
Niède Guidon, Serra da Capivara, Piauí (foto http://www.saoraimundo.com)
A dama das cavernas na caatinga do Piauí, Niède Guidon, arqueóloga paulista, desenterrou um Brasil de 70 mil anos que está revolucionando a pré-história das Américas. Mas agora ela só quer encontrar certo homo sapiens sapiens de apenas 238 anos, Wolfgang Amadeus Mozart, e não consegue descobrir nenhum rastro dele em São Raimundo Nonato, a 435 km ao Sul de Teresina.
“Estou doente de não poder ouvir a Flauta Mágica” (de Mozart) – lamenta Guidon: “Chega a doer…” Perfumes ela tem: usa Diorissimo, até nas cavernas. Há vinho francês na adega. Lá fora a caatinga virou um jardim, tanto que choveu aplacando uma das maiores secas do sáculo: “É uma beleza que não se esgota” – maravilha-se. A seus pés brincam os três inseparáveis cachorrinhos Schnauzer, alemães. Ela vive um momento de glória: seu trabalho de 23 anos está conquistando o reconhecimento científico mundial e até o interesse do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em Washington.
Só falta ópera, e nem mesmo o homo sapiens vivo a substitui. “De vez em quando a gente fica sozinha na vida, não é? Depois, já cheguei a uma idade em que essas coisas…” Guidon, 61 anos e solteira, ou “sábia” que pretende “permanecer sábia até a morte”, vai agora introduzir um sistema de vídeo com telão aonde muitos descendentes dos primeiros brasileiros estão só agora descobrindo a TV
O (próprio) passado não é importante para a arqueóloga que recuou o tempo dos primeiros homens na américa de 20 para 70 mil anos. Ela resiste em escavá-lo. Mas faz um “Resumo da ópera” pessoal: a paulista de Jaú formou-se em História Natural na USP, foi professora em escolas de pequenas cidades de interior, a mãe morreu quando tinha seis anos e o pai está com 90 anos, aposentado como fiscal de rendas do estado. Mais uma escavada, e revela:
“Tive um problema. Éramos três professoras morando sozinhas. Também dirigíamos carro. E não íamos a missa aos domingos. Eu ainda tinha que falar de evolução em algumas aulas. Alunos perguntavam: mas, e Adão e Eva? Aí denunciaram que estávamos ensinando filosofia ateia e pregando amor livre. A Secretaria da Educação abriu um inquérito. Fomos absolvidas de qualquer erro, mas condenadas a partir por falta de clima para permanecer. Então nos comissionaram no Museu do Ipiranga, com vaga, na época, apenas no departamento de arqueologia”.
Outra cavucada, e Guidon acrescenta: “Aí me perguntei o que era arqueologia. E descobri que não sabia a resposta. Fui ao diretor do museu para dizer que não poderia trabalhar, a menos que aprendesse. Só existiam cursos nos Estados Unidos, na Inglaterra ou na França”. Ela apostou na terra do avô, francês. E ganhou uma bolsa para a Sorbonne. Viveu Paris de 1961 a 62. E o Brasil do golpe militar de 1964, quando de novo a denunciaram, como subversiva. “Tinha ideias socialistas. Mas não fui uma socialista de carteirinha. E nem fiz política estudantil”. Mesmo assim a demitiram. Ela então voltou a ser professora e estreou no comércio até que uma tia relacionada aos militares aconselhou: “Suma”. E ela sumiu mesmo. Continua “sumida”, o lado franco mais pesado que o brasileiro, professora na Escola de altos Estudos em Ciências Sociais, com intervalos em que se transforma na dama das cavernas da Serra da Capivara, no sertão do Piauí, sob o patrocínio oficial da França e apoio da Itália.
Madame Guidon não apagou em Paris a lembrança dos “bordados de pedra” que viu em 1963 nas fotos levadas ao Museu do Ipiranga pelo então (e atual) prefeito de São Raimundo Nonato, Gaspar Dias. “Era uma arte diferente de tudo aquilo que existia na literatura”, ela lembra. Tentou ver de perto, mas não passou de Petrolina, à beira do rio São Francisco, em Pernambuco, barrada por uma ponte caída. Conseguiu, sete anos depois, ao final de uma expedição franco-brasileira a tribos indígenas em Goiás: “Levamos uma semana rodando de jipe por um areão infernal”. Mas foi um vernissage pré-histórico. “Ah, vi que os desenhos eram de um gênero ainda desconhecido no Brasil. Catei cacos de cerâmica. E tirei fotos”. A França, interessada, logo liberou verbas para uma missão, em 1975, depois repetida em 1978. Hoje já são mais de 400 galerias, com um acervo de 25 mil cenas coloridas de sexo, dança, caça, animais, guerra, colheita e jogos, pintadas entre 17 e 12 mil anos, numa extraordinária paisagem esculpida pela erosão.
O trabalho de desvendar a coleção de arte pré-histórica do Piauí foi passado há 13 anos a uma antropóloga francesa, Anne-Marie Pessis. Ela se adaptou à caatinga sem abandonar o perfume Rive Gauche. Alguns desenhos são de homens com pênis gigantes – “talvez símbolos de poder, como um cocar”. Já as mulheres têm a vagina representada fora do corpo, portátil. E há figuras sem sexo definido. As cenas variam do beijo ao sexo grupal. Nada por acaso: os primeiros artistas brasileiros dão aos especialistas a clara intenção de “registrar, marcar o cotidiano”. Guidon escreveu o livro Peintures Prehistoriques du Brèsil, publicado na França, em 1991, mas acabou se dedicando totalmente à chefia de uma pesquisa global, que incluiu zoólogos, geólogos e botânicos. O Brasil começou a coparticipar via Conselho Nacional de Pesquisas (antigo CNPq), o governo do Piauí, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), e os institutos de Desenvolvimento Florestal (IBDF) e o de Meio ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Um projeto de proteger os 130 mil hectares da Serra da Capivara com um Parque Nacional, anunciado em 1979, só nasceu depois de uma difícil gestação de nove anos, dando tempo a devastação de algumas áreas de caatinga virgem, primária, e a chegada dos grafiteiros. A ONU logo o batizou de Patrimônio da Humanidade.
