Este troféu da Abraciclo ganhamos o fotógrafo Luis Blanco,
eu e a revista Cycle World. Foi o meu primeiro e único
freelance em um ano desempregado. Agradeço
ao editor Luis Guerrero por confiar num
repórter septuagenário, que o mercado editorial, em geral,
marginaliza. Durante a premiação, ele escreveu no Facebook
que sou “jovem repórter”. E esse foi um outro prêmio.
Moto não fica velha; vira relíquia. Não fosse o pequeno relicário que conserva viva a paixão por motos que venceram o tempo, a Boca das Motos no centro de São Paulo, talvez a maior do mundo, com mais de 70 anos, já estaria derrotada pela expansão da Cracolândia vizinha, os receptadores que vendem peças de desmanche e a prostituição nas ruas quando as lojas fecham.
Zezé, por exemplo, está aqui há 36 anos. Ele pega uma moto 2014 e a leva para a década de 50. Tem clientes em Portugal, nos Estados Unidos e em todo o Brasil. “Eu continuo na década de 70”, diz ele, José Pelose Filho, 56, dono da Recar, na rua dos Gusmões, 777. “Sou do tempo em que moto era glamour, os motoqueiros se respeitavam e quando emparelhavam, nos faróis, cumprimentavam-se”.
Outro exemplo é Sylvestre Martines Paschoal, o Corvo. Aos cinco dias de idade, já levava o primeiro tombo de moto. Seu pai, o espanhol Perez, foi tirar a mulher e ele, bebê, na maternidade, no Cambuci, montado numa Velocette Mark 350. Como levara ainda outros dois filhos, voltaram cinco a bordo. Mas havia uma boiada no caminho. Ia desviar, não fosse um caminhão cortar-lhe à frente, levantando muita poeira. Despencaram ribanceira abaixo. Mais que um recorde no Guinness, ganharam a vida. O Corvinho, com três anos, já brincava na oficina de motos e motonetas do pai. Hoje é dono da Silverstone Moto, na rua General Osório, 440.
O Corvo, como Zezé, é um exímio restaurador de motos. Faz das modernas, clássicas. Em cima do balcão, expõe a Honda S90 pilotada por Beto Rockfeller, na novela de 1968-69, na TV Tupi. Avisa, por escrito: “Não vendo”. Ele ainda guarda outra relíquia: a moto do pai, autenticada por uma foto já se apagando, amarelecida, em que aparece com a irmã com a altura já alcançando o selim.
Na loja de Zezé, entre dezenas de motos, está estacionado um imponente Rols Royce azul, direção à direita, placa FQU 7074 — ano? Qual ano? “Por favor, não vamos falar disso” — ele apela. “É de um amigo que me pediu para reformar a tapeçaria”. Não fosse “muito amigo”, não faria. Dono de uma frota de motos, ele gosta de sair com Raimunda, sua Vespa. “Mas não põe no texto” — também pede. Quando compara sua Boca com a de hoje, baixa a voz, e como se fosse um segredo, fala a palavra que marca uma enorme diferença: “Desmanche”. Se o atendesse, censurando-me, cometeria um outro tipo de desmanche.
O que não tem problema algum de contar é que Pelose/Zezé chegou à Boca ao tempo em que reinavam seus indisputados três pioneiros: Edgard Soares, Felipe Carmona e Luiz Latorre. Começava a década de 30. O polígono formado pelas ruas General Osório, dos Gusmões e Aurora, cruzadas pelas ruas Conselheiro Nébias, Guaianases, Barão de Limeira e Avenida Rio Branco, pertencia ao bairro chique dos Campos Elísios, onde moravam as famílias tradicionais de São Paulo. O total de 80.350 metros quadrados abriga hoje cerca de 500 lojas de motos, peças e acessórios. Difícil saber quantas exatamente. Há oficinas e revendedores instalados até mesmo em apartamentos de prédios residenciais.
