Intifaca é a Intifada com faca. O terror na Terra Santa já passou por várias ondas. Pedras, sequestros de ônibus e de aviões, massacres como o das Olimpíadas de Munique, laranjas envenenadas, celulares explosivos, guerra secreta pela Europa, cartas bombas e pedradas. Já são 48 anos de terror, respondidos a dois olhos por um olho, e a paz entre israelenses e palestinos vai se distanciando, cada vez mais inalcançável.
O terror palestino inaugurou a Intifaca. Por uma cronologia de ataques e contra-ataques desde 1948 que sigo, com crescente horror, 29 morreram de ambos os lados, só neste outubro. Mas outubro ainda não acabou. Para comparar, de janeiro a setembro de 2015 foram 7 os mortos.
Vivi sob o terrorismo nos ônibus em Israel. A ida de um bairro a outro, em Jerusalém ou Tel-Aviv,
muitas vezes terminava °°no cemitério. Quando um passageiro parecia suspeito, todos o fixavam, em estado de alerta máximo a qualquer gesto que fazia. Eram camicases, com cinturão explosivo no corpo e 72 virgens no paraíso, ou apenas uma bolsa, mochila e embrulho esquecidos embaixo dos assentos.
Também testemunhei sequestros de ônibus intermunicipais, freados com tragédias. Vítimas e algozes sabiam que Israel não negociaria: seria rendição ou morte. Os ônibus eram a nova versão do terror aéreo. Aviões decolavam para Tel-Aviv e pousavam em Entebe (Uganda), ou na Líbia, Sudão, Suíça. A batalha final se dava nos aeroportos.
O terror também injetou veneno nas famosas laranjas de Jaffa que Israel exportava para a União Europeia. A mira era a economia, mas as vítimas nada tinham a ver com o conflito no Oriente Médio. Veio a idade das pedras das Intifadas I e II. Os massacres sempre marcaram presença, desde antes da proclamação de independência de Israel, em 1948 – quando os palestinos rejeitaram a parte que lhes cabia na partilha da ONU. Alguns distantes da Terra Santa, como o das Olimpíadas de Munique, e outros em creches, kibutzim e baladas israelenses, e em aldeias palestinas. Vigorava a lei de talião mais dura do general Ariel Sharon: dois olhos por um olho.
Os 1.151 atentados contados até o último 18 de outubro produziram 2.729 mortos e 11.825, entre eles muitos mutilados. Aqui não estão somados os soldados e palestinos mortos na invasão de Israel ao Líbano, em 1982, para vingar o atentado na véspera ao embaixador israelense em Londres. Nem as guerras de 48, 56, 67, 73 e 1982.
Cada onda de atentados marcou uma época, como agora a Intifaca. A primeira vez que fui a Israel, em 1967, o perigo morava nas ruas, com bombas dentro de lata de lixo ou deixadas como embrulhos no meio-fio. As ruas das cidades eram obsessivamente varridas. Qualquer lixinho chamava a atenção. Ainda hoje, no aeroporto de Tel-Aviv, os passageiros podem apreciar o exército de varredores que esvaziam lixeiras a todo momento. Se o perigo rodava com o carro, que explodiam, nos estacionamentos cada um passava por um rigoroso exame, com o hoje chamado selfie sendo feito entre as rodas, um espelho grande e redondo no lugar da câmera. A entrada a cinemas, shopping-center e lojas lembra ainda o trânsito pela segurança dos aeroportos. Isso quando pelo correio não chegava uma carta-bomba. Ou o celular matava assim que atendido.
Tantos anos de terror e contra terror, guerras e confrontos de agentes secretos mundo afora não mudaram a relação israelo-palestina. O então líder Yasser Arafat e o premiê Yitzhak Rabin deram-se as mãos, como o presidente egípcio Anuar Sadat e o premiê Menachem Beguin. Sob o governo de Bibi Netanyahu cada golpe terrorista sempre correspondeu a um enrijecimento maior, quando se imaginava que não havia como piorar mais. Mais voltas do círculo vicioso. Assim a Intifaca já inclui atropelamentos propositais, como na fase em que condutores palestinos de tratores saiam tresloucados contra carros até que parados, a tiros.
