Nunca tinha estado na Amazônia montanhosa, do lado do Peru e Equador.
Fui à Cordillera del Condor na última erupção da longa guerra por retificação de fronteira entre peruanos e equatorianos iniciada em 1821.
Em troca de independência da Grã-Colômbia, o Equador pagou com territórios da bacia amazônica suas dívidas com credores britânicos. Mas o Peru protestou: eram dele as terras.
Os dois países brigaram desde 1932, com períodos de não-paz mas sem-guerra, até 1995 – o último grande enfrentamento.
Foi quando conheci a Amazônia do Condor. O céu era dos aviões de combate e a floresta, de soldados. Tiros, bombas — e aquela paisagem majestosa mas muito úmida, quente, uma sauna sob constante bombardeio de mosquitos.
Em 1998, a paz entre Equador e Peru foi assinada no Rio, sob os auspícios do Brasil e
testemunho de outros países vizinhos. Em 1999, implementada.
CONDOR, Equador — Depois do bombardeio aéreo, nem os mosquitos da floresta voltaram a atacar. Silenciam os pássaros, espantados pelo ruído já distante dos helicópteros. Cenário grandioso na Amazônia que começa a se apagar sob a neblina do entardecer, a 1.800 metros de altura. Abaixo estende-se o vale do rio Cenepa, afluente sangrento da guerra entre Equador e Peru.
Os “azuis” saem das trincheiras dentro da mata. Olham para o horizonte buscando os helicópteros “vermelhos”, peruanos. Vão se reunindo na cozinha do acampamento, entre galinhas ciscando e cães sonolentos. Ouvem, nítido, o motor de um avião. Todos correm. Escalam ribanceira, jogam-se no mato. “Azul!”, grita o capitão Victor Burneo. Só um susto.
O jantar está quase pronto: sopa de carne, arroz e café.
No último bombardeio “vermelho”, dois aviões subsônicos despejaram três bombas de 250 quilos. O impacto abriu crateras como as dos vulcões ao redor de Quito. Árvores com troncos grossos jazem com as raízes arrancadas. O capitão Burneo fica pequeno no fundo do buraco de quatro metros por oito de diâmetro. Uma explosão abriu uma fonte regurgitante, que molha a terra revolvida. Os vidros dos dois casarões do quartel Centinela del Condor estão em pedaços. E a bandeira amarelo-azul-vermelha tremula provocante no ponto mais visível da cordilheira. Os peruanos não a miram, nem ao destacamento: descobriram que são alvos vazios. Bombardeiam a floresta, onde os “macacos” do Equador passam o tempo escondidos.
“Apenas nos defendemos”, explica o capitão Burneo. Contra um ataque de paraquedistas, fincaram lanças no chão. Contra uma escalada “vermelha”, armaram espantalhos com fuzis de mentira. Tampas de latas numa cerca dão o alarme nas infiltrações. Caminhões-ônibus que circulam ao pé do Condor, os “superboeing”, exibem a foto tradicional do mestre de guerrilha Che Guevara. A guerra, na Amazônia montanhosa, recortada de penhascos, “pode durar anos, sem vencedor”, garante um soldado. Só os aviões o assustam. “Mas há que superar o medo”, ele repete como se estivesse lendo a ordem escrita numa parede do Centinela del Condor: “Estar fisicamente preparado, mentalmente forte, tecnicamente superior, moralmente sadio”.
O capitão Burneo não faz uma frase de efeito ao dizer que vai mostrar o “teatro de operações”. Ele tem uma vista privilegiada da guerra. As bases do Peru em Soldado Vargas, Destacamento Nuevo e Soldado Pastor estão abaixo margeando o rio Cenepa. As bases equatorianas mais bombardeadas são visíveis ao Norte: Tiwintza, Sur, Cueva Los Tayos, Coangos e La Montanita.
“Nenhum de nossos fortes caiu”, garante o capitão Burneo. “As notícias de recuo equatoriano são propaganda de guerra do Peru. Resistimos, e vamos continuar resistindo”.