A primeira moto nasceu em 1867, de pai americano, Sylvester Howard Roper. Com cilindros a vapor, exalava um fedor incompatível com os pedestres e produzia um barulho ensurdecedor que espantava os cavalos montados pelos poderosos da época. A versão inodora, a carvão, foi testada numa corrida contra bicicletas, na pista de madeira de Charles River, pouco mais de 30 anos depois. Roper, então com 73 anos, chegou à frente, a 48 km/h. Tão empolgado ficou, ele resolveu comemorar dando outra volta. Aí perdeu: teve um infarto fulminante, caiu morto. A história oficial, como no caso de Santos Dumont e a invenção do avião, consagra o engenheiro mecânico alemão Gottlieb Wilhelm Daimler como o “verdadeiro” pai das motos, e ao primeiro motor de combustão interna de quatro tempos, a Nikolaus August Otto. Mas o motociclista pioneiro, oficial, estava mais interessado, porém, em quatro rodas. E dele viria, com Karl Benz, o Marcedes. O Brasil, perto de 1920, era apenas importador. Vinham as americanas Indian e Harley-Davidson, a belga FN de 4 cilindros, a inglesa Henderson e a alemã NSU. Depois, chegaram a japonesa Asahi, a italiana Guzzi e a tcheca Jawa. A Monark foi a primeira brasileira, com motor inglês BSA, em 1951. Em São Paulo já rodavam as motonetas Lambreta, Saci e Moskito, enquanto no Rio era fabricada a Iso, a Vespa e um ciclomotor, Gulliver. O resto é História.
O trio pioneiro da Boca era unido pela paixão comum às motos, mas separado pelos negócios. Carmona e Paco, pai de Edgardo, montaram uma revenda de modelos americanos e europeus, entre eles a Harley-Davidson, Panther, Indian, BSA, NSU, Norton e Horex. A 50 metros de distância, Latorre abriu sua loja com as italianas Laverda, Guzzi e Ducati. Mais tarde, em 1958, Edgardo proclamaria independência da sociedade herdada do pai, e se tornou um terceiro concorrente, levando a rivalidade comercial entre eles para as pistas de corrida e os pegas da Barão de Limeira ao aeroporto de Congonhas. Os três competiam em vendas na mesma rua, General (Manuel Luís) Osório, o patrono da Cavalaria, que, de certa forma, guarda certo parentesco distante com a montaria
Moto, então, era um veneno, por viciar seus aficionados. Daí para a famosa Esquina do Veneno foi um pulo semântico nos anos 30. Era ali, no encontro dos barões de Limeira e do Erval, outro título do general Osório. O point chegou aos tempos em que Jô Soares o frequentava, ainda motociclista. Aqui Edgard tramava soldar a porta da loja do Carmona, e realmente a soldou um dia, para que ele não chegasse a tempo de ver os ajustes das motos rivais em Interlagos, antes da largada. A decadência coincidiu com a invasão das japonesas Yamaha e Honda. O golpe de misericórdia foi o golpe militar de 1964, que dificultou as importações com inúmeras barreiras alfandegárias. Os filhos dos patriarcas da Boca romântica tiveram que se virar com máquinas rodando no mercado, restaurando-as, customizando-as, ou montando as Vespas que recebiam em peças de Manaus ou direto da Itália. A Lambreta era fabricada perto do Pico do Jaraguá. Outros nomes se juntaram aos pioneiros, como o dos irmãos João e Zé Loco Benedetti — autoproclamado “o primeiro motoboy”, porque entregava as peças para os clientes.
A Esquina do Veneno morreu, ou mudou-se para algumas quadras adiante, na Cracolândia. Como manter o romantismo e charme antigos num Estado que hoje tem cerca de 5 milhões de motos? Para conquistar o enorme mercado, vale tudo. Comprar moto roubada para desmanche é, talvez, a principal estratégia. Peças sem origem e sem nota fiscal, portanto abaixo do preço, são o que procuram todos motoqueiros, nos sábados de alta visitação. A Boca aparece mais nas páginas policias que esportivas dos jornais. A PM e fiscais da Receita fazem batidas de quando em quando, emparedando os cubículos que não têm como justificar a origem de suas mercadorias. Já fecharam por quatro meses uma das grandes lojas, pretendendo dar um exemplo intimidador. O policiamento hoje inclui duas peruas com soldados, na fronteira com os craqueiros. Grupos de haitianos e africanos fazem parte agora da paisagem. Por eles florescem pequenas lan-houses, a conexão via Wi-Fi com famílias distantes. A demarcação de terreno lembra a passagem entre quarteirões étnicos em New York.
