagoa do Barro, uma cidade com 48 anos e 4.819 habitantes isolada a 530 quilômetros ao Sul de Teresina, no Piauí.

  Olhos arregalados diante dos adultos vestidos de crianças do programa “Chaves”, no SBT, o roceiro Joaquim Dias, 50 anos, entra na idade da TV com um desafio: “Agora vamos ver se há mesmo roubalheira em Brasília, como já vieram me contar”. Até agora, explica, só “assistia o rádio, que pega mal”. Para o filho, Toninho, é uma estreia na vida. E ele nem parece perturbado: “Tenho medo, não” – avisa aos amigos. Mas atrapalha-se, talvez nervoso, quando lhe perguntam quantos anos tem. “Nenhum”, responde. O pai o socorre, enquanto o televisor vai sendo ajeitado numa janela da escola José Magalhães Ribeiro, na praça principal, em obras: “Deve estar com 16 anos, porque já pode votar”.

  No ar, a TV em Lagoa do Barro. Mas onde estará Toninho? Sumiu, e ninguém o encontrará mais nesta histórica sexta-feira, 18 de novembro de 1993. Até choveu por meia hora quando não chovia desde março, molhando superficialmente uma das maiores secas do século no Piauí.

  ***

  Foi um verdadeiro programa ao vivo de pré-estreia à magia da TV. O céu amanheceu bem coberto, mas o vento levava embora as nuvens e as esperanças de chuva, como nos últimos dias. Um cenário desolador: açudes secos, cacimbas com resto de água salobra e esverdeada, aguadores em seus jegues pela estradinha poeirenta de 107 quilômetros até São João do Piauí, o gado esquelético vagando em busca do verde, a mata só galhos, crianças só pele e osso, e camaleões disparando pelas paredes de barro vermelho. Então, choveu. Um alívio marcado por cheiro de terra e alegria em Lagoa do Barro. A confusão com um cachaceiro levado à delegacia dissipou-se logo aos primeiros pingos.

  “Cacau está caindo” – comentou Ursino Ribeiro Coelho dentro da drogaria Rainha dos Anjos, a padroeira da cidade. “Tá bonito”, completou Lucinha, por trás do balcão. No Hotel da Neguinha já se avaliava a chuva: “Vinte dessas é que resolvem”. No bar Sertanejo de Cecílio já se previa: “Amanhã vai ter rosa-de-jericó”, uma erva que se abre com a primeira chuva, e que sobrevive à seca enrolada como uma bolinha. Uma poça foi logo promovida a rio. Ela se formou no cruzamento das duas ruas principais. “Todo mundo empacado no rio” – gozou Andralino Martins Rodrigues, ex-operário de uma empreiteira em São Paulo, rindo de quem encharcava os pés ao tentar saltá-la. A enxurrada dos telhados enchia panelas no chão. “Parecia fina, mas deu tanta água”, constatou Abílio Marques da Silva, 79 anos, um pioneiro da cidade. Ele se lembra dos anos em que choveu: “Em 1924 foi bom. Em 1926, ótimo. Depois, só em 1940 e 44. As últimas duas foram em 1960 e 85”. E agradece a Deus pela “chuva que anima”.

  É Abílio quem sabe explicar a origem do nome Lagoa do Barro do Piauí. “Simples”, conta: perto da cidade brotando na caatinga, em 1945, o rio Gameleira fazia uma curva, aproveitada por olarias para o fabrico de telha e tijolo. Mas alguns habitantes folclorizam, a partir do nome de duas vizinhas – a Lagoa de Areia e a Lagoa de Baixo: “Tudo para ver se nasce alguma lagoa de verdade”.

  A primeira casa do povoado foi fincada debaixo de um juazeiro, quase em frente ao bar Sertanejo do Cecílio. Ao se emancipar, em 29 de abril de 1992, já eram mais de 150 casas. “Eu morava há um quilometro, e fui atropelado pelas construções”, lembra Abílio, encerrando a história de Lagoa do Barro. A chuva de hoje, para ele “vasqueira”, rara, será “de grande utilidade para o criatório” – as cabras e bodes que se alimentam da rosa-de-jericó. Já a TV, o outro grande acontecimento do dia, ele compara à uma escola. “Facilitará o aprendizado das crianças. Todo uso dela é uma educação”.

