O PRISIONEIRO DA CLASSE EXECUTIVA

CERCA DE 25 ANOS ATRÁS, PC FARIAS ENCARNAVA

O MAIOR CORRUPTO DO BRASIL, CAPAZ DE DERRUBAR UM

PRESIDENTE  EXTERMINADOR DE MARAJÁS. VOEI NO ASSENTO À FRENTE DO

QUAL ELE VOLTAVA “PRESO” DA TAILÂNDIA (foto)

HOJE PC FARIAS SERIA CASO DE TRIBUNAL DE PEQUENAS

CAUSAS. AO TODO, ELE MOVIMENTOU US$ 8 BILHÕES. OU QUASE NADA,

COMPARADO AO MENSALÃO E AO PETROLÃO.

VOO BANGKOC-SP – Prisioneiro na classe executiva da Varig, Paulo César Farias bebeu champanha Veuve Clicquot, uísques 12 anos e vinhos franceses, jantou com refinamento, ganhou das aeromoças um tratamento só concedido aos famosos, e ainda violou com baforadas a área de não fumantes, roncou ao cochilar, posou para foto com uma admiradora da classe turística (ainda não havia selfie), e concedeu entrevistas como se fosse um herói de retorno à glória em sua Pátria — e, ainda por cima, em campanha eleitoral.

Antes de se candidatar, porém, ele avisou que “vou ter de resolver minhas pendências jurídicas”. (Foi morto antes por motivos até hoje não conhecidos).

     PC Farias recebeu a escolta dos dois delegados brasileiros que viajaram quase 20 mil quilômetros para prendê-lo com mordomia, até ser deportado de Bangcoc: mandou que dois tenentes tailandeses que o vigiavam carregassem as malas deles para o avião. Logo percebeu que “eram muito humildes, e amáveis”. Houve um instante de hesitação, mas logo executaram a ordem.

    “Não é doutor Edson?” – perguntou PC Farias ao delegado Edson Antônio de Oliveira, superintendente da Polícia Federal no Rio e chefe da Interpol no Brasil. Ele concordou. A retribuição foi rápida: o prisioneiro pôde passar pelo free-shop para comprar um pacote de seus longos Malboros a caminho de embarcar na poltrona 11L do segundo andar do Boeing 747-400.

     “Só fizeram uma malandragem comigo”, reclamou PC Farias de seus amigos tailandeses. “Acordaram-me às 5 horas da manhã, dizendo que eu deveria estar pronto dentro de 20 minutos”. Tomou banho “corrido” e entrou no carro de vidro fumê do próprio subcomandante do Departamento de Imigração de Bangcoc. No banco de trás, dois seguranças, apoiados por outros num segundo carro. Cruzaram a cidade de trânsito sempre caótico e alcançaram o aeroporto antes da chegada do voo 828, Bangkoc-SP, que só decolaria a noite, ao chegar de Hong-Kong.

     O prisioneiro da classe executiva passou o dia numa “sala espetacular”: até dormiu por quatro horas. Ao ser transferido do luxuoso Sheraton para a área de detenção dos miseráveis paquistaneses e bengladeshis que tentam entrar ilegais na Tailândia só dispunha de “um colchonete num quarto limpinho e arrumadinho”. Ele conseguiu armar uma “segurança pessoal” contratando dois guardas entre os deportáveis. “Vou colocar um advogado para soltá-los amanhã mesmo”, prometia já a bordo, agradecido.

     A camisa suada de quatro dias não combinava com o requinte da classe executiva. Por gentileza do embaixador do Brasil em Bangcoc, Paulo Monteiro Lima, os delegados Edson e Nascimento Alves Paulino, o Coordenador Central de Polícia no Brasil, trouxeram uma muda de roupa nova preparada por dona Elma, a mulher de PC. Ao entrar no toalete para trocar-se, ele constatou que também precisava barbear-se. Voltou feliz à sua poltrona. Só um olho o perturbava, vermelho de irritação. E não faltou um prestativo passageiro com colírio para aliviá-lo.

Com o delegado Oliveira.

Com o delegado Oliveira.

     O relógio de PC Farias estava ainda regulado pelo “horário equilibrado” que usou em todo o tempo de fuga: o GMT, de Londres. Assim nunca se confundia com o fuso horário para os telefonemas de toda terça-feira para o irmão, o deputado Augusto Faria, em Maceió ou Brasília. Às 20 horas de Bangcoc, 11 da manhã em São Paulo, e 13 horas em Londres, o Jumbo levantou para o voo de 10h15 até Joanesburgo, na África do Sul. As audiências a bordo começaram entre drinques. O prisioneiro da classe executiva só não deveria aparecer com copo nas fotos ou na TV para não comprometer os policiais que afinal o capturaram, o foragido mais procurado do Brasil. Estava monossilábico, para começo de conversa. Mas tomou gosto rápido e se tornou discursivo. Às vezes perguntava, após uma entrevista: “Então, como me saí?”

     PC Farias ditou os horários a todos os passageiros na classe executiva. Se concedia entrevista, o corredor interrompido por câmeras, o serviço de bordo esperava. Só no meio da noite que recomeçava, os ponteiros atrasando enquanto o avião avançava da Ásia para África, é que o delegado Edson reagiu. Cortou mais uma das entrevistas dizendo: “Estou aqui para proteger a integridade física do preso”. Fez-se escuro e silêncio, e o prisioneiro pôs-se a roncar. O tratamento tão famoso na Espanha, ele depois admitiu, “não resolveu”.

  Alguns passageiros da classe executiva lucraram com a presença de PC Farias a bordo: repórteres de primeira classe ofereceram-lhes os seus lugares em troca da vizinhança com o ex-foragido, na business. Um dos incrédulos promovidos voltou para contar que “nunca tinha comido tanto caviar na vida”. Os que permaneceram, e que só queriam uma viagem tranquila, assistindo a filmes como O Fugitivo e Proposta Indecente, previstos no programa da cabine, assistiram a uma longa noite de repentinos flashes e focos de luz, atropelamentos de repórteres por carrinhos com bebidas, cenas ao vivo da TV de “amanhã”, atrasos nas refeições, uma névoa de fumaça de um único cigarro no ar, e o desfile de curiosos de áreas mais remotas do avião. Para os brasileiros, a adaptação foi fácil, porque o assunto da maratona de entrevistas até os interessava. Mas um tailandês que nem entendia português, na primeira fila, mostrou-se irritado várias vezes.

     O “momento mais delicado” previsto no voo era a escala de 40 minutos em Joanesburgo. Era aqui que o prisioneiro poderia se livrar sacando um habeas-corpus contra a cassação de seu passaporte na Tailândia, e recomeçar a fuga pelo mundo. Ele próprio riu, quando soube que o imaginavam tão ardiloso. Mas o avião ficou cercado por 36 policiais. Dois grandalhões da Interpol se apresentaram ao chefe brasileiro, e se postaram no corredor, de reforço. Uma equipe médica plantonava no aeroporto: dizia-se também que PC Farias poderia simular um ataque diabético para escapar. Na verdade, ele só tomou um dos comprimidos para diabetes que dona Elma chorou tanto para lhe fazer chegar por via diplomática, caso contrário “poderia até morrer”. O embaixador do Brasil em Pretória, Antônio do Amaral Sampaio, comandou pessoalmente a operação. Mas dispensou uma visita ao prisioneiro da classe executiva.

     PC Farias preferiu contrafilé com cogumelos selvagens, e não o peixe de dupla nacionalidade do cardápio: “Peixe Tailandês à Parisiense”. O vinho tinto que o acompanhou foi o Château Grivière. Ele o sorveu até os queijos finais. Não quis nenhum licor, porque logo tomaria mais um uísque. “Jantei nos melhores restaurantes de Londres”, ele gabou-se a repórteres. No San Lorenzo, o Al Pacino em pessoa sentou-se numa mesa ao lado. Num outro foi cumprimentado por brasileiros que o reconheceram, mas não o denunciaram. Uma senhora até prometeu que rezaria por ele. Outra admiradora, a bordo desde Joanesburgo, Lilian Faria Passos, tomou coragem diante das câmeras, e perguntou, gaguejando: “Mas por que o senhor fez tantas coisas ruins?”

     PC, o “injustiçado”, respondeu: “Me acusam de coisas que não são verdadeiras. Produto da mídia… Mas daqui para frente vamos mostrar a realidade disso tudo”. Emocionada, Lilian então revelou: “Meu pai, sabe?, é JC Faria – João Lessa Faria”. Ela sublinhou que a distância entre os dois residia num “S”.

   pcapa  O delegado Edson também roncou um pouco. Vigia e vigiado, por um breve momento, roncaram lado a lado. O suspense para o final da viagem foi crescendo no café da manhã que indicou a proximidade do Brasil: afinal, o prisioneiro será algemado? PC parecia mais intrigado com as “refeições especiais” que as aeromoças insistiam em lhe dar, mesmo não as tendo pedido. Garantia que as algemas não se fechariam sobre seus pulsos. Mas depois que saiu do “horário equilibrado”, trocando-o pelo nacional, já com o aviso de apertar cinto aceso, e Guarulhos lá embaixo, ele começou a puxar a manga do braço esquerdo, como se as antecipasse. Um par delas brilhava na pasta aberta aos pés do delegado Edson.

A FUGA ACABOU

Quando foi tirar um novo visto para a Tailândia, em Cingapura, o fugitivo PC Farias enfrentou um inesperado perigo: do outro lado da rua estava, simplesmente, a embaixada do Brasil. “Se alguém me reconhecer?”, apavorou-se. Mesmo assim, correu o risco. Deixou o passaporte, e passou a noite “em elucubrações”. A mais recorrente era a de que algum tailandês resolvesse atravessar a rua para tomar informações. “Estaria terminado”.

     Outro momento perigoso foi quando PC Farias achou que deveria abandonar Londres. A Scotland Yard o procurava. Se fosse preso, esperava uma “fiança de primeiro mundo”, algo em torno de um milhão de libras. A mulher, Elma, esperava em Genebra, na Suíça, a resposta a um pedido de permanência na Inglaterra. “Se ela o ganhasse, aí eu também o pediria: era a nossa estratégia”, ele agora lembra, a fuga encerrada.

     cd1171aa-0a29-4de3-a471-de9799794a4aJá o tinham procurado em dois endereços em Londres. Ele próprio observara uma passeata do PT em sua homenagem de uma janela ao nível da rua, num hotel de subsolo. “Via os pés dos manifestantes, e escapei por uma porta lateral”. O cerco apertava. Então, ele apostou todas as cartas. Ligou para a Thai Airways, e reservou uma passagem para Bangkoc. Marcou de pegá-la no aeroporto de Heathrow, antes do embarque. Mas uma surpresa o irritou a ponto de descontrolá-lo, e então gritou. A caixa não aceitava dólares, só libras e cartão de crédito. “Não uso cartões. E imagina recusar dólares…” Adiante, os policiais da imigração. Se batessem o nome Farias no computador o descobririam. O cartão de embarque embaralhava o nome Cavalcante, por acaso, mas nada adiantaria. Foi em frente. Ninguém o parou.

     PC Farias deixou Londres na sexta-feira, 5 de novembro. Acabava de receber uma visita de fim de semana dos filhos, vindos da Suíça, onde estudam. Em Bangkoc, no dia seguinte, concluiu que estava na última escala de sua  fuga: “Aqui, ou fico, ou saio. Não dá para ter meio termo”. O que não sabia, então, é que “o povo tailandês pode ser muito bom, mas a Justiça no país está zerada”, como aprendeu. Ele explorava algum tipo de investimento nos “Tigres da Ásia”. Ainda acha que “o futuro do mundo estava ali nessa região”. Sem visto na primeira visita, só dispunha de 15 dias. Quando pediu mais tempo, deram-lhe o suficiente para providenciar tranquilamente uma viagem à Cingapura, onde obteria o visto.

    pcfariasmanchete Foi assim que PC Farias partiu em turismo solitário para Phuket, “uma das praias mais lindas do mundo, com infraestrutura moderníssima.” Ficou três dias deslumbrado até partir para Cingapura. Com o visto, começou a voltar à Tailândia, via Bali, onde ficou até segunda-feira, 22 de novembro. Elma o reencontrou em Bangcoc na terça.

     A noite de Loykratong, uma festa em homenagem a Lua, tinha tudo para ser agradável. O gerente do hotel Sheraton convidou os Farias para um jantar à beira da piscina. PC teve o cuidado de reservar uma mesa. Ao descer, porém, ela estava ocupada. Começou a discutir em inglês com um homem que também afirmava ter feito uma reserva antecipada. Os dois decidiram que era um caso para o gerente resolver. Foi então que o empresário paulista Nelson Scola descobriu com quem estava disputando a mesa. E o deixou com uma frase que ele não conseguiu esquecer:

     “Prazer em revê-lo”.

     PC Farias concluiu ter sido vítima de “uma ironia do destino”. Ele ainda tentou ser gentil: “Não sabia que você é brasileiro”, disse. Ficou tentado a convidá-lo a formar uma única mesa fraternal. Mas se conteve. “Falei para Elma: não gostei desse troço. Tem cheiro de rolo”. Foi pedir informações sobre o brasileiro. Daí soube seu nome, e mais os dados da ficha de hotel.