A onda atual é difícil de conter. Muitos palestinos trabalham em Israel. Muitos também são israelenses. Puxar uma faca de repente não tem antídoto policial. Pode acontecer em qualquer lugar, a qualquer momento. Revela que as duas comunidades estão se afastando num abismo de ódio e a conta-gotas de sangue. Nos anos 70 ouvi do prefeito de Jerusalém, Teddy Kolek, que árabes e judeus da cidade Santa estavam finalmente unidos para todo o sempre porque ele acabava de unir os esgotos. “Não tem volta”, orgulhava-se. Ainda acrescentava a moeda única, o shekel, que sobrepujou o dinar jordaniano.
Nesta terra de profetas bíblicos, ninguém se atreve a prever o futuro. Quando Israel avançou sobre o Líbano, em 1982, foi recebido com chuva de arroz pelos sul-libaneses cansados da guerra da OLP. E Saiu em 1984 sob chuva de pedras. Quando Sadat foi assassinado fui até Ismailia, no deserto do Sinai, para rever uma família que o santificava, com seus retratos por toda a parte. Surpresa: só havia agora fotos tiradas de jornais e revistas de Hosni Mubarak, o sucessor. Como Sadat sequer tinha sido enterrado, perguntei o que tinha acontecido. Ouvi:
– Ah, Sadat acabou, né?.
No ônibus do terror
Ashkelom, 13/4/1984 — Pareciam sombras movendo-se dentro do ônibus iluminado por vários holofotes. Eram quatro, estavam armados com facas, granadas e uma, pasta “James Bond” com explosivos. Em troca de seus 30 reféns, queriam a libertação de 500 prisioneiros palestinos e a garantia de livre passagem da fronteira para o Egito, Ali Perto.
Os soldados aproximaram-se do ônibus, silenciosamente. Um hospital de campanha foi preparado, helicópteros e ambulâncias esperavam. Eram 4h45 da manha, e começava a clarear, embora a lua ainda fosse visível, quase cheia.
-Fui a uma das janelas, e vi um terrorista. Apontei a arma, e disparei conta um dos soldados da unidade de elite do exército israelense encarregada pelo assalto ao ônibus sequestrado dez horas antes, em sua viagem entre Tel-Aviv e Ashkelon.
-E o que acontecia enquanto você disparava?
-Realmente, não sei. Quando disparava, sabia apenas que estava disparando. Não sabia nada mais. Corri para a porta do ônibus, tentei entrar, entrei e ouvi alguém gritando uma ordem: “resgate os civis”.
Zeev, um dos passageiros resgatados, 26 anos, que viajava com a namorada para Ashkelon, viveu o assalto ao ônibus de uma outra perspectiva:
-Foi tão rápido…eu não me lembro, houve o tiroteio, vidros quebraram, cai no chão. Soldados pularam para dentro do ônibus, alguns passaram por cima de mim. Um deles me tirou, através de uma janela. E agora estou aqui, vivo.
-E os terroristas, Zeev?
-Estavam nervosos. Um deles fumava um cigarro atras do outro.
-E os outros passageiros?
-Estávamos todos calmos, prontos para ajudar.
-Estávamos todos com sangue frio — diz outro dos reféns, uma marroquina que se orgulha de “já ter sobrevivido a seis guerras em Israel”: -Estivemos magníficos. Mas tivemos medo. Eu não conheço ninguém que não tenha medo. Todos os homens, diante da morte, sentem medo.
O soldado da unidade de elite ri ao lembrar-se dos passageiros que retirou do ônibus:
-Ah, ah…eu acho que havia entre eles um pouco de pânico. Mas quem pode culpá-los?
