Aos Amigos

Sempre lembram de mim perto do Natal. Não por ser judeu, evidentemente. Pelo judaísmo, o meu grande dia é o de malhar o Judas. Os mineiros levam a sério a delação não premiada de Jesus. Uma vovó em Minas foi quem melhor resumiu a minha condição judaica:
“Você é um menino tão bom… nem parece judeu”.
Lembram de mim no Natal porque vivi na Terra Santa e fui algumas vezes a Bethlehem, Casa do Pão (em hebraico) e da Carne (árabe); para nós, Belém. Sempre voltava da visita anual à Basílica da Natividade com garrafas do intragável vinho local.
Dali a alguns dias, partiria para o Brasil em férias, com escala na festa de Natal na casa de um amigo em Paris. O vinho bíblico causava certo impacto à mesa da ceia. Apontavam-no dizendo: “Veio da terra de Jesus!”. Mas todos bebiam mesmo o francês.
Pois o Natal em Belém é como seu vinho: uma decepção. Por cinco anos seguidos, a única “novidade” que revi foi um pinheirinho de verdade, brotando ao lado da delegacia de polícia, em frente à Natividade. Uma repórter americana levava fita métrica para anunciar aos cristãos dos EUA quantos centímetros crescera a futura árvore de Natal autêntica da cidade. O prefeito Elias Freij vivia seus dias de glória do ano, procurado por jornalistas do mundo inteiro. Mas fazia charme e só reclamava, como se estivesse diante do Muro das Lamentações, a alguns poucos quilômetros de distância, em Jerusalém. Lamentava:
— O Natal vai ser uma tristeza, por causa da guerra no Líbano, ou da ocupação israelense, dos combates em Gaza, da ascensão de aiatolá Khomeini no Irã, porque Yasser Arafat foi expulso de Beirute, por Sabra e Shatilla…
Uma única vez ele denunciou um culpado inesperado: a greve da companhia aérea jordaniana, o voo preferido dos peregrinos. Por ser baixinho, servia de explicação maldosa para a altura da porta da Basílica da Natividade, 1,25 metro. Ironizavam: “Só ele não se curva para entrar na igreja…” A verdade, porém, é que assim, baixinha, impedia as orações de fiéis a cavalo ou a camelo.
O canto do muezim convocando os muçulmanos às orações do dia soa mais poderoso e mais popular que os sinos da Natividade, inaugurada em 333 d.C.. E a noite de Natal se resume à Missa do Galo, transmitida ao vivo para o mundo porque, graças ao fuso horário, antecede a do Vaticano. A procissão vem de Jerusalém. À entrada, cruza a tumba de Raquel. Ali perto, em Hebron, jaz o patriarca de judeus e árabes, Abraão.
A estrela de prata, com 14 pontas, marca o exato local em que cristo nasceu. É uma gruta escura, iluminada por velas e lamparinas a óleo. Respira-se incenso. Os turistas descem uma escada, e saem subindo outra. Poucos são aqueles que se ajoelham e rezam, fechando os olhos aos flashes que capturam selfies para álbuns de recordações ou Instagram. Guias traduzem para várias línguas o que foi aqui inscrito em latim, em 1917: “hic de Virgine Maria, Jesus Christus natus est” (“Aqui Jesus Cristo nasceu da Vir­gem Maria”).
Todo Natal um ou dois peregrinos saem da Natividade direto para o manicômio, em Jerusalém. Incorporam Jesus. Em cinco dias, na companhia de outros Jesus e alguns São João Batista, voltam ao que eram, e ganham alta.
Feliz Natal!

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