     “Não tenho ódio dele”, garante PC, “absolutamente convencido” de que Scola foi quem o denunciou à embaixada. Um dos delegados brasileiros que viajou a Bangcoc disse aos repórteres que, na verdade, fora “uma mulher”. Já o embaixador evitou atribuir sexo ao informante. A confusão foi proposital para proteger de vingança quem prendeu PC Farias antes da polícia brasileira, inglesa e internacional. Quando agentes da imigração, protegidos por policiais armados, pediram a PC Farias para ver seu passaporte, e o passaram ao embaixador brasileiro que o anulou, estava encerrada a grande fuga: o fugitivo não podia mais passar por turista legal, documentado, nem estava nas Alagoas, de onde partira 152 dias antes cruzando barreiras policiais que não o importunaram. “A PF estava em greve”,lembra. Mas elogia: “Os federais fizeram um bom trabalho”.

     PC Farias perdeu 10 quilos, baixando para 73. A prisão o magoou. Ele acha que os tailandeses “entraram no jogo brasileiro” porque o filho do rei da Tailândia havia sido muito bem recebido numa visita ao Brasil três meses antes. Ele contestou a legalidade da cassação do passaporte, mas não o recuperou. Se conseguisse, partiria para Hungria, sem tratado de extradição com o Brasil. Voando para a cela em Brasília já estava conformado: “Era o que queria, e até começava a preparar a volta para janeiro”, ele revelou. Um repórter o sondou sobre uma possível vingança: circulava a bordo um boato de que ao desembarcar mostraria um cheque de campanha eleitoral que comprometeria o presidente Itamar Franco. Ele desmentiu. Nem deu tanta importância assim: “Com certeza houve coleta de dinheiro para a campanha do vice-presidente”.  Aconselhou: “O que o Brasil precisa é de uma lei eleitoral”.

A carta do chefe Seattle

Eram verdes

os peles-vermelhas?

54049-bigthumbnail

Washington, 1/11/1991 — Num famoso manifesto em defesa da terra que o transformou no “profeta da ecologia”, diz o Chefe Seattle: “Avistei um milhar de búfalos apodrecendo na campina, abandonados pelo homem branco que lhes atirou de um trem ao passar”. Mas os trens ainda não corriam pelos campos americanos na época do manifesto, em 1854. E o massacre dos búfalos só começou entre 1860 e 1890.

“É como descobrir que não existe Papai Noel” – comentou, decepcionado, um ecologista do grupo Sierra Club à repórter Paula Wissel, da National Public Radio dos Estados Unidos, diante das provas de que a versão mais popular do manifesto do Chefe Seattle, publicada em livros no Brasil e por todo o mundo, e filmada, e musicada, gravada em disco, teatralizada e até evangelizada, foi escrita, na verdade, por um roteirista de cinema, Ted Perry, entre 1971 e 72, sob encomenda da Comissão de Rádio e Televisão dos Batistas Sulistas.

“Que importância tem o autor do texto?” – perguntou Perry. “Fico feliz ao saber que a mensagem está sendo transmitida. Não acho que ela fica mais importante se atribuída ao Chefe Seattle”.

O pele-vermelha Seeathl, chefe das tribos Suquamish e Duwamish da costa Noroeste do Pacífico, viveu entre 1786 e 1866. Foi ele quem concluiu o Tratado de Port Elliott com os colonizadores brancos, em dezembro de 1855. Trocou seu território por uma pequena reserva e a promessa de ajuda do governador Isaac Stevens. “Cada pedaço desta terra é sagrado para o meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada areia da praia, cada bruma nas densas florestas, cada clareira e cada inseto a zumbir são sagrados na memória do meu povo” – é uma das frases do discurso atribuída a ele e traduzida por Magda Guimarães Khouri Costa para uma edição em português, Preservação do Meio Ambiente, publicada em 1987 pela Editora Babel Cultural a partir de um texto fornecido pela Seattle Historical Society.

ChefeSeatle

No rastro do

Chefe Pele-Verde

Seeathl, rebatizado Seattle pelos brancos, falava um mínimo de inglês. Mas o médico e poeta Dr. Henry Smith, que entendia o Lushotseed, a língua dos Duwamish, anotou alguns “fragmentos” do discurso, embora “sem capturar o seu charme”, e só os publicou 33 anos depois, em 1887, no jornal Seattle Sunday Star. Esta é também a versão que aparece na História de Seattle, escrita em 1891 por Frederic James Grant. As primeiras variações começaram a surgir na década de 30. O discurso “original” era encerrado com a advertência de que o homem branco deveria tratar bem e com justiça os últimos peles-vermelhas, porque “os mortos não são impotentes”, e estarão sempre por perto. Aí ganhou um acréscimo por conta de Clarence B. Bagley, na revista Washington Historical Quaterly: “Mortos – disse eu? A morte não existe. Há somente uma mudança de mundos”.

O escritor Rudolf Kaiser pesquisou a metamorfose do texto inicial do Dr. Smith como se fosse um detetive. Seguiu o rastro de versões do manifesto do Chefe Seattle que apareceram na Europa e nos Estados Unidos. Suas conclusões estão num livro de ensaios, Recuperando a Palavra, editado pela Universidade da Califórnia. Ele chegou, por exemplo, a um membro do grupo Amigos da Terra que recortou o manifesto de um jornal indígena americano que deixou de circular, e o enviou para amigos que o enviaram a outros amigos. A multiplicação foi inevitável entre os ambientalistas. Uma companhia aérea o imprimiu na revista de bordo de linhas do Oriente, Passages, que então se tornou a base para outras publicações. Mas numa reserva de índios Pueblo, nos Estados Unidos, Kaiser constatou que Seattle não passava do nome de uma cidade, e não do Grande Velho Chefe que se tornou um famoso pai da ecologia, entre ecologistas.

A Historical Society of Seattle adverte, desde junho de 1990, que “o magnífico apelo à responsabilidade ecológica tem sido erroneamente atribuído ao Chefe Seattle”. O ensaio do escritor-detetive Kaiser separa três principais versões, a partir do texto básico do Dr. Smith, construído com palavras arcaicas e floreados inacreditáveis na boca de um índio. A segunda versão foi escrita por William Arrowsmith,  mais simples, com uma linguagem “mais assentada na terra”, mas ainda assim com o mesmo conteúdo. A terceira já toma distância das duas primeiras em várias direções. E se torna ecológica. É como se Chefe Seattle passasse a ser um Cacique Pele-Verde, e não vermelha.

“É possível comprar ou vender o céu e o calor da terra?” – ele pergunta. “Tal ideia é estranha para nós…Os rios são nossos irmãos, eles saciam nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e alimentam nossas crianças… O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo sopro – o animal, a árvore, o homem, todos compartilham o mesmo sopro…Isto sabemos. A terra não pertence ao homem; é o homem que pertence a terra. Isso sabemos. Todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma família. Há uma ligação em tudo”.

pipeindians

Chefe Perry

na Eco-92?

A terceira versão correu o mundo. Virou até um oratório. Ela foi escrita pelo professor de cinema Ted Perry, da Faculdade Middlebury, em Vermont, como roteiro do filme Home, encomendado pela igreja Batista Sulista, que ainda acrescentou, por conta própria, uma certa religiosidade ao texto. “Escrevi o discurso como ficção”, contou numa carta a Kaiser. “Acho que parafraseei algumas sentenças da tradução do professor Arrowsmith, mas o resto é meu. Ao passar o script para os Batistas deixei claro que o trabalho era meu. Tanto eles o sabiam que me pagaram não como um datilógrafo que apenas copiou um texto”.

Perry diz ainda na carta que Kaiser cometeu “o erro de usar o nome do Chefe Seattle no corpo do texto. Não me lembro porque o fiz… Ao escrever um discurso de ficção deveria ter usado um nome fictício”. Quando ele viu o filme pela televisão, em 1972, ficou surpreso por não encontrar, no final, o rotineiro crédito: escrito por…” Fiquei mais do que surpreso; revoltado. Chamei o produtor, e ele me disse que pensou que o texto pareceria mais autêntico se não tivesse nenhum crédito. Surpresa! Cancelei meu contrato com os Batistas para um outro roteiro”.

Aos 54 anos, sem nenhum outro texto ambientalista publicado, nem filiado à qualquer organização ecológica, o professor Perry está ainda inconformado com a confusão criada pela produção do filme Home. Não que lamente a glória de um texto adotado mundialmente, mas porque acredita que os próprios índios do Noroeste dos Estados Unidos não gostariam que o Chefe Seattle ficasse conhecido como o verdadeiro autor de um discurso que não fez. “Afinal, ele não disse o que escrevi” – contou. Perry visitou o Brasil na década de 60 e o acha “maravilhoso”, com vontade de voltar. Se receber um convite, “aceitará com prazer”.

A quarta versão do manifesto do Chefe Seattle catalogada por Kaiser apareceu no pavilhão americano da Feira Mundial de 1974 em Spokane, em Washington. E ela traz outras diferenças de linguagem e estilo. A Federação dos Jornalistas do Brasil começou a preparar uma história em quadrinhos baseada no texto de Perry atribuído ao Chefe Seattle. Outras edições devem coincidir com a Eco-92, no Rio. O escritor Kaiser cita em seu ensaio uma conclusão que ouviu enquanto fazia a investigação:

“Se o manifesto não tivesse sido escrito, deveria sê-lo”.

imagesUma versão em português da carta do cacique Seattle

O grande chefe de Washington mandou dizer que desejava comprar a nossa terra, o grande chefe assegurou-nos também de sua amizade e benevolência. Isto é gentil de sua parte, pois sabemos que ele não precisa de nossa amizade.

Vamos, porém, pensar em sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará nossa terra. O grande chefe de Washington pode confiar no que o Chefe Seattle diz com a mesma certeza com que nossos irmãos brancos podem confiar na alteração das estações do ano.

Minhas palavras são como as estrelas que nunca empalidecem.

Como podes comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia nos é estranha. Se não somos donos da pureza do ar ou do resplendor da água, como então podes comprá-los? Cada torrão desta terra é sagrado para meu povo, cada folha reluzente de pinheiro, cada praia arenosa, cada véu de neblina na floresta escura, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados nas tradições e na consciência do meu povo. A seiva que circula nas árvores carrega consigo as recordações do homem vermelho.

27082007-379

O homem branco esquece a sua terra natal, quando – depois de morto – vai vagar por entre as estrelas. Os nossos mortos nunca esquecem esta formosa terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia – são nossos irmãos. As cristas rochosas, os sumos da campina, o calor que emana do corpo de um mustang, e o homem – todos pertencem à mesma família.

Portanto, quando o grande chefe de Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra, ele exige muito de nós. O grande chefe manda dizer que irá reservar para nós um lugar em que possamos viver confortavelmente. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto, vamos considerar a tua oferta de comprar nossa terra. Mas não vai ser fácil, porque esta terra é para nós sagrada.

Esta água brilhante que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas sim o sangue de nossos ancestrais. Se te vendermos a terra, terás de te lembrar que ela é sagrada e terás de ensinar a teus filhos que é sagrada e que cada reflexo espectral na água límpida dos lagos conta os eventos e as recordações da vida de meu povo. O rumorejar d’água é a voz do pai de meu pai. Os rios são nossos irmãos, eles apagam nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e alimentam nossos filhos. Se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar e ensinar a teus filhos que os rios são irmãos nossos e teus, e terás de dispensar aos rios a afabilidade que darias a um irmão.

Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um lote de terra é igual a outro, porque ele é um forasteiro que chega na calada da noite e tira da terra tudo o que necessita. A terra não é sua irmã, mas sim sua inimiga, e depois de a conquistar, ele vai embora, deixa para trás os túmulos de seus antepassados, e nem se importa. Arrebata a terra das mãos de seus filhos e não se importa. Ficam esquecidos a sepultura de seu pai e o direito de seus filhos à herança. Ele trata sua mãe – a terra – e seu irmão – o céu – como coisas que podem ser compradas, saqueadas, vendidas como ovelha ou miçanga cintilante. Sua voracidade arruinará a terra, deixando para trás apenas um deserto.

Não sei. Nossos modos diferem dos teus. A vista de tuas cidades causa tormento aos olhos do homem vermelho. Mas talvez isto seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que de nada entende.

Não há sequer um lugar calmo nas cidades do homem branco. Não há lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem na primavera ou o tinir das assa de um inseto. Mas talvez assim seja por ser eu um selvagem que nada compreende; o barulho parece apenas insultar os ouvidos. E que vida é aquela se um homem não pode ouvir a voz solitária do curiango ou, de noite, a conversa dos sapos em volta de um brejo? Sou um homem vermelho e nada compreendo. O índio prefere o suave sussurro do vento a sobrevoar a superfície de uma lagoa e o cheiro do próprio vento, purificado por uma chuva do meio-dia, ou recendendo a pinheiro.

images (1)O ar é precioso para o homem vermelho, porque todas as criaturas respiram em comum – os animais, as árvores, o homem.

O homem branco parece não perceber o ar que respira. Como um moribundo em prolongada agonia, ele é insensível ao ar fétido. Mas se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar que o ar é precioso para nós, que o ar reparte seu espírito com toda a vida que ele sustenta. O vento que deu ao nosso bisavô o seu primeiro sopro de vida, também recebe o seu último suspiro. E se te vendermos nossa terra, deverás mantê-la reservada, feita santuário, como um lugar em que o próprio homem branco possa ir saborear o vento, adoçado com a fragrância das flores campestres.

Assim pois, vamos considerar tua oferta para comprar nossa terra. Se decidirmos aceitar, farei uma condição: o homem branco deve tratar os animais desta terra como se fossem seus irmãos.