Condor Mirador está a 50 quilômetros de Gualaquiza, na província de Morona Santiago, a uma hora de voo de Quito, ou quase 20 horas em ônibus. Os aviões peruanos a alcançam em dois minutos, decolando da fronteira. Os helicópteros surgem em ondas a cada oito minutos. Surpreenderam na quinta-feira, disparando em plena uma da tarde, sem a neblina e a noite com que até agora se protegeram. Mas as rajadas não acertaram nenhum “azul”. As incursões dos aviões
O exército equatoriano está reformando a estrada de terra que sobe o Condor, depois do rio Zamora, atravessado numa balsa camuflada com ramos de árvores da floresta. O front peruano, em Tumbes, na costa do Pacífico, não é assim tão acessível. Os soldados são substituídos por helicópteros. Na sexta-feira, muita munição era despachada para o alto. Os reforços para o fim de semana incluíam dezenas de caixas de morteiros. Um caminhão lança-mísseis saiu três vezes do quartel de Gualaquiza, mas voltou armado. As famílias dos soldados, de plantão na entrada, ficaram preocupadas.
“Meu irmão foi para o Cenepa”, diz uma mulher. “Estou aqui querendo notícias”. Pais, filhos e vizinhos do quartel passam o dia na “Sala de Espera”, acompanhando o movimento dos helicópteros e caminhões. Um índio Shuar, Angel Yunan, que tem dois filhos sargentos e dois sobrinhos soldados, mostra-se orgulhoso aos repórteres: “Os peruanos sempre roubaram nosso território. Mas desta vez, não vamos deixar”, ele diz.
Os soldados que vão partir para o front ouvem o sermão de um sargento sobre os “inimigos peruanos”. Algumas frases saem com quatro insultos seguidos. Todos se preparam para um batismo de fogo. Há pouco, no bar El Barquito, muitos brincaram de guerra, num videogame. Só recrutas que acabaram de passar por um treinamento especial. Cada um ganha um saquinho de chiples – banana e batata fritas, misturadas a pedaços de carne. O prefeito de Azogues, Segundo Germano, acaba de descarregar latas de atum, mas elas não são distribuídas. O depósito do quartel se enche de dólares enviados de todo o Equador.
Os piuins e borrachudos da Amazônia do Condor são o sancudo e o arenilla. Os repelentes sumiram das farmácias de Quito, requisitados no front. Coincidência ou não, com a guerra eles estão em trégua. A floresta também mudou. Feriu-se com picadas. Desnudou-se com as explosões. Encheu-se de soldados. Coloriu-se com bandeiras. Mas mais estranho é o total silêncio que reina depois dos bombardeios. Os habitantes da floresta parecem resignados. Em Chuchumbleza, pequeno povoado entre Gualaquiza e a Cordilheira do Condor, comboios militares cruzam o rio em que crianças brincam sem escolas, a vida alterada com a guerra. Os caminhões “superboeing” lotam nas viagens para o quartel, os passageiros amarelos de pó. Os casebres pelo caminho parecem vazios.
A partir de Chuchumbleza já se avista a Cordilheira do Condor, majestosa no meio de duas serras menores. A estrada vai margeando o rio Zamora, que se une ao Santiago, depois ao Maraon, e chega ao Brasil com o nome de Amazonas. O Cenepa corre entre eles, centro da nova guerra pela demarcação dos últimos 78 dos 1.600 quilômetros da fronteira entre Equador e o Peru. Os “vermelhos” lutam pelo direito territorial adquirido com o Protocolo do Rio de Janeiro, assinado há 53 anos. Os “azuis” reivindicam um direito histórico e a “inexecutabilidade” do acordo, “anulado” pela descoberta do rio Cenepa em 1947. Mais: os equatorianos contam ter perdido 60,89% de seu território desde 1915 – um total de 428.217 quilômetros, ou quatro vezes o tamanho de Portugal e 20 o de Israel. Só o Peru já teria engolido 248.217 quilômetros – denuncia o historiador Jorge Villacrès Moscoso. A Colômbia, 180 mil, com o tratado Muòz Vernaza-Suárez, em 1916.
“Não vamos perder novos territórios”, repetem as pessoas mais simples ao longo da estrada para a Cordilheira do Condor. Mas a guerra se aproxima lentamente mais do Equador do que do Peru. Uma bomba já foi descoberta na ponte de Padmi, na província de Morona-Santiago. A polícia desconfia de um “infiltrado”. Um grupo de paraquedistas peruanos já pulou perto de Tiwintza, na retaguarda dos destacamentos de Cueva de los Tayos, Base Sur e Coangos. “Tudo indica que pularão de novo”, adverte um oficial. Muitos reforços foram despachados para Huaquillas/Águas Verdes, na fronteira do Pacífico entre os dois países, como se uma invasão peruana fosse iminente. E Gualaquiza, “A “Pérola da Amazônia”, está virando uma cidade fantasma.
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