Brinca-se que dois presidentes dos EUA serviram a Henry Kissinger em
seus dois mandatos como Secretário de Estado. Tão poderoso, fiquei
intimidado quando o rabino Henry Sobel, seu amigo, nos apresentou.
Tinha tudo para ser um encontro rápido, chato e formal.
Mas aí ele inventou a reclamação: “O Estadão vive me atacando”.
O Prêmio Nobel Kissinger lançou um livro em setembro, World Order,
em que postula que o mundo só conheceu até hoje uma “ordem regional”,
nunca mundial. Lendo-o, lembrei-me do nosso encontro, sobre o qual
escrevi um artigo para o Estadão, aqui reproduzido.
Jerusalém, 29/06/1983 — Quando lhe falaram que o Estadão estava ao lado dele, podendo escutar a conversa, Henry Kissinger reagiu como se o lesse obrigatoriamente todos os dias, logo ao acordar:
-Está sempre me atacando – disse alto o Prêmio Nobel e duas vezes secretário de Estado dos EUA no saguão do King David Hotel.
Por um momento, até Nancy, sua esposa, olhou-o espantada. Depois, ele riu – estava brincando. As brincadeiras de Kissinger, visitando Israel, produziriam longas gargalhadas, um pouco mais tarde, durante um jantar na Universidade de Jerusalém.
Ele lembrou como o seduziram a comparecer ao jantar, e descreveu as táticas israelenses de negociações que considerou perigosas, porque podem culminar em “exaustão nervosa”. O reitor Simcha Dinitz, que no final o convenceu a fazer “algumas observações sobre seu amigo Navon” (o então presidente de Israel, Yitzhak Navon), apresentou-o como “o único secretário de Estado norte-americano ao qual serviram dois presidentes dos Estados Unidos”.
Kissinger fez “algumas observações” sobre o ex-presidente Navon, e “alguns comentários” sobre Golda Meir, lembrando que geralmente ele só fala após “quatro discursos de introdução, três discursos com observações iniciais, três outros com comentários e uma apresentação”, depois de um dia em que dá uma entrevista coletiva à imprensa e aparece em dois programas de televisão.
“O sobrinho levado de Golda”, como ele próprio, mister K, se definiu, deixou o humor por um momento para elogiar a iniciativa do presidente Navon em apoiar a criação de uma comissão de inquérito sobre o massacre de Sabra e Shatila, em Beirute, em 1982. “Restaurou a dignidade do povo judeu” — comentou. E receitou, com a voz rouca, pousada, enquanto sua esposa Nancy acendia um cigarro depois do outro, que “Israel encontrará seu caminho para a paz com justiça”, e que “com gente como Navon não se envolverá em nenhum tipo de extremismo”.
Kissinger veio a Israel a convite da Universidade de Jerusalém, mas fez também uma conferência na universidade de Tel-Aviv. Todo o mundo político israelense aproveitou a estadia dele para uma troca de ideias. Ao primeiro-ministro Menachem Beguin advertiu que a lua-de-mel entre Washington e Jerusalém pode voltar logo à fase de quase divórcio. O chanceler Yitzhak Shamir, depois de vê-lo, mostrou-se mais otimista com a possibilidade de uma retirada Síria do Líbano – já que Kissinger foi o negociador que conseguiu o famoso desengajamento de forças entre sírios e israelenses, no Golan.
Kissinger também esteve com os líderes da oposição trabalhista. Foi quando se despedia de Yithzak Rabin, no saguão do King David Hotel, que surgiu a conversa sobre o Estadão. Um amigo dele, o rabino Henry Sobel, apresentou-me como seu correspondente em Israel, provocando a reação imediata, porém simpática, de representar-se como uma vítima do jornal. Trocamos algumas palavras até ele sair com Nancy e seu filho David, de 23 anos, comentando:
-O Estado… Claro que conheço O Estado…