Sou um selvagem e desconheço que possa ser de outro jeito. Tenho visto milhares de bisões apodrecendo na pradaria, abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem em movimento. Sou um selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser mais importante do que o bisão que (nós – os índios) matamos apenas para o sustento de nossa vida.

O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Porque tudo quanto acontece aos animais, logo acontece ao homem. Tudo está relacionado entre si.

Deves ensinar a teus filhos que o chão debaixo de seus pés são as cinzas de nossos antepassados; para que tenham respeito ao país, conta a teus filhos que a riqueza da terra são as vidas da parentela nossa. Ensina a teus filhos o que temos ensinado aos nossos: que a terra é nossa mãe. Tudo quanto fere a terra – fere os filhos da terra. Se os homens cospem no chão, cospem sobre eles próprios.

De uma coisa sabemos. A terra não pertence ao homem: é o homem que pertence à terra, disso temos certeza. Todas as coisas estão interligadas, como o sangue que une uma família. Tudo está relacionado entre si. Tudo quanto agride a terra, agride os filhos da terra. Não foi o homem quem teceu a trama da vida: ele é meramente um fio da mesma. Tudo o que ele fizer à trama, a si próprio fará.

Os nossos filhos viram seus pais humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio, envenenando seu corpo com alimentos adocicados e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos últimos dias – eles não são muitos. Mais algumas horas, mesmos uns invernos, e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nesta terra ou que têm vagueado em pequenos bandos pelos bosques, sobrará, para chorar sobre os túmulos de um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso.

Nem o homem branco, cujo Deus com ele passeia e conversa como amigo para amigo, pode ser isento do destino comum. Poderíamos ser irmãos, apesar de tudo. Vamos ver, de uma coisa sabemos que o homem branco venha, talvez, um dia descobrir: nosso Deus é o mesmo Deus. Talvez julgues, agora, que o podes possuir do mesmo jeito como desejas possuir nossa terra; mas não podes. Ele é Deus da humanidade inteira e é igual sua piedade para com o homem vermelho e o homem branco. Esta terra é querida por ele, e causar dano à terra é cumular de desprezo o seu criador. Os brancos também vão acabar; talvez mais cedo do que todas as outras raças. Continuas poluindo a tua cama e hás de morrer uma noite, sufocado em teus próprios desejos.

Porém, ao perecerem, vocês brilharão com fulgor, abrasados, pela força de Deus que os trouxe a este país e, por algum desígnio especial, lhes deu o domínio sobre esta terra e sobre o homem vermelho. Esse destino é para nós um mistério, pois não podemos imaginar como será, quando todos os bisões forem massacrados, os cavalos bravios domados, as brenhas das florestas carregadas de odor de muita gente e a vista das velhas colinas empanada por fios que falam. Onde ficará o emaranhado da mata? Terá acabado. Onde estará a águia? Irá acabar. Restará dar adeus à andorinha e à caça; será o fim da vida e o começo da luta para sobreviver.

Compreenderíamos, talvez, se conhecêssemos com que sonha o homem branco, se soubéssemos quais as esperanças que transmite a seus filhos nas longas noites de inverno, quais as visões do futuro que oferece às suas mentes para que possam formar desejos para o dia de amanhã. Somos, porém, selvagens. Os sonhos do homem branco são para nós ocultos, e por serem ocultos, temos de escolher nosso próprio caminho. Se consentirmos, será para garantir as reservas que nos prometestes. Lá, talvez, possamos viver o nossos últimos dias conforme desejamos. Depois que o último homem vermelho tiver partido e a sua lembrança não passar da sombra de uma nuvem a pairar acima das pradarias, a alma do meu povo continuará vivendo nestas floresta e praias, porque nós a amamos como ama um recém-nascido o bater do coração de sua mãe.

Se te vendermos a nossa terra, ama-a como nós a amávamos. Preteje-a como nós a protegíamos. Nunca esqueças de como era esta terra quando dela tomaste posse: E com toda a tua força o teu poder e todo o teu coração – conserva-a para teus filhos e ama-a como Deus nos ama a todos. De uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus, esta terra é por ele amada. Nem mesmo o homem branco pode evitar o nosso destino comum.

native1

A aldeia brasileira no Líbano

by Celkadri - Licensed under Public Domain via Wikipedia

by Celkadri – Licensed under Public Domain via Wikipedia

Al Bireh, Líbano central (12/07/1982) — A paisagem que se avista desta aldeia escondida num dos picos de uma cordilheira é tão impressionante quanto perigosa: abaixo, o verde vale de Bekaa, com seus caminhos minados, plantações de cerejas, tanques movendo-se camuflados e um céu muito claro, sem nuvens – os trovões esporádicos são disparos de canhões.

Surpreendente, nesta aldeia que esteve ao centro de uma das maiores batalhas aéreas do mundo, envolvendo mais de cem aviões sírios e israelenses, em 9/6/1982, é a informação de um de seus 1.300 habitantes:

-Aqui, todos falamos português e “arabês”.

Cinco mil habitantes de Al Bireh vivem hoje no Brasil. E 300 brasileiros estão aqui, no fogo cruzado de uma guerra que não entendem.

-Somos gente da roça, sabe? – explica um deles.

No dia “daquela chuva de bombas” morreu um brasileiro, o Sr. Ali Bacha, que viveu 22 anos entre o Paraná e São Paulo. Uma de suas filhas, Fátima, lembra:

-Meu pai tinha bronquite. E o ar daqui faria muito bem a ele, aconselhou um médico de São Paulo. Lá, ele vivia sufocando de ataques… Então, viemos. Como passou a não sentir mais nada, reuniu a família, resolvendo: vamos ficar aqui…

No dia “daquela chuva de bombas”, quando Israel atacou as baterias de mísseis soviéticos Sam-6 instaladas no vale de Bekaa, o Sr. Ali Bacha foi respirar na varanda de sua casa. Seu filho, Mohamed, e uma prima, Kessem, australiana, sentaram-se ao lado. Na varanda, sobre o penhasco, um privilegiado mirante, caiu uma bomba.

Mohamed, 20 anos, brasileiro, foi ferido na perna direita, “o osso saindo para fora”. Estilhaços queimaram vários pontos do corpo de Kessem. E o Sr. Ali Bacha morreu.

Os brasileiros de Al Bireh não entendem a guerra:

-Só pode entender isto quem tem “cabeça grande” – diz um deles.

Não a entende, também, o aiatolá da aldeia, oficialmente conhecido como o Sheik de Ipanema. Na verdade, ele pouco fala, apenas sorri, com seus 110 anos – “o ar daqui é milagroso”, comenta Fátima apontando para o líder muçulmano, a barba comprida e branca. “Se você o chamar de velho, ele sai brigando”.

Na noite “daquela chuva de bombas”, um tenente sírio surgiu, também ferido, ao pé da montanha de Al Bireh. Entrou num carro, o de um primo de Mohamed. Os brasileiros, querendo tratar de seus feridos, pediram socorro aos israelenses, já dominando grande parte do vale de Bekaa

Mas o sírio, vendo os israelenses próximos, abandonou o carro, e tentou alcançar uma casa, exatamente a casa para onde tinha sido levado Mohamed, à espera de uma ambulância.

-Ele não conseguia mais andar, e aí deitou na frente da casa. Pegaram ele; estava uniformizado. Aí falamos para os israelenses: tem mais um ferido lá dentro.

Era Mohamed, levado então para o mesmo helicóptero em que seria transportado o tenente sírio, e os dois foram deixados, como agora se diz em Al Bireh, “no hospital policial”.

Três semanas depois, Kessem, a tia ferida de Mohamed, dava notícias, recuperando-se num hospital de Jerusalém, Hadassah. E o primeiro-ministro de Israel, Menachem Beguin, dava outras notícias, no parlamento: entre os prisioneiros de guerra, “há um brasileiro”.

Era Mohamed, preso com o tenente sírio.

-Mohamed, prisioneiro de guerra? – Perguntava a “gente da roça” de Al Bireh.

Muitas casas foram abandonadas. (Celkadri. Licensed under Public Domain via Wikipedia -

Muitas casas foram abandonadas. (Celkadri. Licensed under Public Domain via Wikipedia –

-Não, ele é dono de loja – diz sua irmã, Fátima, enquanto sua mãe, Bacha, balança a cabeça, confirmando-o:

-Ele nem conhecia o sírio…

Do lado israelense, a confusão cresceria quando um primo de Mohamed, ferido nos olhos, surgiria no mesmo “hospital policial”, portador, e com certo orgulho, de um documento provando ser ele um trabalhador – só que trabalhara no Iraque, outro país em guerra com Israel.

-Trabalhava no Iraque em “interpretação” de brasileiro para o árabe — explica um irmão de Mohamed.

-Como assim? – Pergunto.

-Sim, tem uma carteirinha que diz que ele é da “agência”, no Iraque.

-Mas que “agência” é esta?

-Chama Mendes Júnior, de Belo Horizonte.

Para brasileiros de Al Bireh, nada mais natural. Mas para israelenses, um brasileiro ferido com um sírio e que tem um primo vindo da “agência”, no Iraque, no meio de uma guerra, nada mais duvidoso. A embaixada do Brasil não pode obter nenhuma informação oficial do misterioso prisioneiro de guerra brasileiro, durante um mês. Mas ontem, sinal de que exaustivas investigações começam a esclarecer o que ocorreu, já será possível visitá-lo, como anunciou um funcionário do Ministério das Relações Exteriores, em Jerusalém.

Mohamed transformou-se no “herói” da guerra, em Al Bireh.

— Você viu ele? – pergunta-se a quem chega de Israel, como se fosse natural saber dele, entre os nove mil prisioneiros de guerra.

-Acho que ele vai chegar hoje – diz uma de suas irmãs, esperançosa.

Quando cheguei a Al Bireh, no domingo, e perguntei por brasileiros, já falava com um deles. E sendo também brasileiro, uma multidão me cercou, todos falando ao mesmo tempo, oferecendo café, chá, doces, almoço, e pedindo noticias dele, Mohamed. Quando um começava a se lembrar da guerra, a roda de crianças, homens e mulheres acrescentava detalhes, o Sheik de Ipanema sempre sorrindo, calado.

A guerra foi “aquela chuva de bombas: tanques, aviões, metralhadoras, todas as armas…”

-Enquanto “chovia”, o que vocês faziam?

-Íamos todos para o esconderijo.

-Que esconderijo?

-Junto com as vacas.

O estábulo fica embaixo da casa de pedras do Sr. Ali Bacha, que morreu na varanda. É um porão, com entrada independente, na descida do penhasco.

-Ontem (sábado) fomos para lá de novo – diz Fátima, sorridente.

Por que?

-Virgem Maria: ontem houve mais tiroteio. Caiu uma bombona aqui perto. Estávamos ouvindo a tia Kessem contar como foi tratada no hospital de Israel, e veio a bomba. A gente saiu correndo pro esconderijo. Minha tia queria voltar para o hospital. Dizia: não aguento mais…

-Quem atirava?

-Num sabemos…

-O que vocês acham dessa guerra?

-Ai, credo! Deveria ter um entendimento entre eles, pois tá morrendo muita gente que não tem nada que ver…

-Aqui, quantos morreram?

-Oito, e tivemos quatro “ferimentos”.

-Onde caiu a “bombona” de ontem? Ela veio de avião?

Um rapaz responde – o que trabalhava na “agência” do Iraque:

-De avião caíram as luminosas, aquelas que clareiam tudo. A bombona caiu aqui perto, e acho que foi de canhão.

-E quem disparou?

-Os sírios – e ao ouvir esta resposta, a viúva Bacha faz “pssssss”: — Não acuse ninguém, é perigoso”.

-Se eu soubesse que tinha mais guerra, não voltava para cá – comenta Kessem, o braço engessado, as duas pernas enfaixadas, exibindo um diploma de cidadania australiana.

-Você vai voltar para a Austrália?

-Não, se puder, vou para Israel.

Neste momento, ao mesmo tempo, muitos perguntam como é possível viajar para Israel.

Mohamed, o “prisioneiro de guerra”, contam em Al Bireh, já queria voltar para o Brasil desde que escutou as primeiras bombas, “muito tempo atrás”. Aqui, ele tinha uma loja de roupas feitas, sem nome, e que incendiou, atingida por uma bomba.

-Queimaram 20 mil dólares de roupas – conta o primo da “agência do Iraque”.

Depois, ele pergunta: – Mohamed vai receber indenização?

-De quem?

-Num sei… Israel não paga?

-E por que não os sírios?

-Não tem nada que os sírios não levaram daqui do Líbano. Ninguém podia ter um Mercedes ou Peugeot, que eles queriam. Levaram um Volvo de três mil dólares… Levaram uma geladeira.

Fátima acrescenta: -levaram minha máquina de costura.

E um outro completa:

-Olha, eles são “trombadinhas”.

-E os palestinos… Eles andavam por aqui?

A casa ao lado da família Bacha era o quartel-general da OLP em Al Bireh – mais um motivo para as suspeitas contra Mohamed.

-Eles entravam e saíam dela armados. Às vezes, pegavam alguém, davam “um pau”, e soltavam mais tarde. Se um outro apanhou, não vou fazer a mesma coisa, e apanhar também.

-Mas por que batiam?

-Não queriam pagar o aluguel da casa que tomaram na marra. Depois, mexiam com as moças. Eu não deixava minha irmã sair, porque se mexessem com ela, eu não aguentaria e iria tirar satisfações, e então me batiam.

-E os israelenses?