The King of Helmets, Luiz Cláudio, dono da loja de capacetes Xaparral, na rua Conselheiro Nébias, 507, faz uma constatação bastante elucidativa: só poucos lojistas hoje têm motos. Há 20 anos, não havia quem não as tivesse. Mais que negócio, era e continua sendo um hobby. Ele próprio, a mulher e três filhos, usam quatro Scooters, mais uma 750 e outra, 650, montada artesanalmente. Na família, porém, Lucas Xaparral partiu noutra direção: adotou o skate, com o qual foi campeão no Circuito Plasma, de SP, em 2004. Carro? Há um, sim, mas fica na garagem. Todos o conhecem na Boca, para onde veio de Londrina na década de 70. Seu celular não para. Como os outros veteranos, a parte melhor de seu negócio é o restauro do passado. “Está na moda capacete antigo”, ele diz. “Faço réplicas”. Os lojistas do ramo de viseiras são seus bons e fiéis clientes, não concorrentes. Confiam-lhe os ajustes para as cabeças dos compradores, principalmente motoqueiras. Devolve-os “sob medida”.
Luiz Xaparral atribui a decadência da Boca ao crescimento do centro de SP. A Esquina do Veneno virou Esquina do Medo para muita gente. Nunca foi assaltado, e lá se vão 30 anos. Mas reconhece: “Os malandros respeitam quem é daqui”. Foi ele quem nos introduziu a um mundo invisível e inesperado entre centenas de lojas. São pequenos apartamentos em prédios residenciais transformados em revenda, fábrica e retífica de peças para motos. Uma proeza subir tornos escadas acima. O húngaro Janos Arpad Danicz estava na cozinha de ladrilhos brancos, ocupada por máquinas. “A vida é aqui”, ele diz sorridente. Não está exagerando: nasceu a três quarteirões da General Osório há 53 anos. O Corvo/Paschoal, da Silverstone, aquele do tombo de moto aos cinco dias de idade, tem uma escada em caracol, no fundo da loja. Por ela, entra-se em apartamentos acoplados com o tempo, depósitos de incrível parafernália juntada em aparente desorganização. Só não tem, com certeza, uma vassoura, ou espanador. Vi uma relíquia, uma enceradeira Arno, deixada num canto há anos. Muita poeira, graxa, máquinas, peças – e desse caos o dia-a-dia continua.
O Corvo gosta do apelido. Sua trajetória passa por anos em que foi preparador de motos dos pilotos Mário Tamburro (Honda MT), de José Casarini (TZ 350) e do chinês King Man Hol (RS 125). Um dia, não resistiu, e foi para as pistas com uma RD 50. Competia com “canhões”, sem dinheiro nem patrocínio, e ainda chegava em terceiro lugar. Apelidaram-no de Maluquinho. Depois, Loukinho. Já o diminutivo Corvinho ficou para o seu filho. Em outra fase de sua vida, atuou como dublê em cenas perigosas de filmes ou novelas de TV, ou assessorava produtoras na escolha da moto ideal para anúncios. O Corvo decidiu homenagear a Honda CB 400, de 1981, que deixou um séquito de fervorosos apaixonados. E a recriou tal qual. Recebeu propostas de vendê-la. Mas a conservou em família, como a usada pelo Beto Rockfeller e a do seu pai.
Lembra de filmes como Easy Rider, com as suas Harley-Davidson Panhead 1951? Ou Top Gun Tom Cruise montado numa Kawasaki GPZ 900R? Do Exterminador do Futuro pilotando uma Fat Boy? De James Bond com uma BMW 1200C? Che Guevara na Norton 500? Do Batman, com sua Batcycles? Você entra na Hot-V2, na rua Conselheiro Nébias, 532, e o clima é esse, de cinema. Está lá escrito: “Lendas never die”. A loja vende “life style”, diz o dono Arnold Santos, 57 anos, baiano de Feira de Santana com longa vivência nos Estados Unidos. Ele está na Boca há 19 anos. Os filtros de ar de suas duas Harley têm o formato de caveira. Os rostos de suas duas filhas tatuados num braço, relojão, anéis, calça de couro, bota e um pipe de duas bocas para fumar não sei o quê preso na cintura, como revólver em faroestes, seriam de um hippie conservado em formol, se os tempos não fossem outros.
Arnold é um artesão bem conceituado. Seus alforjes para motos são cobiçados. Na sua loja cult tem tudo que um easy rider possa pretender, até bandeira americana desbotada. Tanta quinquilharia, será preciso muito tempo para ver tudo. Mas a música é boa para quem se identifica com os sinais ostensivos da era de Aquário, Beatles, Califórnia e Harleys estradeiras. Um casal bull terrier, Chayene e Spy, completa o cenário. Montam nas motos, e no selim adormecem. Alguns motoqueiros também não envelhecem; viram relíquias.