O primeiro “computador pessoal” a gente nunca esquece.
O meu foi um Tandy, da Radio Shack, made in Texas, e que comprei por 300 dólares, em Washington.
Acima do teclado uma janelinha mostrava apenas as últimas linhas escritas. Era o monitor.
Antepassado dos toshibinhas, vovôs dos muito finos, leves e poderosos laptops atuais, esses Tandy. O meu poderia ser considerado o primeiro de uma longa ascendência resumida hoje a só um herdeiro, o MacBook Air.
A bateria do Tandy era inesgotável – porque carregada com pilhas normais. Exauridas, havia só que trocá-las. Nada de procurar uma tomada em aeroportos, ou não poder trabalhar em aviões ou trens, sem energia.
A conexão, infalível: era só acoplar o auscultador de qualquer orelhão aos auriculares do computador, invertido – o microfone no alto-falante. Simples, como um fone de ouvido. Em quarto de hotel, ou quando telefones não se encaixavam às “orelhas” de borracha, recorria-se ao “jacaré” nos fios da tomada do telefone, arrancando-os de dentro das paredes. Os hotéis passaram a disponibilizar modems para não serem tão depredados. Com a caneta Bic e o bloco de notas, repórteres acrescentaram uma chave de fenda e canivete.
O que escrevia chegava à redação do jornal em instantes. Se em Israel, por exemplo, discava o número local da agência Reuters, ou Compuserve, e disparava meu sinal de modem que, ao chocar-se com outro em direção contrária, gerava um ruído mesclado que transportava a mensagem para o Bairro do Limão, em SP, com pedágios instantâneos em Londres, Nova York, Buenos Aires, Rio e SP. As agências tinham números locais em muitas cidades mundo afora. Quando não, a opção era achar o mais próximo entre os países vizinhos. Ou ligar direto para um número sempre a postos na redação – o recurso guardado para urgências, bem caras na época.
A tecnologia, rudimentar. O que foi ótimo, porque até mesmo eu, que nunca tinha pilotado um computador, pude aprender a usá-lo logo que o tirei da loja e o carreguei com pilhas. Assim entrei no mundo da tecnologia que deletou totalmente as Lettera, portáteis máquinas de escrever, então sonho de consumo dos jornalistas viajantes. Era uma máquina de escrever eletrônica (não mais elétrica), em que era possível (“incrível!”) apagar o já escrito, trocar palavras, fazer correções, tudo isso sem deixar o chão coberto de bolinhas de laudas amassadas. Foi o fim da orquestra de tec-tec-tecs, mas também do cedilha e dos acentos. Os Tandys vinham com teclado inglês.
Erros, consertados. Fosse máquina de escrever ou telex, cada palavra escrita era final (a não ser que as correções fossem marcadas com XXXXXXXXXXX). Já o Tandy trazia um apagador no seu único programa para escrever textos, arquivá-los e transmiti-los, chamado BASIC (o DOS daquele tempo). Cabiam nele fantásticas 65.536 linhas de 255 caracteres, no máximo (um tuíte tem 140 caracteres, ou duas linhas). Mais que memória, só vaga lembrança, comparando-se aos megagigabytes de espaço em qualquer computadorzinho hoje em dia, arquivo em nuvem, pen- drive, ou CD e DVD.
A fita cassete, precursora da memória móvel. Bastava trocar a fita cassete para restabelecer a memória esgotada de um Tandy (dessas fitas de gravar música, mesmo.). Os jornalistas que carregavam essa nova ferramenta de trabalho de cobertura em cobertura mundo afora poderiam dilatar hoje a definição de “coxinha”, porque já escreviam “nas coxas”: punham o Tandy no colo, e batucavam seus textos.
Perdeu-se? Compra-se outro. Esqueci o meu primeiro PC no táxi quando fui a Las Vegas cobrir uma luta de boxe. Entrei na Rádio Shack local e comprei um novo pelos mesmos 300 dólares. Não havia que configurar, fazer nada, só pôr pilhas. Surpresa foi a janelinha acima do teclado agora ser uma tela, dobrável, monocromática, fundo cinza e letras pretas. Estreei a nova “máquina” ainda no táxi para o aeroporto, e lá, de um orelhão, transmiti o texto para São Paulo. (Até agora o Grupo Estado não sabia que tinha perdido o computador. O substituto novo, eu paguei).
A maior façanha do meu primeiro computador pessoal, porém, é uma história à parte. Aconteceu em Cabo Canaveral, na Flórida, onde fui para o lançamento do ônibus espacial Discovery, o primeiro depois da tragédia da nave Challenger, que explodiu segundos após decolar com sete tripulantes a bordo, todos mortos, em janeiro de 1986, havia dois anos.
A chefia de reportagem em São Paulo encomendara um acompanhamento minuto a minuto dos preparativos e disparo do foguete. Cerca de 1800 jornalistas e eu estávamos a 4,5 quilômetros do que parecia ser um gigantesco pássaro branco de bico avermelhado. Tudo que lhe acontecia, eu registrava. Comecei o diário quando ainda faltavam oito horas, 20 minutos e 43 segundos para a partida. Percebia-se medo palpável de que ocorresse um novo desastre. Seria talvez o fim do programa espacial americano.
Um amigo me trouxe uma lata de Coca-Cola. Abri-a, tomei um gole, e a pus ao lado do Tandy. E o vento levou e derrubou, o teclado ficou empapado. Virei o computador de cabeça para baixo, deixando escorrer aquele melado. Juntaram em volta os “técnicos”. Uns sentenciavam: “Seu trabalho está perdido”. Outros sugeriram desligar. Mas, desligado, não mais ligava, morto. E agora? Como reconstituir a noite toda de anotações? Um tempo depois, desolado, apertei o “on” sem convicção. Não é que ressuscitou?! Com sequela, porém: uma letra não funcionava mais, a “A”.
Recdo pr redco: como devem ter percebido falt-me um letr. Morreu intoxicd de coc-col. brco
(Recado para a redação: como devem ter percebido falta-me uma letra. Morreu intoxicada de coca-cola. abraço)
Quem chegou até aqui, e quiser continuar, clique na página do lançamento do Discovery, como publicada pelo Estadão, graças à vitória do Tandy sobre a Coca-Cola. O texto inicial, na ordem mandada, é o que tem por título “Êxito depois…”. Depois, o segundo texto seria o do alto da página.
PS.: Ao final da ressaca de Coca-Cola, alguns dias depois, meu Tandy recuperou o “A”. Está comigo até hoje.
Muito simpático esse Tandy, Moisés. Mas não o conheci. Mas muitos anos mais tarde, ao voltar de sua temporada como correspondente em Paris, você me mostrou um mini-computador de mão (tipo 10x20cm ou algo assim) que você usava para redigir as reportagens, digitando com uma mão só – o aparelho também apoiado nas pernas? – enquanto depurava a matéria sentado em bancos dos belos jardins europeus e, deste aparelho mesmo, dali catapultava diretamente seus escritos ao Brasil. Era assim mesmo? Abraços, Luiz Barros
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Era mais do que assim mesmo. Em NY, entrava nos hotéis mais chiques, sentava-me perto dos telefones e banheiro, e escrevia “nas coxas”. Muitas vezes até surgiu um mordomo que me ofereceu água e café. Tudo de primeira! Fantástico era poder escrever em qualquer lugar, precisar só de orelhão para chegar ao outro lado do Atlântico, pilhas no lugar de bateria, e, às vezes, até mesmo do local de um acontecimento enquanto ainda acontecendo. Abraços, rabino
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