-Não conhecemos ainda. Chegaram agora. Quando subiram a montanha, pusemos bandeiras brancas em nossas casas. E cumprimentamos todos. Estão nos dando água, mas queremos que restabeleçam a luz… Não pudemos ver a copa do mundo: é verdade que o Brasil perdeu? Vai nos faltar comida, em mais dez dias. Precisamos do telefone para avisar nossa colônia no Brasil para nos mandar ajuda. E pedir que o banco de Shtoura abra de novo, para que possamos tirar dinheiro.

Trovões em Al Bireh. Vai chover?

-Não, estão em exercício — responde um oficial israelense.

Lá embaixo, na direção de Beirute, um caminhão com crianças saltaria sobre uma mina antitanque síria. Seis mortos. O grupo ia colher cerejas no vale de Bekaa, que do chão mostra outra paisagem: dezenas de tanques sírios destruídos, casas derrubadas, movimentação de tropas, “aquela chuva de bombas” que pode recomeçar a qualquer momento. Al Bireh está a três quilômetros da frente de combates.

A TRIBO PERDIDA

Casa de família falasha, na Etiópia (foto: www.mikewallach)

Casa de família falasha, na Etiópia (foto: http://www.mikewallach)

Os judeus

negros

de Israel

(Jerusalém, 22/11/1982) — Como muitos outros judeus religiosos, rezava diante do Muro das Lamentações, em Jerusalém, sexta-feira passada, preparando-se para o Shabat começando ao por do sol. A única diferença: sua cor, negra.

Não, ele não era um dos controvertidos negros norte-americanos que se converteram ao judaísmo, célebres pelos nostálgicos blues que tocam pela noite, em Dimona, no deserto do Neguev.

Miss Israel 2013, Yityish Aynaw, a Titi.

Miss Israel 2013, Yityish Aynaw, a Titi.

É um falasha. Um dos 1300 falashas que vivem em Israel, na cidade bíblica dos Sete Poços, Beersheva. Outros 28 mil falashas estão sobrevivendo à fome, à perseguição e à tortura ao redor do lago Tana, uma das duas maiores fontes do rio Nilo, ao sul de Gondar, na Etiópia. Ainda há mais 2500 falashas em campos de refugiados do Sudão, da Somália e do Djibuti.

Falasha é uma palavra de um antigo dialeto etíope, o Ge’ez, que significa exilado, ou estrangeiro. A tribo dos falashas seria a Dan, a que se perdeu de Israel. Quando descobertos, na Etiópia, em 1867, praticavam a circuncisão e observavam as principais festas judaicas.

O falasha rezando diante do muro das lamentações, em Jerusalém, não quis dizer seu nome. Ofereceu um pseudônimo, um nome comum israelense, para não por em perigo sua família vivendo na província de Gondar, na Etiópia. Para ele, não há duvida: “Somos descendentes de Menelik, o filho da rainha de Sabá e do rei Salomão. Jacó e os patriarcas eram todos negros…”

O imperador Hailé Selassié teria sido o último dos “613 Leões de Judá”, a linha imperial fundada por Menelik. Era um amigo de Israel, mas se opunha a que os falashas imigrassem de seu país, explicando:

“Todas as tribos da Etiópia são como os dedos de uma única mão. Se eu deixo partir uma tribo, será como amputar um dedo”.

Coroação da Miss Titi

Coroação da Miss Titi

Selassié foi deposto em 1975, num golpe pró-soviético. E em 1978, o novo líder etíope, Mengistu Haile Mariam, rompia relações com Israel, aproveitando a oportunidade dada pelo então chanceler Moshe Dayan ao confirmar, num discurso em Genebra, em termos genéricos, as denúncias da Somália: os israelenses estavam participando dos combates contra os eritreus, no deserto de Ogaden.

Em 1981, um estudante israelense em Toronto, no Canadá, voltaria ao assunto, explicando que Israel ajudava a Etiópia em troca da liberdade para os falashas. A ajuda envolvia o fornecimento de armas. Sua intenção era a de denunciar a política secreta desencadeada pelo governo Beguin para salvar os falashas. Ele defendia a prática de denunciar publicamente as atrocidades cometidas pelo major Melaku, o governador da província de Gondar, chamado de “o irmão de Hitler” nas associações criadas em defesa dos falashas nos Estados Unidos, no Canadá e em Israel.

-Eu não acredito em diplomacia silenciosa – diz o falasha em Jerusalém, pois meu povo está morrendo.

Os falashas foram reconhecidos como judeus, em Israel, em 1972, pelo grão-rabino Ovadia Yosef. Seis anos depois, outro grão-rabino, Shlomo Goren, o confirmou. E os dois decidiram que os descendentes da tribo perdida de Dan deveriam passar por uma cerimônia de reconversão, a que chamaram de “renovação da aliança”.

O governo israelense ficou entre os dois rabinos, decidindo, em 1975, que os falashas se beneficiariam da “lei do retorno”, como qualquer outro judeu no mundo, e uma “operação-êxodo” foi montada.

Um médico de Israel chegou a ir a Gondar, discretamente, seguido depois pela primeira esposa de Moshe Dayan, Ruth, e de um ex-ministro de Transportes. Espantaram-se ao encontrar uma sinagoga voltada para Jerusalém, vários livros em hebraico, e bíblias em Ge’ez. Os visitantes não supunham tamanha religiosidade entre os falashas.

-Um deles, vindo a Israel, tornou-se rabino – conta o falasha no Muro das Lamentações , que lembra mais um hippie dos anos 60, o cabelo ao estilo de Djavan.

hamiticunion.proboards.com

hamiticunion.proboards.com

Mulu Dese, outro falasha que veio para Israel, voltou para a tribo, em Gondar. Era “um enviado”. Prepararia os outros para a fuga, depois que a imigração legal tornou-se impossível sob o governo de Mengistu Haile Mariam. Foi preso: “agente sionista”.

As últimas notícias de Mulu Dese datam de 1975, e o caracterizam como um subversivo descuidado: reúnia líderes da tribo em sua casa para acompanhar a guerra do Yom Kippur através da rádio israelense, em hebraico.

O jornalista israelense Louis Rapoport foi uma das últimas pessoas a se encontrar com Mulu Dese, sua esposa Esther e seus três filhos.

“Ele tinha perdido toda a fé na ajuda dos israelenses e dos judeus do mundo: -eles não querem ouvir nossas advertências – protestava”.

Rapoport esteve em Gondar pouco antes que as visitas fossem oficialmente proibidas pelo governo etíope. Para ele, “falashas não sofrem um holocausto, mas as escolas da tribo foram fechadas, ocorrem muitas prisões e as torturas são “terríveis”. Para o major Melaku, eles são espiões sionistas, agentes da CIA, e inclusive os teria advertido: “ninguém virá salvar vocês, judeus sujos…”

Segundo a comunidade falasha em Israel, de três a cinco mil membros da tribo morreram nos últimos meses de fome, de doenças. E pressionando por providências israelenses, seus líderes, em Beersheba, no deserto do Neguev, fizeram greve de fome, só interrompida ao receberem garantias de que “o governo Beguin está fazendo tudo o que pode”, dadas pelo chefe do departamento de imigração da Agência Judaica, Raphael Kotlowitz.

Um falasha que andou 14 dias para fugir de Gondar, e foi resgatado por Israel, agora viaja pelo mundo, apelando por assistência à sua tribo. É conhecido por um pseudônimo, Nahum Ben-Yosef, e defende, ao contrário do governo Beguin, uma estratégia agressiva contra a Etiópia.

Nahum conseguiu colocar as associações americanas e canadense pelos judeus Etíopes em guerra aberta contra Israel. O biólogo norte-americano Graenum Berger chegou a acusar o governo israelense de racismo contra os falashas – esquecendo-se, porém, dos Etíopes e dos “black Hebrews”, os negros convertidos de Dimona.

Racismo?

-Isto não é verdade – diz o falasha, em Jerusalém, argumentando que não se sente mais um exilado, um estrangeiro, desde que chegou a Israel, há oito anos. Sente-se integrado como um israelense, fala hebraico fluente, está noivo de uma sabra e é industriário.

Uma proclamação pública seria feita em Nova York, em defesa dos falashas, mas Israel conseguiu impedi-la, alegando que ela provocaria mais repressão, em Gondar. Um funcionário do governo explicou, em Jerusalém, o paradoxo diante do qual se encontra:

-Se revelarmos os esforços que estão sendo feitos pelos falahsas ameaçamos nosso trabalho.

Desfile de plumas em Beirute

ber5

O dia em que

os bersaglieri

chegaram

para a guerra

Plumas castanhas nos capacetes brancos, e lenços violetas enrolados no pescoço — Beirute nunca viu tamanho luxo militar desfilando por suas ruas já indiferentes aos vários exércitos que a ocupam. São os Bersaglieri, os soldados italianos que chegaram anteontem, mas só ontem puderam desembarcar, sob os olhares espantados dos marines norte-americanos, da legião estrangeira da França, israelenses, libaneses, sírios e palestinos.

— Vieram para um baile? – gritou um “GI” norte-americano, enquanto instalava uma caixa de comunicações perto dos silos do porto de Beirute.

De cima de um tanque, também branco, um Bersaglieri respondeu:

— Sei que isso aí é uma bomba, mas explode depois que a gente passar, bem?

Os italianos trouxeram o bom humor à Beirute, apagando mesmo o sucesso do último desfile militar, o de anteontem, feito pelo próprio exercito Libanês, saindo pela primeira vez às ruas, organizados, em grandes contingentes, depois de quase oito anos de guerra.

O coronel Mastico, camisa e bermuda brancos, olhava, com prazer, seu exército de plumas desembarcando do “Buona Speranza” e do “Caorle”, ancorados no porto de Beirute com um grande atraso.

— Este lenço violeta… É moda? — perguntou uma jornalista polaca.

— Não…é o símbolo desta nossa missão — explicou, sério, o coronel Mastico. — Cada missão tem uma cor…Você vê este botão rosa aqui? (no meio do lenço violeta, ele mostrou um botão rosa, quase invisível). É para dividir os grupos.

A jornalista polaca, entre os italianos, causou alguma sensação. E grupos de soldados pediam para fotografar-se com ela. Outros, ainda a bordo, gritavam para ela. Bombas explodiam à distância, comemorando a despedida da OLP.

ber4Um outro jornalista perguntou ao coronel Mastico se suas tropas tinham instruções especiais para capturar membros da Brigada Vermelha que foram surpreendidos em Beirute quando Israel a cercou. Ele o pegou pelo braço, levou-o um pouco para fora do grupo de imprensa e de outros oficiais, e quis saber:

— É verdade? Tem célula da brigada aí dentro — e apontou para além das trincheiras de containers, Beirute oeste. De uma janela, longe, viam-se papeis picados caindo.

— Parece que sim. Mas como os palestinos começaram a retirar-se com kefyas (o pano envolvendo parte do rosto e a cabeça), não se sabe se ainda estão aqui, ou se já partiram para o Yemen, ou para Síria…

Quando a tropa de Bersaglieris deixou o porto, percorrendo a cidade em direção ao aeroporto internacional, que se encarregará de controlar, alguns beirutenses saiam de seus carros, para vê-la. E a maioria achava engraçado.

Dentro do porto, num jipe, observando os marines com seus fuzis M-16, e um equipamento ultrassofisticado, um coronel libanês comentou:

— Estamos nos preparando para entrar em Beirute oeste. E entraremos, muito possivelmente, neste fim de semana.

Um pouco mais além, no edifício destruído da alfândega, no teto, escondido entre escombros, um soldado israelense observava por binóculo os papeis picados caindo para além dos contêineres que marcam a fronteira, neste setor. Agitado, comunicava a novidade para seu comando. E por que? “Não havia ninguém ali, há muitos dias”.

Beirute fervilhava, ontem, de calor e agitação. Diante da galeria Semaane, e na passagem do museu, formavam-se filas quilométricas de carros com mudanças sobre os tetos, a maioria aos pedaços, perfurada por balas. Eram os libaneses voltando para o setor oeste, de onde fugiram durante as várias fases da guerra.

Seguindo a coluna deste êxodo ao avesso, descobria-se um medo geral de não reencontrar a casa de pé, ou o que tinha ficado dentro. A fila não andava, congestionada desde os postos de checagem de documentos. Crianças brincavam atirando com seus revólveres de espoleta ao som das bombas, ontem mais uma vez ininterrupto. Poucos adultos falavam francês ou inglês – só o árabe. A volta às suas casas foi decidida depois que chegaram os marines, especialmente. E reforçada pela televisão libanesa, mostrando os Sírios carregando 30 caminhões com fogões, geladeiras, malas…depois, o exercito libanês garante que os protegerá de possíveis vinganças

bersa

Tawfik, que mora perto da comiche Mazra, e que trabalhava na embaixada do Marrocos, fugiu para Aley, durante os bombardeios. Continuava vendo-os, porém a salvo, do alto das colinas que cercam a cidade.

— Não sei se tenho ainda a minha casa, nem meu emprego — ele explicou. — Volto para ver. Tendo a casa, fico.

Mais que falar, os libaneses muçulmanos que voltam têm dúvidas, como traduziu Tawfik, diante de um grupo que o rodeou, expressando-se em árabe — e fazendo surgir “café Libanês”, como o café turco é chamado em Beirute. “Bachir Gemayel vai trazer a paz para nós?” – era a principal questão.