  ***

  As noites de Lagoa do Barro nunca mais serão as mesmas desde que o forasteiro Nelson de Oliveira Jorge chegou com uma filmadora, confundida com binóculo, e trouxe a luz solar para a TV e dez postes de rua, há 15 dias.

  “Luz é uma maravilha; a gente passeia mais favorável”, reconhece Abílio, o pioneiro da cidade que começa agora a ser iluminada. O breu só era defendido mesmo por alguns namorados. A TV foi prioritária, e não a geladeira para guardar vacinas no posto de saúde, ou mais postes, por decisão popular. Mas a prefeita Hildete Oliveira Coelho tem outros “projetos luminosos” para Lagoa do Barro já negociados com Nelson, diretor da Heliodinâmica. A luz deverá chegar, por exemplo, às salas de aula.

  “Vou sair no binóculo?”, pergunta um bêbado. Nelson nem responde porque surgem na rua duas senhoras conhecidas por “Marcianas”, e ele entra em ação com a filmadora. Hoje elas também são chamadas de “Canarinhas” porque se vestiram de amarelo brilhante. Sempre se vestem com as mesmas roupas e cores, e passeiam de mãos dadas. Correm de medo da câmera. Chamadas, devolvem um recado: “Já temos namorados”. Um assessor da Prefeitura tenta convencê-las a entrar no “binóculo”, mas volta comentando: “Cortaram as asas das Canarinhas… Estão bravas”.

  Outras duas senhoras famosas em Lagoa do Barro são as solteiras e octogenárias irmãs Valentina. A mais velha, Mundinha, 84 anos, não se aposentava para não ter que entrar num carro e ir até São João do Piauí para fazer a papelada. Acabou cedendo, na semana passada, tentada por um salário mínimo, mas não revela nenhuma remota pista do que sentiu. Ela pouco fala, atualmente. Olegária, com 80 anos, é mais “moderna”: viu TV uma única vez, em 1978, quando ficou num hospital em tratamento. “E avião, só de muito longe”. As duas passaram a vida na roça em Gameleira de Cima, há 12 quilômetros, e vieram à cidade só para enterrar o irmão, Constantino Aprígio, 78 anos, que “começou a morrer com diarreia e acabou de velhice”. Vão ficar até o dia dos Reis, em 6 de janeiro. Rostos marcados como a terra seca, enrugados, elas sorriem quando se fala em casamento: “Na idade em que estamos não se casa mais”, concordam.

  ***

  Lagoa do Barro não tem cinema. Um padre a visita a cada três meses. Um médico, uma vez por semana. “Aqui se morre de desnutrição”, diz o jovem Dr. Rosemildo de Souza Figueiredo. Os doentes partem da consulta de receita na mão atrás de Lucília, filha de 20 anos da prefeita Hildete e já tesoureira da Prefeitura, com o curso completo de segundo grau. “Ajudamos porque ninguém tem dinheiro para os remédios”, ela explica. Lucinha, na drogaria Rainha dos Anjos, vende mais vitaminas e analgésicos, porque “a maioria das receitas é aviada fora”. A feira vem às sextas de Olicuri, na Bahia, há 60 quilômetros. A porta para o resto do Brasil, São João do Piauí, abre-se para um ônibus semanal, ou carona em peruas movidas ao gás, em duas horas e meia de pé e buracos. Um único telefone serve a todos. Liga-se para o número (086) 487-1377, o posto telefônico na (futura) praça Tancredo Neves, e um funcionário da Prefeitura irá pessoalmente buscar em casa quem estiver sendo chamado. A única diversão era o jogo “Caipira” nas duas mesas de dados na rua principal. Mas agora chegou a TV.

  A TV e a luz dos dez postes são ligadas às 6 da tarde. Os telespectadores apertam-se num corredor diante da janela com o televisor de 23 polegadas. Pelos lados vão estacionando burros e ciclistas como automóveis num cinema ao ar livre. O Aqui Agora e o TJ Brasil, do SBT, reinam na primeira hora. O Jornal Nacional e Fera Ferida, da Globo, encerram a programação de três horas diárias, às 9 da noite, no horário local, um a menos do que em Brasília. A sessão poderá ser prolongada se Lagoa do Barro instalar mais baterias de energia solar, ampliando o sistema que custou Cr$ 1,5 milhão, e inclui uma parabólica que capta 8 canais.