As comunidades vizinhas ao Parque Nacional entraram nos planos de Guidon. “Partimos do princípio de que preservação da natureza é um luxo que só existe quando se tem o suficiente para sobreviver. Quem está com fome vai caçar mesmo”. Ela se tornou “mãe” para 600 crianças: deu-lhes três escolas, três refeições por dia, chuveiro com água em plena seca, e postos de saúde. E um “pai” para os sertanejos sucessores dos índios Pimenteiras e Jaicós: ensinou-lhes a ler e escrever, a escavar e peneirar os tesouros arqueológicos sob seus pés, e os preparou para o turismo e a apicultura. Ê uma “cabra-macho”, dizem de madame Guidon, 1,5 metro de altura, porque ela pilota trator, escala íngremes paredões, sobreviveu ao ataque de abelhas que a furaram com 200 picadas, trabalha direto de 4 da madrugada às 10 da noite enfrentando pedreiros, posseiros, prefeitos e até preconceitos científicos ao desbravar a pré-história do continente americano.
Um telefonema de Paris localizou Guidon em Teresina, num dia de 1981. “Temos duas datações de 25 mil anos”, ela ouviu diretamente do laboratório. E respondeu: “Não, vocês misturaram as amostras. Não pode ser: na américa do Sul não tem nada dessa idade. Impossível”. O chefe entrou na linha: “Por isso estou telefonando. Quero que amplie as escavações. O carvão que você nos mandou tem 25 mil anos”. A sondagem aprofundou oito metros. E cada metro representou um salto de 10 mil anos. “A datação mais antiga que já temos é de 48.700 anos”, ela conta. “E ainda há material mais abaixo que ultrapassa o limite de medição do Carbono-14. Estamos aplicando outras tecnologias. Mas podemos calcular que os primeiros homens chegaram há 70 mil anos na Pedra Furada”.
Chovia muito no sertão há 22 mil anos. “Era uma imensa quantidade de água” – e Guidon aponta para um vale ressequido, acrescentando: “Ali corria um caudaloso rio”. Antes, há 70 milhões de anos, as ondas do mar vinham bater por aqui. Grandes animais rondavam até 10 mil anos atrás a Pedra Furada – esse buraco de 15 metros de diâmetro num paredão com mais de 60 metros de altura, o cartão postal da Serra da Capivara que os franco-sertanejos apelidaram de Arco do Triunfo. Manadas de mastodontes e de superlhamas dominavam a paisagem. Os bichos-preguiça chegavam a ter oito metros de altura. E dos tigres dente-de-sabre restou uma preciosa mandíbula que disputa com um pedaço de crânio fossilizado, a cerâmica de 8.960 anos e um machado de pedra polida de 9.200 anos, o lugar de honra no Museu do Homem Americano, recém-fundado em São Raimundo Nonato.
Um exame de fezes fossilizadas (coprólitos) do homo sapiens sapiens abala a tese de que os descobridores pré-históricos da América vieram da Ásia por um tapete gelado formado no Estreito de Behring. Elementar, como explica Guidon: “detectou-se a presença do Ancilóstomo, o verme do amarelão. Ê um parasita de clima quente. Ele não resistiria ao frio do Polo Norte. Até hoje não o encontraram na Ásia nem nos Estados Unidos. E ele existe na África e no Mediterrâneo. A tribo que chegou ao Piauí veio por um caminho quente”. Mas ela não rejeita nenhuma hipótese, e acrescenta outras: viagens por mar, através das ilhas aleutas, ou pelo Atlântico. Falta-lhe uma ossada para uma conclusão científica. O esqueleto mais antigo desenterrado na Serra da Capivara tem dez mil anos. A acidez da areia de clima tropical úmido corroeu os mortos pré-históricos.
A dama das cavernas vai logo voltar à rotina de madame em Paris. “Importante”, diz Guidon: “Este trabalho não é meu. Sozinha não o teria feito nunca. Agora chegou o momento de ir me retirando aos poucos”. Ela tem que reassumir em dezembro seu posto na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. Precisa trabalhar: “Gasto o que ganho, porque o que a gente leva do mundo é o que viveu de bonito”. Para Cloet, Dachta e Mimo, os três cachorrinhos, já assegurou uma herança em dólares para que “vivam como sempre viveram”. Como antes, então, virá a São Raimundo Nonato só durante as férias, para continuar as escavações na Toca do Caldeirão do Rodrigues, iniciadas pelo arqueólogo italiano Fabio Parenti, 36 anos, autor de uma tese de doutoramento que formalizou para a comunidade científica as datações mais antigas da Serra da Capivara. Espera aterrissar num aeroporto já dentro da cidade, e não mais há 300 quilômetros, em Petrolina. Ela também quer encontrar um Parque Nacional funcionando como uma Disneylândia da pré-história. Está deixando pronto o projeto, com espetáculos de luz e som, grutas iluminadas por energia solar, hotel cinco estrelas, plataformas para mergulhos de asa-delta, cânions para escalar, anfiteatros naturais e guias formados. No antigo quartel da PM em que vive, ela começou a transferir a administração da Fundação Museu do Homem Americano (Fundham) para uma profissional contratada. E já escuta ao longe a Flauta Mágica.