A esperança está no ar: a Gendarmerie, parte do exército libanês, já tenta controlar o caótico trânsito de Beirute — e guardas já são vistos nos principais cruzamentos, apitando. A luz voltou à noite, nas grandes avenidas, as corniches, embora parcial. Bandeiras do Líbano surgem por toda a parte. Os israelenses desapareceram do centro, reagrupando-se pela periferia. Tratores removem escombros. Pequenos aviões pousam no aeroporto internacional. O embaixador da Arábia Saudita, general Ali Shaer, já estaria de volta, mas sem confirmação oficial. Surpresa, porém, é que os telefones estejam funcionando, entre o oeste e o leste. Até charges voltaram a ser publicadas nos jornais. No “Le Reveil”, ontem, na última página, via-se um libanês todo ferido, enfaixado, fazendo uma chamada: o soldado americano, presente, o francês, presente, e o italiano? – ele pergunta. O soldado italiano está desembarcando correndo de seu barco, atrasado. São os Bersaglieris, o luxo de ontem. Debaixo da mesa de chamada, tremendo, pequeno, vê-se um soldado sírio.

berOs sírios começam a se retirar hoje, pela galeria Semaane, em direção de Damasco — uma partida já duas vezes adiada, por motivos de segurança, os falangistas concentrando-se em pontos no caminho. Ontem, partiram 697 palestinos para o Yemen do Norte, por navio, e também 190 feridos, para Grécia, acompanhados do doutor Arafat, o irmão de Yasser Arafat.

O jornal da OLP já fechou — todos os redatores partindo para o exílio. O conselheiro de Yasser Arafat, Hani Al Hassan, também partiu anteontem, para a Tunísia. O rumor nesta misteriosa Beirute era o de que o próprio Arafat já teria ido embora, entre os 4.371 palestinos que saíram. Ele foi provocado pelo anúncio de Saeb Salam, ex-primeiro ministro que serviu de contato entre o embaixador Philip Habib e a OLP, de que os dois já tinham se despedido. Mas houve um desmentido — uma entrevista com Arafat divulgada ontem pela BBC, sem indicar data.

O tenente-coronel Robert Johnson, dos marines, protagonizou o primeiro contato formal entre os Estados Unidos e a OLP, embora ele o minimize: foi pedir para que a bombástica celebração cotidiana seja encerrada, “um contato técnico”, como o qualificou. Não o atenderam: os tiros para o ar prosseguiram durante todo o dia.

Os legionários franceses, penetrando mais em Beirute oeste, ocuparam o setor do cassino, destruído completamente. Aqui, há 60 anos, um general francês, Gouraud, proclamou a independência do grande Líbano. A independência está próxima: até o próximo dois de setembro, Beirute oeste será reunificada ao leste, e assim, aberta, deverá permanecer. Até 23 de setembro, as forças multinacionais devem se retirar. Depois, sairão também os israelenses e os sírios, que ocupam outras regiões do país. Então, o presidente Bachir Gemayel assumirá o poder, com enviado americano Philip Habib se entregando, atualmente, á tarefa de unificar as várias facções políticas num governo estável. Quem conhece muito bem o Líbano, como o correspondente de “O Estado”, Issa Goraieb, não ousa arriscar um palpite para o futuro.

— Aqui, nada é previsível — ele lamentava, deprimido com a presença de tantas forças estrangeiras em Beirute.

ber3

Tiro em Londres. Guerra total no Líbano.

Inimigos mortais, depois parceiros em busca da paz (Foto: CBS)
Inimigos mortais, depois parceiros em busca da paz. (Foto: CBS 
Shlomo Argov

Shlomo Argov

O embaixador israelense em Londres,

Shlomo Argov, é baleado na cabeça por

terroristas palestinos. Era o que o general Ariel

Sharon esperava para caçar Arafat

e expulsá-lo do Líbano.

Vieram pelo mar Mediterrâneo, envolvendo-se de ar térmico contra mísseis infravermelhos, e lançaram o ataque mais devastador sofrido por Beirute desde o último bombardeio de 24 de julho do ano passado (1981). Em sete ondas sucessivas, das 15h15 às 18h15, os aviões israelenses despejaram bombas sobre objetivos pré-selecionados da OLP, atingindo-os com impactos diretos, e provocando incêndios, grandes explosões – “um pânico indescritível”, como narraram as rádios libanesas. A represália de Israel ao atentado contra o seu embaixador em Londres prosseguia ainda de noite, com a artilharia de longo alcance disparando contra baterias de foguetes Katiushas, no sul do Líbano.

“Não há mais cessar-fogo”, explicou o porta-voz do primeiro-ministro Menachem Béguin. “Aqui, não cairá mais Katiushas”, prometia o ministro Yacoov Meridor, na alta Galileia, confortando a população dentro dos abrigos antiaéreos, depois que uma salva de 20 foguetes matou um homem ao volante de seu carro, ferindo outras quatro pessoas, no começo da noite.

— O exército cumprirá esta promessa – ainda acrescentou o ministro Meridor. Outras fontes do governo, durante o dia, falavam em “exterminar a OLP”, ou em “dar o golpe final contra os terroristas no Líbano”. E se assim for, o cálculo de 30 mortos e de 120 feridos, provisório, na noite de ontem, pode ser apenas um trágico começo de uma guerra total, o ministro da Defesa anunciando que “não vamos entrar numa nova guerra de desgaste”.

Através de seus próprios serviços de informações, Israel já tinha concluído, pela manhã de ontem, que seu embaixador em Londres fora atacado, durante a madrugada, por terroristas árabes. Shlomo Argov, há três anos na Inglaterra, foi baleado, na cabeça, com uma pistola de nove milímetros, polonesa, quando se retirava de um jantar diplomático, no hotel Dorchester, em Park Lane, e encontra-se em estado crítico, no Hospital Nacional.

Para algumas fontes israelenses, Londres teria sido escolhida para o atentado “por parecer um terreno propício, depois da divulgação, sistemática, pelo governo britânico, de que Israel vinha fornecendo armamento à Argentina, clandestinamente” (era o início da Guerra das Malvinas). Haveria, na Inglaterra, assim, um clima anti-israelense, e por isso lá ocorreu o atentado, e não na Itália ou na Alemanha Federal, como era antecipado em Israel, com agentes infiltrados no mundo da guerrilha palestina na Europa.

Prevendo um atentado que marcaria os 15 anos da Guerra dos Seis Dias, exatamente hoje, diversas fontes israelenses passaram as duas últimas semanas advertindo publicamente a OLP: “o cessar fogo”, rompido duas vezes desde julho do ano passado, “envolve também todas as instituições judaicas no exterior, e não apenas a fronteira, no sul do Líbano”.

Após o atentado da madrugada de ontem, nenhum membro do governo de Israel repetiu qualquer ameaça. Este silêncio, raro, provocou o alerta máximo para a OLP, em todo o Líbano. Nas ruas, os israelenses, escutando “o céu carregado”, bombardeiros rompendo a barreira do som, previam, de uma forma geral:

— Vai ser um terrível golpe…

Caças israelenses a caminho do Líbano. photo credit: Thibaud Saintin via photopin cc

Caças israelenses a caminho do Líbano. photo credit: Thibaud Saintin via photopin cc

Antes que Londres revelasse a nacionalidade dos passaportes dos suspeitos presos, entre eles dois jordanianos, um iraniano e um sírio, o porta-voz do Ministério do Exterior, Avi Pazner, já anunciava:

— Não há dúvida de que terroristas árabes são os responsáveis.

Pazner acrescentaria, também, que “todas as organizações terroristas árabes tem seus QGs no Líbano”, indicando o objetivo de uma iminente represália israelense, e ainda revelaria, concluindo, que todas as representações israelenses no exterior já haviam recebido ordens para redobrar a segurança contra “uma nova onda de atentados”. Há dois meses, o segundo secretário da embaixada de Israel em Paris, Yacoov Bar-Simantov, foi assassinado, com um tiro na cabeça. Há dois anos, no mesmo centro londrino, em Park Lane, morreu uma aeromoça da El-Al, num ataque ao ônibus que transportava a tripulação israelense. Em 17/04/1971, o cônsul de Israel em Istambul, Ephraim El-Rom, apareceu morto, após ser sequestrado. Em 13/11/79, o embaixador em Lisboa, Ephraim Elder, foi baleado na perna. Recentemente, dois escritórios israelenses, um em Roma e outro em Paris, também foram atacados.

Saindo de uma reunião do governo de que nada filtrou, o chanceler Shamir apenas diria, “chocado”:

— Árabes terroristas…

Os aviões partiram, mesmo que o Shabat estivesse para começar. A última vez que atacaram em Beirute, em julho do ano passado, deixaram o trágico saldo de 180 mortos. As primeiras bombas caíram perto da concorrida rua Jaloul, visando a tribuna do estádio de futebol transformada em depósito de armas e munição da OLP. Depois, sucessivamente, em ondas que se repetiam a cada meia hora, bombardearam um centro de treinamento do El-Fath, ou “o Relâmpago”, de Yasser Arafat; a base da “Força 17”, que é um grupo especial dentro da OLP; e a entrada que leva ao aeroporto internacional, guardada por palestinos e por soldados sírios da “força de dissuasão árabe”. Segundo o porta-voz militar, em Jerusalém, os aviões “encontraram pouco fogo antiaéreo” – mas ele não revelou que aparelhos estavam sendo usados na operação. A aviação Síria não apareceu sob os céus de Beirute, como nos últimos dois raids aéreos israelenses.

Os campos de Sabra e Chatila também foram acertados – e, pela primeira vez, também a casa de Yasser Arafat, em Bahane, ao sul da cidade, mas ele estava na Arábia Saudita, tentando uma mediação para uma outra guerra, a do Iraque – Iran.

A OLP desmentiu qualquer responsabilidade no atentado em Londres, condenando-o, mas para Israel “a OLP não tem credibilidade, nem para desmentidos”. Só duas horas depois de iniciado o ataque, o porta-voz militar, em Jerusalém, o confirmou, publicando um comunicado oficial:

“Após o ataque criminoso contra o embaixador de Israel em Londres, Shlomo Argov, e após múltiplas violações do cessar-fogo de julho de 1981, o governo deu ordens ao exército de atacar objetivos terroristas no Líbano”.

Um ministro, Yitzhak Modai, explicando então o ataque, declarou: “O preço da nossa moderação tornou-se muito alto. Isto não podia continuar…”.

Beirute em chamas (photo credit: JiPs☆STiCk via photopin cc)

Beirute em chamas (photo credit: JiPs☆STiCk via photopin cc)

O secretário de Estado norte-americano, Alexander Haig, defendeu a represália israelense, dizendo que “Israel mostra ao mundo que ataques terroristas não ficarão impunes”. Mas o Departamento de Estado, em Washington, expressava “uma profunda preocupação com a nova onda de violência”, à véspera da quinta visita de seu diplomata Philip Habib, que obteve o último cessar-fogo, agora inexistente. Ele chega na segunda-feira, a Beirute, enviado pelo presidente Ronald Reagan. Os Estados Unidos consideram que “o cessar-fogo ainda é valido, embora frágil”. A Inglaterra e a ONU foram os primeiros a enviar notas de condenação ao atentado em Londres ao primeiro-ministro Menachem Béguin.

Reagindo ao ataque à Beirute, as baterias de foguetes Katiushas, no sul do Líbano, abriram fogo contra aldeias israelenses da alta Galileia. Os aviões reapareceram, bombardeando uma área entre o porto de Sidon e Nabatyie, ao mesmo tempo em que entrava em ação a artilharia de longo alcance.

O duelo, na fronteira, prosseguia na noite de ontem, toda a população da Galileia dentro dos abrigos antiaéreos. Um diplomata via um grande perigo neste duelo, “embora a represália israelense já tenha sido desproporcional ao atentado”. Lembrava-se que as tropas de Israel estão reforçadas na fronteira, ao norte, desde a anexação do Golan Sírio, “e elas podem avançar, invadindo o Líbano para destruir as rampas de lançamento de foguetes”.

JE SUIS AHMED

AHMED, POLICIAL MUÇULMANO, MORREU EM DEFESA DOS "INFIEIS"

AHMED, POLICIAL MUÇULMANO, MORREU EM DEFESA DOS “INFIÉIS”

`

A tevê de Israel perguntou a um soldado do batalhão que invadia o Líbano se ele sabia qual era a sua missão. Sem titubear, ele respondeu: “Acabar com as katiushas” — os foguetes russos que choviam sobre o norte de Israel, em 1978, disparados pela OLP. A entrevista prosseguiu: “E onde estão as katiushas?” A resposta, totalmente inesperada: “Em Moscou”.

Ouvi um diálogo parecido na tevê francesa. Perguntado como acabar com o crescente terror jihadista na França, um especialista advertiu: “O que assistimos é só o começo; para que não mais se repita, será preciso pegar quem dá as ordens”. Um segundo silencioso de surpresa, ele arrematou: “E os chefes que dão as ordens estão no Oriente Médio e no Norte da África”.

A França está refém da jihad, ou guerra santa. Um dos irmãos que “vingaram” a “profanação” de Maomé, com 12 mortos no ataque à revista Charlie Hebdo, estava em duas listas dos serviços secretos dos EUA. Por uma delas, não podia embarcar em avião de nenhum aeroporto. Noutra, era um da seleção dos mais perigosos terroristas no momento. Os franceses tinham ambas as listas. Por que os deixaram em liberdade? No caso de um deles, por que o soltaram, depois de prendê-lo?