Helicópteros iam e vinham. E a região toda, bloqueada como se estivesse em guerra, passava a animar-se, o policiamento relaxando, a tensão passando á alegria, com alguns militares se cumprimentando.
Eram 18h20, anteontem, quando o ônibus Egged, da linha 300, deixou a estação rodoviária de Tel-Aviv rumo ao sul, pela estrada do litoral. Levava 35 passageiros, e entre eles aqueles três jovens e um senhor árabes, os quatro sentados em dois bancos.
Era uma noite eleitoral, em Tel-Aviv. No partido trabalhista, votava-se um terceiro mandato para deputados que já passaram por dois tendo em vista às próximas eleições, em 23 de julho. E o Heruth reunia-se para o duelo entre o primeiro-ministro Yitzhak Shamir e o general Ariel Sharon. Aqui, no parque das exposições, desde 19h30 corria um rumor inquietante: algo não muito bem explicado acontecendo em Ashkelon.
Acontecia que o alarme do sequestro já tinha soado. A seis quilômetros de Ashkelon, no ônibus já dominado pelos quatro passageiros árabes, uma mulher no oitavo mês de gravidez começou a passar mal, e obteve o direito de descer, na estrada, pedindo carona, entrou num carro equipado com radiotelefonia, e a polícia recebeu a denúncia. Por isso, um jipe com alguns policiais esperava o ônibus na entrada de Ashkelon.
Dentro do ônibus, um dos terroristas segurava o que parecia ser uma garrafa de champanha ao lado do motorista, advertindo que a explodiria, se alguém tentasse qualquer coisa. No meio do ônibus, outro tinha na mão uma pasta 007, e depois viu-se o que continha: dois foguetes antitanque. Os outros dois cuidavam de separar os passageiros em dois grupos. Usavam facas. E um deles falava hebraico o suficiente para explicar:
-Hoje não vai haver paz. Vamos matar todos vocês pelo que os seus soldados fazem com o nosso povo.
O ônibus passou pelo jipe a quase 120 quilômetros por hora. Os policiais, concluindo que o alarme tinha sido realmente serio, abriram a sirene, enviaram mensagens á central de Ashkelon, e todos os serviços de segurança e unidades de elite antiterrorista começaram entrar em ação.
Logo, eram quatro jipes atras do ônibus, os policiais disparando suas armas. O cortejo atravessou o porto de Ahskelon, passou pelo Kibutz Yad Mordechai, e em Gaza o exército o esperava. Um dos bloqueios armados foi cruzado pelo motorista, que tinha ao lado um dos jovens árabes a lhe repetir:” corra, corra…vamos para o Egito…”
Yossef Steve, habitante de Ashkelon, passageiro do ônibus sequestrado, lembra que quando a estrada, ao sul de Gaza, perto do campo palestino de Deir Al-Balah, fica bem mais larga, pareceu-lhe ver soldados de ambos os lados disparando rente ao asfalto. Os pneus furaram, mas o ônibus prosseguiu mais um quilometro, diminuindo a marcha. Quando parou, estava completamente cercado.
-Os terroristas davam a impressão de estarem chocados com a imobilidade do ônibus. Disse para mim: é agora… Abri a janela, e me joguei para fora. Vi um deles correndo com a faca na minha direção… Ele não me alcançou. E parece ter voltado, porque um soldado que se aproximou, pelo lado de fora, extraiu mais gente pela mesma janela, mais seis adultos e duas crianças.