  A estreia da TV, depois da chuva e da feira, na sexta-feira à tarde, atraiu uma multidão. A telespectadora Ana Silva recuperou com as primeiras imagens o tempo em que morava na favela Jardim Silvina, em São Bernardo do Campo. “Até já me vi em televisão falando do desabamento do meu barraco depois de dois dias de dilúvio”, ela conta. Era uma exceção: flagelada da chuva entre flagelados da seca, esnobou o programa Chaves, que “tanto já tinha assistido”. Mas os outros não desgrudavam os olhos da caixa preta iluminada. Alguns meninos na primeira fila chupavam dedos, distraídos e maravilhados.

  A mãe de Ana, também Ana Silva, 48 anos, assistia de camarote a sessão vespertina de TV: estava montada num jumento. Mais tarde andaria 18 quilômetros até o sítio do Magalhães, onde mora. E prometia: “Vou vir sempre ver TV”. Outra telespectadora-montada, Maria do Socorro Dias, estacionou o burro equipado com uma garrafa de cerveja, ao lado de um bebedouro de animais. Chapéu de couro de cangaceiro, Joaquim Dias espremeu-se entre os meninos na fileira da frente, e nem piscou, os olhos arregalados. Estava só, sem o filho Toninho, que escapou à primeira televisão da vida. Emissários que o procuraram voltaram ao “Chaves” derrotados.

  Joaquim será “freguês” dos noticiários. “Quero acompanhar as traquinadas de Brasília”. Com “Marcianas”, “Valentinas” e outros personagens na cidade, muitos dispensam a dose diária de novela. O vice-prefeito Hermínio Ribeiro concorda: “A gente agora vai se informar”. O homem da luz solar, Nelson, alimenta um curioso projeto pessoal de consequências imprevisíveis: mostrar aos habitantes de Lagoa do Barro como eles reagiram à chegada da TV. Está tudo gravado em sua filmadora. Para quem só agora descobre a televisão deve ser espantoso passar direto ao vídeo, e ver-se na tela. “Em Lajes do Piauí, um distrito de Coronel José Dias, já nos receberam como se fôssemos deuses ou ETs”, ele conta. “Ali sequer conheciam o gelo até outubro”.

  O filme de Nelson só não foi rodado na estreia da TV por falta de vídeo. E a câmera quase ficou despedaçada, por pouco não reduzindo a pó as cenas da chegada da TV em Lagoa do Barro, durante uma tomada arriscada em que filmava, deixada no chão, uma perua de faróis acesos se aproximando até cobri-la e derruba-la. A última imagem é a de um grande diferencial à frente, mais baixo do que se esperava, e o inevitável choque.

  O Brasil sem luz

  Mais de 30 milhões de brasileiros vivem como os 4.819 habitantes de Lagoa do Barro, sem luz, distantes da rede elétrica e do que acontece no Brasil. Os eleitores que elegeram o deputado João Alves (PPR-BA) no interior de Presidente Jânio Quadros, no Sul da Bahia, sabem “só por ouvir dizer” que uma CPI da corrupção poderá cassá-lo. Em todo o mundo, por um cálculo da ONU, são 2 bilhões que ainda não chegaram a idade da eletricidade.

  A solução que iluminou Lagoa do Barro estava no que existe de mais abundante e inesgotável no Nordeste: o sol. Ele pode brilhar à noite se durante o dia for captado e armazenado em painéis solares. A “fotossíntese elétrica” é feita por “módulos fotovoltaicos”, compostos por células de silício que produzem eletricidade quando expostas à luz, mesmo em dias nublados. Quanto mais módulos, mais energia. Cada um sistema de 40 watts custa cerca de US$ 500. Mais de 20 mil sistemas já foram instalados no Brasil pela Heliodinâmica, a única empresa nacional que produz células solares.

  A energia solar está nos barcos do navegador Amyr Klink, nas baterias que recarregam os aviões da Taba em aeroportos da Amazônia, na telefonia celular rural, em bombas de água de cacimbas do Nordeste, na iluminação pública do Palácio do Planalto, em cercas eletrificadas de fazendas e até num protótipo de carro solar brasileiro, o The Banana Enterprise. O diretor financeiro da Heliodinâmica, Nelson de Oliveira Jorge, iluminou uma caverna na Serra do Capivari, em São Raimundo Nonato, depois de inaugurar a TV de Lagoa do Barro. Ele próprio enfrenta a escuridão com um novo sistema de energia solar, portátil, já vendido para o exército brasileiro.