A França relaxou, permissiva, a ponto de ser paralisada por dois dias da trama que foi ao ápice com dois sequestros simultâneos — uma première em Paris. Foi tolerante ante ataques antissemitas. Não entrou em alerta com o êxodo de judeus franceses para Israel. Fechou os olhos para os extremos dos seus cinco a 10% de cidadãos muçulmanos. Agora, acorda para uma nova realidade. Liberdade, Igualdade e Fraternidade não são para quem aspira impor com violência seus valores ou sua religião a outros povos e credos, um choque de civilizações.

Não por acaso o escritor Michel Houellebeca acaba de lançar o já bestsellerSoumission (Submissão) cujo enredo é a islamização da França, que então contagia todos os outros países da União Europeia. Aliás, ele é a capa da edição ensanguentada de Charlie Hebdo. Mas, atenção, nem todos os muçulmanos são jihadistas — ainda uma minoria. O policial muçulmano francês Ahmed Merabet foi morto protegendo exatamente aquilo que o fanatismo tentou destruir, a liberdade de expressão.

No mesmo dia do ataque ao Charlie Hebdo, uma afiliada da rede CBS, em Maryland, EUA, foi invadida por hackers. Nos monitores da redação surgiu a frase: “Infiéis, o novo ano lhes trará sofrimento”. Assinado: “Cybercalifado” — o grupo de apoio ao Estado Islâmico, Iraque e Síria. Mas não só: o sobrevivente dos irmãos que explodiram uma bomba na linha de chegada da maratona de Boston, em abril de 2014, deverá ser julgado na semana que vem.

Se não vamos a Maomé, Maomé vem a nós. O temor aos jihadistas cresce a cada cabeça degolada diante de uma câmera de tevê, ao vivo. O patrulhamento jihadista aumentou a paranoia nos aeroportos, profere sentenças de morte, ou fatwas, contra “profanadores”, mesmo quem só se arma com um lápis, e destampou da garrafa o gênio do mal que assombrou a França — e que promete mais. Quando aiatolá Khomeini saiu de seu exílio francês para assumir o Irã, um “vento” xiita soprou todo o Oriente Médio, contagiante. Mas arrefeceu com o tempo, limitado aos muçulmanos. Já os jihadistas do Estado Islâmico, no Iraque e na Síria, e também no Iêmen, são vulcões que irrompem sem aviso prévio, e em qualquer lugar em que haja infiéis para justiçar em nome de Alá.

Je suis Ahmed  brown

Estou comprando crack


2015-01-05 00.09.36

O fotógrafo Luiz Prado fotografava do alto de um prédio. Na foto acima, pago.

Abaixo, recebo a pedra de crack. Era uma reportagem sobre a Cracolândia,

então novidade em São Paulo. Quando ia embora, a craqueira gritou para mim:

– Ei, vamos fumar juntos?


2015-01-05 00.10.46

Crack em brasa no cachimbo, tragada profunda, relampejam os olhos e… abracadabra: “Sou outra pessoa” – diz Adriana Rodrigues de Souza. É a vez de Gabiru. Isqueiro no fornilho, dá uma cachimbada, prende a fumaça até tossir e… Shazam! “Agora fica mais fácil aguentar o dia” – ele explica, aliviado. Outro pedacinho de crack sobre as cinzas completa a rodada. Micróbio aspira e… tuiinnnn: fissura aplacada.

  Nem cinco minutos depois, Adriana quer de novo ser outra pessoa, Gabiru sente que vai “saindo do ar”, Micróbio afunda na “nóia” – a paranoia. Os três estão na rua Conselheiro Bebias, no centro de São Paulo, contagiados pela epidemia de crack. Imundos, maltrapilhos, confundem-se com o lixo no escuro da noite. Já perderam o amor-próprio, a esperança e a memória. Trocam-se por uma pedra de crack. Perderam-se de tanto barato instantâneo.

   “Cada pedra é uma pessoa” – conta Adriana, 20 anos. “E todas falam comigo”. Mas ela ainda não entendeu “o que as pessoas estão querendo dizer”, mesmo fumando-as, todos os dias e noites, há mais de quatro anos. A próxima dose será sempre uma nova promessa de revelação. Miragem enfumaçada: “Sinto que as pessoas me puxam…”

   Gabiru, 19 anos, “está numa boa”. Quando acha que deve comer, fuma maconha: “Abre o apetite”. Para se desligar, então dormir, ele toma álcool. Assim se cuida. Por suas mãos rolam “umas 80 pedras por dia”. Algumas o mantém “24 horas no ar”. Outras, vende. Ele as chama de “Kuwait”, porque inventadas nos Estados Unidos. “Tô nessa porque quero”, garante. Micróbio, arredio, não fala nem a idade. Irrequieto, ansioso, de pé o tempo todo, só acalma pipando o cachimbo.

  Uma garota de oito anos se enrosca numa sobra do cobertor de Adriana. Fuma tabaco com a compulsão de um adulto. O quarteto se une por algumas coincidências: nenhum sabe de pais ou família, todos são “diplomados” pela Febem e vivem nas ruas. Pressentem o crack como cães, o cio. O mundo vai da estação da Luz até a avenida São João. Há quem cruze a fronteira, chegando à praça da República. Misturam-se às prostitutas e mendigos. Brilhou um isqueiro à noite, ali estão eles. De dia sentam-se no meio-fio, ou se esticam sob o sol para dormir.

  De uma janela para a rua Conselheiro Nébias, no quarteirão próximo da rua Aurora, avista-se uma mulher de vestido preto e branco. Chama a atenção tentando se enfiar entre um carro estacionado e a calçada. Quando consegue, acende o cachimbo. Dia claro, lojas abertas, até a polícia está em ação na esquina, descobrindo que Micróbio é Rodrigo, menor de idade que traz na mão esquerda, tatuada, uma temerária confissão: a caveira com um punhal, marca de quem já matou policial. O soldado Araújo examina a tatuagem. Do outro lado, a mulher se levanta, na fugaz curtição do crack, e encosta na parede de um supermercado, escorregando até sentar-se, as pernas abertas.

  “Não matei ninguém, não” – Micróbio puxa a mão. “Foi na Febem que me tatuaram, mas vou apagar”. Agora o soldado Araújo procura picadas nos braços, enquanto vai perguntando: “Rodrigo de quê?” Cada resposta é um novo sobrenome. Outro soldado os transmite por walkie-talkie. Abordada por um homem, engravatado, a mulher se levanta, cruza a blitz, e logo está de volta. Óbvia transação: vê-se a troca de uma nota por algo invisível, tão pequeno, mas logo enfiado no bolso da calça. E lá vai ela de volta entre o carro e o meio-fio queimar “a comissão”.

  Micróbio olha desconfiado para o repórter. “Foi você”, está na ponta da língua. De noite, Gabiru teria se enganado, agora foram todos dedurados. A imprensa por testemunha, o estudante Marcos Perusi dá um passo adiante, e acusa o soldado Araújo: “Você chamou o suspeito de bobo”. E se apresenta: “Sou da Comissão de Direitos Humanos”.

  -Seus documentos – pede o soldado, surpreendido. “Xinguei ele de bobo?”, pergunta. “Você o insultou”, insiste Perusi, que prova fazer pós-graduação na USP. “Este menino (R.A.M) é ladrão de toca-fitas”, ouve-se pelo walkie-talkie. Limpo, sem drogas nem picadas, Micróbio foi substituído pela Comissão de Direitos Humanos no interesse das Rondas Ostensivas com Apoio de Motociclistas (Rocam). Não sendo bobo mesmo, ele cai fora rapidinho. Do outro lado da rua, o repórter decide testar o mercado de crack a céu aberto.

  -Tem pedra? – pergunta à mulher de preto e branco.

  -Você é da polícia? – desconfia. Tranquilizada, impõe a comissão: “Metade para mim”. Uma pedra, R$10,00. Pega a nota, manda esperar e sobe a rua até um grupo de garotos. Uma perua da polícia chega junto. Descem militares armados. Mas lá vem ela voltando. Cochicha ao passar: “Vem comigo”. Não que temesse ser escutada; com a pedrinha de crack escondida na boca, mal podia falar. Entrega feita, ela diz se chamar Márcia, e convida: “Se deixar eu fumar com você faço o que quiser”. Por enquanto, tem uma nova fornada para o cachimbo. Então se espreme entre um carro e a guia. O mundo vai passando em volta. Com uma aparente alucinação, surrealista: um cavalo sem cavaleiro  surge galopando, perseguido por um policial montado e uma radiopatrulha. Capturam-no na rua Brigadeiro Tobias, já perto do Denarc, o Departamento de Narcóticos, vencido o rush do trânsito na avenida Casper Líbero.

  Um sintoma da epidemia de crack é a violência. Ali está um homem caído no chão. As pessoas que o rodeiam parecem estar drogadas. Olhar esbugalhado, um rapaz abre a porta de um “táxi” que parou – o carro de reportagem do Estadão, camuflado. “Coloca ele aí” – ordena. Esquina de ruas dos Gusmões e Protestantes, quatro da tarde, o motorista Evandro só exige que testemunhas o acompanhem. Ele não quer chegar no Pronto-socorro com um corpo perfurado por cinco tiros, e nada a declarar ao plantão policial. A multidão se impacienta, balançando o carro como se fosse virá-lo. Todos gritam. “Ai minha cabeça: parece uma panela de pressão” – reclama a mulher que tem o respeito geral.

  O Tático Móvel desce a rua a toda, sirene ligada. Dois soldados vestem luvas enquanto perguntam: -O que aconteceu? Silêncio. Um vê sangue, então pergunta: -Quem atirou? Silêncio. Fica irritadíssimo, diz uns palavrões e se dirige a todos: “Agora ninguém sabe p…. nenhuma! Ninguém viu nada. Que se …..” Partem com o corpo sem nome, sem testemunhas, sem nada para o boletim de ocorrências além de local e hora. “Foi uma menina”, revela a ex-panela de pressão, agora aliviada. “Chegou no homem e disparou cinco vezes”. Depois, saiu andando, e ninguém a deteve nem pela curiosidade de saber: -Por que? “Aqui todos sabem”, explica um policial que chegou para investigar. “É droga, com certeza”. Ele não tira a mão do gatilho do revólver, no coldre. “Fuma-se crack no meio da rua”. Só procurar pelo chão: no meio do lixo, há maricas – os cachimbos improvisados, feitos de rosca de lâmpadas ou tampa de vidro de esmalte. As garrafinhas do saudável Yakult também servem. Sem nunca ter passado do cigarro, ele adivinha pelo que já viu: “O efeito deve ser muito forte, muito mais do que o da cocaína pura”.

  Viúva duas vezes, a “Pantera Negra”, ou “Jaboticaba”, ou “Yolanda”, esclarece: “Aqui é uma rua, ali é outra”. Tem lógica, como acrescenta: “O ponto de drogas está ali; aqui ficamos nós”. Não que sejam incompatíveis. Mas o que acontece do outro lado da rua está além de uma fronteira virtual. “Não sou nenhuma santa” – e ela mostra o gesso do braço direito lotado de assinaturas de novos pretendentes. A terceira viuvez? Ela dá uma gargalhada. Uma amiga ao lado parece desconhecer fronteiras. Alucinada, murmura incongruências na calçada dominada pela prostituição. Alguém a chama de “Maria das Pedras”.

  A prostituta cobra R$35,00. Anuncia: “Faço o que posso”. O craqueiro pede R$15,00 mas deixa por R$10,00. Também faz propaganda: “Esta é turbinada”. Quem experimentou, nega. O efeito da pedrinha começa em 15 segundos, dá um pico em cinco minutos, tuiiinnnn, e decai até desaparecer no máximo de 15 minutos. Uma droga fast-food. Fica o vazio que só será preenchido por novas baforadas. Fuma-se para fumar mais, e mais, e mais. O crack é assim, insaciável. Ao estreante, enjoa. Mas produz uma sensação de potência e euforia. A cachimbada equivale ao “Shazam!” que dá poderes ao super-herói das histórias em quadrinhos. Ao abracadabra das metamorfoses mágicas. Em seis semanas de uso, vicia. Com mais tempo, provoca hipertensão, taquicardia, paranoia. E pode levar ao suicídio.

   “Ah, nem sei o que faria sem as pedras” – diz uma craqueira de 17 anos num “ponto” ao lado do tradicional Bar do Leo, na rua Aurora. “Loucura: estou nessa desde os 13 anos”. Uma vez, no barato, ela enxergou cobras avançando poste abaixo. Também já entrou em pânico, gritando sem controle. Desistiu de namorar: “Não tenho nenhum prazer sexual”. Mas ela topa qualquer programa, não importa com quem, por uma pedrinha. “Não estou nem aí para Aids”. Nem para a família: “Esqueci quem são meus pais”.

  A divisão entre consumidor e traficante se embaralha no fast-food do crack. Adriana vendia mais do que fumava. “Aí a Ivonete morreu, de cachimbo na mão, e um tiro no peito”. Era a fornecedora. Agora ela fuma a comissão do que vende. “Pintou freguês, vou buscar”. A memória começa a capengar. Já não se lembra mais de uma irmã. Gabiru a chama de “Gorda”. Maldade: ela parece ter o peso normal, nem tão franzina como os outros craqueiros.

  -O que você come?

  Ela abre a mão para mostrar uma pedra. Come crack.

  -Sede não tem?

  Ela aponta para o esgoto escorrendo para um bueiro.

  -Trabalha? “Cato lixo”, responde. Adriana se gaba de que “pode parar quando quiser”. Gabiru, ex-gráfico, também se mostra convencido: “Eu me controlo, ainda sou dono de mim mesmo”. Então, fumarão mais um pouco hoje, amanhã, depois. Micróbio nem fala mais, só espera a chama de um isqueiro. Já regrediu tanto que o apelido, de outros tempos, lhe faz justiça.