O rádio do ônibus estaria ligado? A censura e o porta-voz militar explicavam que a proibição para a transmissão de qualquer informação era para “não dar aos terroristas a publicidade que eles queriam”. E nem alertar os países vizinhos, todos captando o noticiário em todas as línguas transmitido de Israel a cada hora. Nem provocar o pânico entre os israelenses. E foi assim que quando o vice-primeiro-ministro David Levy desapareceu da convenção do Heruth, concluiu-se: “ciúmes da vitória de Ariel Sharon”. Mas a imprensa começava também a desaparecer. E que estranho aquele locutor da rádio militar dizendo durante o programa dedicado “aos que não querem dormir”, e ouvem pequenos contos de terror, que “se permitirem, teremos uma noite agitada”. O silêncio sobre o sequestro foi realmente efetivo. E quando a imprensa atingia Gaza, já tinha que enfrentar bloqueios militares. Uma fila de carros começou a formar-se na estrada, até então deserta, enluarada e cheirando a flor de laranjeira. Os soldados estavam nervosos, e muitos á paisana, pegos de surpresa. Um deles apontou a metralhadora contra mim, como se minha intenção fosse a de romper a barreira. Não era, protestávamos contra a falta de acesso, e um grupo de correspondentes tentou descobrir outros caminhos. Não havia mais nenhum acessível depois da meia-noite. Só quem passara por ali bem antes, às dez da noite, poderia estar mais próximo do assalto ao ônibus. E ali já sabíamos que ele ocorreria na primeira luz da manha, olhando para os helicópteros, as forças que passavam para o sul e ouvindo pedaços de transmissão das comunicações militares.
Ao lado do ônibus, para uma negociação que nunca seria concluída, por ser uma decisão política adotada por Israel, o ministro da defesa, Moshe Arens, e o chefe do estado-maior do exército, Moshe Levy, ganhavam tempo, os sequestradores pediam um embaixador como intermediário. Exigiam a libertação de 500 prisioneiros condenados a penas de vinte anos de prisão, incluindo os dois ainda não julgados que há doze dias dispararam seus fuzis e atiraram granadas no centro comercial de Jerusalém, ferindo 48 civis.
E o ministro da defesa, Moshe Arens, já desde a meia-noite tinha dado ordem para que se organizasse a operação resgate contra os sequestradores. De manha, diria:
-Foi uma longa noite, e difícil. Seguimos uma política que existe: a de não fazermos concessões a terroristas.
Para Arens, essa onda de atentados em Israel tem por objetivo “demonstrar que os grupos terroristas ainda estão vivos, e são capazes de golpear”. A frente popular de libertação da palestina, do médico George Habash, reivindicou a responsabilidade pelo sequestro do ônibus. Mas os órgãos de segurança israelenses concluíram rapidamente que os quatro árabes pertenciam ao Fatah, de Yasser Arafat, sendo habitantes de Gaza, e não um comando despachado através do Líbano, como os últimos que o precederam.
O primeiro-ministro Shamir elogiou a eficiência do grupo de assalto ao ônibus. E o chefe da policia advertiu a população para a possibilidade de novos grandes atentados, apelando á vigilância nacional. Dos sete feridos do assalto ao ônibus, quatro continuavam ontem á noite hospitalizados. A única refém morta, a soldada Irit, portuguesa, de 19 anos, será enterrada neste domingo, e um porta-voz militar confirmou a morte dos quatro terroristas, desmentindo a versão de que dois deles estariam presos.
Rabino, finalmente alguma coisa com perspectiva. Já estava cansado na cortina de fumaça dos textos sobre o Mufti e a Shoá. Mas, meudeusdoceu!, é possível não recrudescer? A propósito, relia a biografia de Lévinas (de Salomon Malka), e o filósofo dizia “e pode, por acaso, dormir o justo?”. Não, não pode. Estranho tempo em que o profeta simplesmente diz a verdade, e que isso já exija o dom da vidência.
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O justo que não dorme não encontrou D’us em sua própria intimidade, procurando-o fora de si. É o que me lembro de Lévinas. Confere? Escrevi-lhe na quinta-feira, texto maior, mas não o salvei e o perdi. Só descobri hoje voltando de uma fazenda sem web e fone. Abraço
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