Foto: MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL (21/01/2013)

Foto: MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL (21/01/2013)

 Os pilotos do casarão Santos Dumont

  Reféns do crack, os 400 moradores do “casarão de Santos-Dumont”, no bairro de Campos Elísios, caberiam dentro de um Jumbo voando na rota de um desastre já anunciado por um oficial de Justiça há uma semana: o despejo, em mais 40 dias. Numa escadaria do cortiço, um grupo de craqueiros tenta decolar pipando um cachimbo. Voo baixo, cego, raspando a lama e o lixo.

  “A batalha aqui é grande: os drogueiros são de 30 a 40; a gente disposta a lutar, só dez” – conta um dos moradores. “Mas se nos despejarem não acabarão com a droga”, ele aposta.

  O casarão em que morou Alberto Santos-Dumont, na esquina das alamedas Nothman e Cleveland, deverá agora ser esvaziado e restaurado. Há 12 anos foi tentado o primeiro despejo. Mas 52 famílias despejadas antes de dois cortiços no bairro de Santa Cecília o invadiram. A situação mudou com a chegada dos craqueiros. “Infiltraram-se entre as pessoas de bem”, reclamam moradores que nasceram no cortiço, rompendo um silêncio imposto sob a ameaça de navalha. Uma avó que denunciou ao Estado que a propuseram tornar-se “um avião”, entregando drogas, recebeu a advertência de que poderá “sangrar”.

  À noite, quem tem que passar a pé diante do casarão, corre. O motorista que der duas voltas no quarteirão, revelando algum interesse, será abordado: quer crack? Mas “Salsicha” não está para conversas, só negócios. “Tô numa boa não”, ele avisa. “Desbaratina”, ordena. Uma mulher confessa que se casou “só para sair deste inferno”. Mas ela volta para visitar a mãe. E protesta contra a ordem de despejo: “Como aqui as portas são abertas para todos, não podemos impedir quem quer que seja de entrar. Já entrou ladrão fugindo da polícia. Já chegou para morrer ferido em tiroteios na rua. Aqui há craqueiros como nas ruas centrais da cidade. Todos os lugares têm viciados”.

  As 120 famílias, com 176 crianças, incontáveis cachorros e gatos, foram surpreendidos em março com a chegada dos “Rambos”. Eram policiais bem armados que revistaram todos os cubículos do cortiço. Pela primeira vez a comunidade do Casarão de Santos-Dumont percebeu que tinha se tornado refém dos craqueiros. E que o provável resgate será o despejo final, que o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, a Unificação de Centros de Cortiços, a Pastoral da Moradia e a vereadora petista Aldaiza Sposite estão tentando evitar.

  “Botar a população na rua?” – espanta-se a coligação anti-despejo. “A rua já está cheia…” Uma moradora protesta: “Tem muita família boa e trabalhadora aqui dentro que não deve pagar pelo que fazem uns poucos”. A comunidade também sofre diretamente: “Os craqueiros te quebram os canos, arrancam fios de luz, compram briga”. O anexo do casarão já está contagiado pela epidemia de crack. Completamente alucinado, um homem perambula entre crianças. “O crack me dá alegria”, apregoa. “Troquei pela cachaça, que me perturbava”. Um encarregado da limpeza, diante de um monte de lixo, propõe, mas ninguém o escuta: “Por R$2,00 limpo todo o quintal”.

CREDENCIAIS, POR FAVOR – II

Aqui está a segunda rodada de credenciais que colecionei enquanto correspondente.Nem todas foram para abrir passagem para guerras. Com uma delas segui a vitória de Guga em Roland Garros, na França. Beleza! Outra me levou pela Copa dos Estados Unidos até a vitória da seleção brasileira contra a Itália. Com outra, ainda, fui até a derrota do Brasil para os franceses, em Paris — e ao voltar à feira ao lado de onde morei, perto da Torre Eiffel, alguns anos depois, tive que ouvir o padeiro ainda me lembrar: “les bleus…” Tudo bem: ganhei algumas madeleines pelos desaforos. A primeira rodada das credenciais pode ser vista clicando neste link.

A principal credencial: a placa visível no meu carro para rodar em Gaza, Líbano e Israel.

A principal credencial: a placa visível no meu carro para rodar em Gaza, Líbano e Israel.

Ah, Roland Garros...

Ah, Roland Garros…

Encontro de chefes de Estado na Bahia.

Encontro de chefes de Estado na Bahia.

Esta vale  pela graça: virei "Rabinovia", e a revista para a qual trabalhava, Epola Magazine.

Esta vale pela graça: virei “Rabinovia”, e a revista para a qual trabalhava, Epola Magazine.

Copa do Mundo nos EUA

Copa do Mundo nos EUA

Eco 92, Rio.

Eco 92, Rio.

2015-01-04 23.57.40

Convenção Democrata em Atlanta, EUA

Mike Tyson & Foreman, duas grandes lutas.

Mike Tyson & Foreman, duas grandes lutas.

Encontro Gorbachov e Ronald Reagan

Encontro Gorbachov e Ronald Reagan

Panamá, na invasão americana que derrubou Noriega.

Panamá, na invasão americana que derrubou Noriega.

Carteira do Líbano, durante a guerra de 1982-84

Carteira do Líbano, durante a guerra de 1982-84

Passeio pelo sul do Líbano

2015-01-02 21.15.54

O repórter e a escolta obrigatória (Foto Rina Castelnuovo, New York Times).

Vestir o colete à prova de balas, e estar protegido por uma escolta armada com fuzis M-16. É obrigatório, como apertar o cinto e desligar o celular, nos aviões. Estamos nos aproximando do Líbano, via Metula, em Israel.

Adiante, o “portão número um”. Antes de cruzar a fronteira, paramos num grande pátio, ao lado de uma fila de carretas carregadas com tanques cobertos com panos finos e manchados de marrom e verde, camuflagem transparente, e vários caminhões brancos da ONU com soldados explicitamente nórdicos, louros e já vermelhos do tímido sol de primavera.

Do comboio da imprensa, surge o gordo e simpático arquiteto de Beersheba, no deserto do Negev que, por 40 dias cada ano, assume seu posto de oficial do exército israelense, cumprindo o “Miluim” — o serviço militar compulsório. Ele sai do primeiro dos três carros, todos alugados com seguros especiais para regiões em guerra, e some num barracão de madeira. Vai obter o nosso “visto de entrada” final.

Ônibus com turistas param perto, onde há uma paisagem perfeita para álbuns de recordação: arame farpado, trincheira, a cerca eletrificada que se perde de vista, o chão de areia fina e constantemente varrida que grava as pegadas dos guerrilheiros que conseguirem a raridade de uma infiltração, enganando os sistemas de defesa, e a placa que indica” Perigo: fronteira”. Tem até tenda que vende envelopes com selos libaneses, e como são válidos para remessa dali mesmo, muitos turistas trocam a máquina fotográfica por canetas, então descrevendo suas experiências de guerra. Os soldados alimentam a ficção, posando com suas armas. Este lugar já foi conhecido como Fatahland, por causa dos guerrilheiros do Fatah, e como Haddadland, agora, quando o major rebelde libanês Saad Haddad o proclamou “Líbano livre”. (Cá entre nós, é mais uma Disneylândia do Oriente Médio, graças ao turismo de guerra.

— Israel está querendo retirar-se do Líbano, ou na verdade vai é invadi-lo outra vez? — pergunto aos dois soldados da escolta, enquanto instalam um potente rádio de campanha no meu carro. Não respondem. Aponto para a caravana das carretas com tanques camuflados. Aí um deles explica

— Ah, isto é normal, trocas no front…

Quando não estão mobilizados, em “miluim”, trabalham como carpinteiros, em Holon, ao sul de Tel-Aviv. Hoje farão a última viagem dos 40 dias de serviço obrigatório. “Maspik”, ou “basta”, diz um deles. Vai embora daqui a pouco para casa, onde o esperam mulher e filhos. Volta o oficial e arquiteto de Beersheba, papeis à mão, gritando “Yala, Yala” , “Vamos, vamos”, coletes fechadoa, fuzis ao alcance prontos.  Abre-se o portão número um: entramos no Líbano.

Atire-se um libanês

Ao mar, e ele voltará,

Com um peixe na boca.

Os buracos de tiros de todos os calibres já foram rebocados, na maioria das casas. Como feridas, cicatrizaram, mas deixaram marcas. Ainda se encontram montes de ruinas, aqui e ali. Quando um telhado está quase inteiro no chão é porque desabou implodido por uma granada lançada para dentro pela janela. Mas quando restam apenas pedras, não há dúvida; bombardeio aéreo, ou impacto direto de obus de grosso calibre.

Os sul-libaneses, emergindo depois da guerra de Israel contra a OLP, em meio à guerra civil destruindo o Líbano desde abril de 1975, confirmam o provérbio. Seus peixes tomam a forma de um número impressionante de novas obras. Alguns projetos revelam outra característica do libanês, a sua capacidade de recomeçar do zero, ou o gosto pelo risco: do contrário, como entender o grande hotel sendo levantado vizinho ao portão número um, na fronteira com Israel? Ou o cassino anunciado por uma placa, em frente a uma obra já adiantada?

Será que os sul-libaneses esperam que os israelenses virão lotar o hotel, e apostarão no cassino? E como é que viriam? Uniformizados e armados, como sempre? Ou com passaportes, turistas? Será que estão acreditando numa eventual e distante paz entre Israel e o Líbano, que então abriria a rodovia Jerusalém-Beirute?

O Chateau Beaufort, de onde a OLP disparava contra o Norte de Israel.

O Chateau Beaufort, de onde a OLP disparava contra o Norte de Israel. Thibaud Saintin via photopin cc

Os libaneses não são ingênuos: se voltam com um peixe na boca, depois de jogados ao mar, é porque tem “shatara”, malandragem, no melhor dos sentidos, uma mistura de astúcia e malícia, como me explica um libanês. Alem disso, são ambiciosos: muitas das casas que projetam enormes, luxuosas mansões, ficam inacabadas. Isto se vê por todo o país. Beirute está repleta de sobrados interrompidos no primeiro andar, com as colunas do segundo apenas iniciadas, abertas para o céu como esperando um milagre.

Observe-se bem as casas em construção no sul do Líbano: elas não têm fundações. E o que isto revela não pode ser chamado de otimismo. Os libaneses acreditam tão pouco no futuro imediato que nem raízes fixam. A explosão de um bujão de gás derruba um edifício libanês, como aconteceu no porto de Tiro, onde os israelenses tinham instalado a sede de um comando regional. Ali 62 pessoas morreram.

Mesmo como um castelo de cartas, o sul do Líbano está sendo reconstruído, os buracos de balas tampados, as estradas reabertas, os serviços públicos funcionando. E apesar de todo o dinamismo que se supõe olhando a paisagem, o que mais se vê são homenzarrões jogando bolinha de gude, admirados pelas crianças.

Outra obra impressionante tomando forma no sul do Líbano tem a marca israelense, e está em fase de fundação: é a que recebeu, em hebraico, a abreviatura de “Zadal”, significando “Zva Drom Levanon”, ou Exército do Sul do Líbano.

Os libaneses dizem: “Quem recebemos em casa são nossos primos”. Isto vale para os israelenses? Afinal, esses “brimos” não foram exatamente convidados, impuseram-se. Resta-lhes sempre um argumento decisivo: a força, e se em algumas casas são recebidos com toda a pompa de uma cerimônia de café, em muitos locais caem vitimas de emboscadas, seus jipes de patrulha voam em minas plantadas durante a noite nas estradas, e bombas acionadas por controle remoto explodem à passagem de ônibus de transporte de tropas.

Não é à toa que os soldados da escolta, no meu carro, pedem para aumentar o volume do rádio, quando começa a tocar uma canção popular que diz: “Quero voltar para casa”, e se ela nada tinha que ver com a guerra no Líbano, para muitos soldados servindo em território libanês agora soa como um hino.

Primos? Os israelenses eram heróis, no começo da guerra, para cristãos e muçulmanos do sul do Líbano, cansados da ocupação palestina. Os tanques avançavam rumo a Beirute, arrasadores, e aqui eles eram recebidos sob chuva de flores, e os soldados, presenteados. Os israelenses aprenderam rápido a palavra que resume a grande generosidade do libanês: “tfadale”, “é seu”, ou “leva para você, por favor”, que ouviam quando gostavam de alguma coisa. Nos restaurantes, não lhes cobravam as contas. E no trânsito davam-lhes passagem. Hoje, hoje não aceitam mais nem mesmo o dinheiro de Israel. O israelense passou a ser visto como ocupante, mesmo pelos seus antigos aliados, os cristãos.

“Quero voltar para casa”, cantarola um dos soldados, olhando o pico do monte Hermon coberto de neve. Mas se está incômodo ficar, muito mais será sair — “muito difícil mesmo”, assegura o arquiteto que comanda o comboio da imprensa pelo sul do Líbano, quando nos aproximamos do quartel do “Zadal” em Marjayoun, famoso bastião das forças do major Saad Haddad, que morreu no começo de 1984.

Aquele que permanece sentado

É uma pedra. E o que

se move, um pássaro.

Os israelenses são como os pássaros do provérbio libanês. Estão ensaiando uma nova direção política no Líbano. Com a morte o comandante do Exército do Líbano Livre, o major Haddad, e o cancelamento do acordo de maio do ano passado, para a retirada das forças estrangeiras, com o governo do presidente Amin Gemayel, uma nova situação foi criada. E o capitão Malihi Menachem que o diga.

O capitão Menachem está trabalhando na criação do novo exército, “Zadal”. É israelense, como a bandeira que tremula no pátio do quartel. Mais que isso: recebe tratamento de comandante, de fato, já que oficialmente ninguém foi apontado para substituir o major Haddad. Assim, novos recrutas e veteranos o recebem nos bloqueios militares nas estradas, e os civis o saúdam respeitosamente. Todos os problemas da região acabam sobre sua mesa.

— Subentende-se que é Israel que comanda o novo exército do sul do Líbano. E será assim até quando? — Pergunto.

— Nós… nós não: eles… O major Haddad… Quando ele estava vivo, e ao saber que iria morrer de câncer, daí a sete meses, nomeou cinco prováveis sucessores. Um deles foi Elias Khalil, oficial do exército libanês. Era o mais indicado mesmo, entre todos. Mas ele não compareceu à cerimônia de sua própria posse. “Vocês me mataram antes que eu chegasse”, ele reclamou. Com o seu nome publicado pelos jornais, e sendo cristão, ele passou a receber ameaças de morte. E não assumiu…

— E o capitão Sharbal Barakat, o vice de Haddad?

— Não, muito jovem…ele está descartado. Dentro de mais duas semanas, no máximo três, teremos aqui um novo comandante.

— Cristão? Xiita? Druso? Quem?

— Por favor: não posso responder agora…Temos problemas. Nem tudo que Israel quer é possível, aqui e agora.

A preocupação do capitão Menachem é a de apagar a imagem de força cristã que ainda marca o novo exército do sul do Líbano. “A era Haddad acabou”, ele repete. E mostra alguns números:

— Os cristãos são agora 63% da brigada em formação. Os xiitas, 17%; os drusos, 13%; e os sunitas, 7%. Já contamos com dois mil homens.

— E eles se dão bem juntos? — pergunta-se à lembrança de que em Beirute os grupos étnicos estão muito distantes de formar um exército unido, reconciliados. Como Israel conseguiria o que os próprios libaneses ainda não conquistaram, mesmo após duas conferências de cúpula na Suíça?

Menachem olha para o vice-comandante de uma unidade mista, um libanês que não pode dar o nome por ter família em Beirute exposta a represálias. Ele explica: “Nós temos um interesse comum, só um objetivo — proteger nossas casas e aldeias com nosso próprio exército, enquanto tudo desmorona em Beirute…”

Outro motivo específico ao sul do Líbano: os seus 965 mil habitantes parecem ter concluído, à custa de toque de recolher como punição a atentados, ou fechamento das pontes sobre o rio Awali, ou por causa do excesso de violência que já experimentaram, que não há alternativa senão cooperar com Israel. “Ein brerá”, “não tem jeito”, dizem os israelenses, como consolação. Depois, ainda há o dinheiro: cada recruta, de 18 a 60 anos, com contrato que pode ser renovado a cada ano, recebe mensalmente o salário de cerca de 1.700 libras libanesas, equivalente a 300/350 dólares. Mas mesmo que nada ganhassem antes, muitos soldados já chegam ao quartel com seus Mercedes, pois o Líbano é um país sem impostos de importação.

Os uniformes causam certa confusão, iguais aos dos israelenses. As caixas de munição estão marcadas em hebraico. Mas a arma padrão é o fuzil Kalachnikov, capturado em grandes quantidades dos arsenais da OLP. A cor dos antigos Sherman e T-54, os tanques em operação no “Zadal”, é cinza claro.

Há soldados do exército do sul do Líbano que foram membros das milícias Amal (Esperança), xiitas, e da Saika, o grupo palestino apoiado pela Síria. Não estariam eles, na verdade, infiltrando-se, para sabotagens, muito mais do que voluntariando-se para uma luta em favor de Israel? Não acontecerá igual desastre ao ocorrido com o exército libanês, no momento da batalha decisiva, quando a maioria preferiu desertar?

O capitão Menachem assegura que “até agora, o novo exército mostrou eficiência e fidelidade”.

— São melhores que os soldados israelenses, em algumas coisas – ele acrescenta. “Primeiro, porque são da região, porque servem numa área em que conhecem praticamente a todos, sendo então capazes de distinguir os forasteiros. Digo-lhe: eles descobrem, só olhando, quem chegou para tumultuar, ou quem esconde alguma arma. Já aconteceu várias vezes, em bloqueios de estradas. Segundo, porque estão defendendo suas famílias. E terceiro: eles se comportam agora como um exército. Esta é a grande mudança, eles podem ser enviados em missão, a qualquer parte.

— Quer dizer: os cristãos são enviados para áreas cristãs, e os xiitas, para as xiitas?

Não, diz o capitão Menachem. — O objetivo é a integração. E se há alguma divisão ela não será nunca étnica, mas de acordo com a atividade.

O grupo que mais procura o novo exército, para alistar-se, é o cristão. Mas a recusa tem sido sistemática. Mesmo aqueles que desertaram o exército regular libanês foram reenviados para o norte, em navios que partiram do porto de Sidon.

— Só ficamos com cem deles — diz Menachem. — E por uma única razão: não queremos que o novo exército seja predominantemente cristão.

Durante a operação Litani, em 1978, Israel invadiu uma área cristã do Líbano. Estando agora na linha do rio Awali, mais para norte, a situação mudou completamente. A região sob controle israelense inclui 520 mil xiitas, 200 mil cristãos, 110 mil sunitas, 55 mil drusos e 80 mil palestinos. Por isso, o capitão Menachem conclui:

— Desencorajamos cristãos, e aceitamos os xiitas. Assim decidimos que tem que ser…

Uri Lubrani, o coordenador das atividades de Israel no Líbano, está levando em conta o pró-khomeinismo xiita, mas explica:

— Sou um otimista, apesar das más notícias. Sem otimismo, melhor ficar em casa, ler os matutinos, tomar a dose diária de frustração, e continuar. Aqui, estamos trabalhando duro para evitar que as coisas ruins aconteçam. A pressão pública em Israel para que nos retiremos do Líbano só agrava a situação. Tanto os xiitas como os sunitas nos perguntam: “Mas vocês estão saindo, ou ficando? Se estamos nos retirando, eles dizem que não querem conversa com a gente. Por isso, tenho insistido em não marcar datas de retirada, em comprar tempo… a nossa vantagem é a divisão entre os xiitas.

A luta interna vai crescendo dentro do Amal. Os pró-khomeinistas (os extremistas que estão prontos a morrer em nome de Alá) não passam de uma minoria, e a maioria os considera um grande perigo.

Os israelenses estão certos, depois que ouviram centenas de depoimentos de sul-libaneses de várias tendências, que os guerrilheiros da OLP não são mais bem-vindos na região. Em Beirute mesmo, os drusos eliminaram, recentemente, as milícias pró-nasseristas e pró-líbias, os mourabitun, porque seu líder, Koleilath, estava convidando os rebeldes do Fatah a penetrar em Beirute. A situação se repetiu no Shouf. E também ao sul de Beirute, evitando uma penetração para as linhas ocupadas por Israel.

— Uma consciência cresceu aqui pelo sul do Líbano, fruto de um desejo de viver. O povo está descobrindo que uma forma de viver uma existência normal é a de evitar ataques contra Israel.

Cada ataque palestino em Israel, antes da guerra de junho de 1982, significava represálias aéreas israelenses que atingiam a toda a população, direta e indiretamente. E depois, a ocupação palestina no sul do Líbano foi sinônimo de muita violência, assassinatos, estupro de mulheres e lutas intercomunais. O prefeito em El-khiam, Kamel Zawi, é um caso comum, típico. Sua aldeia foi talvez a que mais sofreu durante o império da OLP, abrigando cerca de cinco mil guerrilheiros. Os israelenses a bombardearam constantemente. A maioria da população fugiu para o norte, de onde fugiu de novo para o sul, há 18 meses. Agora que reconstruíram quase tudo, voltando do naufrágio com um peixe na boca, Zawi e alguns amigos fazem campanha para que os jovens juntem-se ao exército do sul do Líbano, desde que possa ser evitada qualquer publicidade: “Temos família em Beirute…”

Pergunto ao capitão Menachem quando é que Israel vai se retirar do Líbano. Ele parece surpreso: “Vamos ficar aqui 20, 30 anos…Esta é a realidade. Se sairmos, tibum: tudo desaba. Não se fala mais em retirada…Falamos em reduzir o máximo o número de soldados israelenses dentro do sul do Líbano. Claro: acontecendo algo sério, sempre temos condições de voltar.

— Se a integração entre xiitas, cristãos e sunitas funcionar aqui no sul poderá servir de modelo ao norte, para Beirute?

— De jeito nenhum – garante o capitão Menachem.Se o cão do sultão morre, uma multidão vai ao enterro. Mas ao enterro do próprio sultão, quase ninguém.

Pouco depois da morte do presidente Anuar Sadat, fui a El Arish, no deserto do Sinai, onde vi a população recebê-lo em delírio, pela sua iniciativa de paz. Procurei quem tinha entrevistado antes. Era uma maneira de avaliar o impacto do assassinato. Mas, então, ouvia: “Não é mais Sadat. Agora, é Mubarak…” Tanto provoquei, um senhor me disse: “Escuta aqui, Sadat está morto”, e me ensinou um novo provérbio árabe, que embora não seja libanês aplica-se ao Líbano de hoje. Em Bint Jubayl acompanhei uma patrulha xiita numa ronda. Fui conversando com um soldado que todos chamavam de “Ringo”, xiita nascido em Burj Al Barajne, na região do aeroporto internacional de Beirute.

— Sou da metrópole, mas vim para cá faz seis anos – diz “Ringo” com orgulho. O que ele está fazendo aqui, num exército apoiado por Israel. “Yea, yea…Este é um bom exército…”

— E seus irmãos do norte?

— Você está falando de Nabi Berri (líder xiita do Amal, “Esperança”)? Ele não é um homem de bem. Ele não é um bom xiita.

— E por que?

— Porque ele está em contato com a Síria e com os palestinos.

— E você, com Israel…

— Eu quero paz. Israel é um bom país. Gostaria que Israel fosse de novo até Beirute. Dar uma surra no Berri.

— E como são suas relações com os cristãos?

Ringo dá uma gargalhada: — Meu coração está com os cristãos.

Outro xiita, Mustapha Nedji, que não está no exército do sul do Líbano, diz claramente:

— Se um xiita me pergunta se eu gosto de Khomeini, eu lhe digo: “Mas claro”. Só que eu não gosto.

— Você quer que o exército israelense vá embora daqui?

— Sim, se houver paz entre Líbano e Israel.

No alto, com um estrondo supersônico, surgem os aviões israelenses. Sobre a cidade, disparam vários mini-foguetes antimísseis, alaranjados. Estão treinando. Na rua central, nada se altera. Na sede do comando, à porta, oficiais do exército do sul do Líbano, entre eles um druso israelense, tomam cafezinho. Dois oficiais da ONU, um norte-americano e um canadense, tentam comprar vasos que transformarão em lustres, mas não sabem árabe, e ninguém os ajuda. A rua se enche de estudantes saindo das escolas. O capitão Menachem conta, como se fosse um segredo:

— Esta cidade é perigosíssima. Há um grupo khomemista muito influente. Se Israel se retirar, os extremistas tomam o poder.

Quis saber do capitão Menachem o que acontecerá se o Partido Trabalhista vencer as próximas eleições em Israel. Afinal, o líder Shimon Peres está prometendo retirar as tropas em três meses.

— Política… Yitzhak Rabin (ex-primeiro-ministro e ex-chefe do Estado Maior do exército, futuro ministro da Defesa, num governo Peres) esteve aqui, comigo, na semana passada. E ele é completamente favorável a nossa atual política…

— Quer dizer: com os trabalhistas no poder, nada mudará aqui?

— Nada, porque governo e oposição concordam com os mesmos objetivos, embora adotando caminhos diferentes para atingi-los.

Um pneu do comboio fura na estrada, perto de um bloqueio militar de muçulmanos xiitas, sem uniformes. Dois carros, com quatro soldados israelenses, e um xiita que usa revólver como em filmes de faroeste, são escalados para encontrar um borracheiro. Toda saída dos caminhos normais, dentro do Líbano, implica em perigo. E na medida em que fomos penetrando para os subúrbios de Bint Jubayl, grupos ficavam no meio da rua, colocando-se diante dos carros. Mas a visão dos soldados armados parecia dissuasiva.

Num posto de gasolina, quando um israelense mostrou o pneu furado, nada aconteceu. Foi preciso que o xiita á paisana fosse buscar o borracheiro. Os imans e os mullahs da região estão proclamando ser pecado usar um copo que um israelense tocou. Melhor será quebrá-lo. O que dizer então de consertar um pneu?

O dono do posto de gasolina, um xiita que acabou de chegar da Costa do Marfim, veio ver os israelenses, ao saber que apareceram para consertar um pneu. Sendo pró-Israel, não quis inclusive cobrar, e ainda ofereceu cafezinhos. Perguntei se não estava comprando um problema com seus empregados, e os religiosos da cidade. E ele suspirou, e disse:

— Estamos sobre um vulcão.

No caminho de volta, entardecendo, surgem novas carretas com tanques, cobertos de camuflagem. Um soldado da escolta lembra: “Não disse? Estão trocando tanques…tudo normal…”

Publicado em 1984