Hebraico para brasileiro, Brazilai é
uma série de artigos sobre brasileiros em Israel.
São cantores, prisioneiro de guerra,
porta-voz da ONU, agenciadora de bebês para adoção,
políticos em visita e até uma mulher que se uniu a um grupo
terrorista para matar um soldado israelense.
A série começa aqui com Gilberto Gil.
Tel-Aviv, 2/8/1982 — Quem diria que num pequeno país em guerra, Israel, onde cada habitante tem pelo menos um parente ou um amigo na linha de frente dos combates, 150 mil pessoas se reuniriam para ouvir e dançar musica brasileira?
Pergunte-se a Gilberto Gil.
-Incrível, né? – ele comentou, surpreso, ao partir de Israel para Londres. Sua empresaria israelense, a uruguaia Lilian Schutz, a mesma que trouxe Gal Costa pouco tempo atrás, antes da guerra eclodir no Líbano, assegura que “Gil chorava ao caminhar para o avião”.
Pergunte-se também ao Repolho, um dos bateristas que veio com a banda de Gil, considerado “sensacional” pelos críticos de música de Israel, e ele responderá:
-Pô, meu…
Gil deu três concertos pagos, os teatros de Cesárea, Jerusalém e Tel-Aviv completamente lotados, mais um livre, na concha acústica de um grande parque em que se apresentou Zubin Mehta. Fora os espetáculos, ele deu longas entrevistas ao vivo às rádios e uma pela televisão.
Nos10 dias em que passou em Israel, que define como “um país tropical”, ele tratou de ensinar a mitologia brasileira, e palavras estranhas como candomblé, macumba, Oxalá, Yemanjá, Xangô e Oxossi acabaram se tornando populares.
O primeiro show de Gil foi no teatro construído por Heródoto, em Cesárea, há 2200 anos. A audiência era majoritariamente brasileira, saudosa, gritando os nomes das canções que queria ouvir. Um grupo exibia uma faixa: “Curitiba o saúda”.
Tão logo Gil apareceu, com a camiseta amarela da seleção brasileira, houve a primeira tentativa de invasão do palco. Muito à vontade, em inglês fluente, ele falou ao público sobre os problemas de segurança no mundo, deixando implícitas suas criticas à guerra de Israel no Líbano, e prometendo “um carnaval para o fim do espetáculo”. Mesmo assim, ocorreriam algumas cenas de violência, a policia reprimindo duramente os impacientes que já queriam dançar.
Flora, a mulher de Gil, misturou-se ao público, dançando, e muitas vezes Lilian Schutz, a empresaria, teve que avisar à policia:
– Calma, ela é a mulher do cantor…
O show livre de Gil, patrocinado pela prefeitura de Tel-Aviv e por um banco israelense, só seria anunciado após encerrados os espetáculos pagos. Depois de Cesárea, Gil contataria, então, o público israelense, em Jerusalém. Ele repetiria, porém, a mesma recepção dada pelos brasileiros que vivem em Israel, tentando dançar apesar da polícia, muito rigorosa.
Quando chegou ao terceiro show pago, Gil já se sentia á vontade para dizer ao público: “vou cantar uma música de sucesso na rádio israelense…”
E ouvia um coro repetindo: “sarara, sarara…”
A camisa da seleção brasileira já tinha desaparecido. Agora, os músicos apareciam com camisetas locais, Coca-Cola escrito em hebraico, ou “eu amo Nova York, mas minha casa é em Jerusalém”, ou, ainda, uma que traz um jogo de palavras: “Israel Isreal”. Emocionado com a recepção, Gil propunha à sua empresária Lilian um festival de música brasileira, tcom Rita Lee, Caetano, Milton, Maria Bethânia e uma grande banda. Mas, por enquanto, até o fim deste ano, deverão vir o balé do Recife e Nazaré Pereira, Gal Costa estando prevista para o começo do verão do ano que vem.
O último concerto de Gil foi para as primeiras páginas de todos os jornais locais, com fotos abertas das 150 mil pessoas reunidas no parque Hayarkon. A televisão também mostrou a multidão imediatamente após as imagens da guerra, que atingiu uma violência sem precedentes no domingo.
Gil brincava: “foi um maravilhoso sábado no parque”, e Domingo no Parque foi uma das canções que ele incluiu no show. “Aquele abraço”, outra, teve seu momento brasileiro explicado para a multidão, e “Luar”, em homenagem á lua quase cheia, ao lado da concha acústica. Gil estava todo de branco transparente — “e olha: eu vibrava com a energia do público”, primeiro sentado na grama, depois forçando os cordões de isolamento da polícia e de um reforço chamado às pressas do batalhão de guardas da fronteira.
O prefeito de Tel-Aviv, Shlomo Lahat, que com Gal Costa dançava “sangue, suor e cerveja”, estava diante da concha acústica, vendo a multidão reunida apesar da guerra, “coisa que eu não imaginava”, disposto, agora, “a dar toda força a música brasileira em Israel”. E nem é preciso tanto esforço, pois os israelenses criaram um mercado para a venda de discos do Brasil em Tel-Aviv ou Jerusalém, e as últimas músicas são normalmente apresentadas na rádio, com tradução. A morte de um Vinicius ou Elis, por exemplo, renderam várias homenagens póstumas em programas especiais.
Ao final do concerto livre de Gil, que ameaçava não terminar, a multidão gritando “mais um”, a polícia o resgatou, pondo-o numa perua que partiu a toda velocidade. Mas no lugar em que o deixou, não distante, havia uma fila de jornalistas israelenses o esperando — nunca nenhum cantor reuniu tanta gente em Israel, e muito menos em tempo de guerra.
Gil na imprensa israelense
Tel-Aviv, 20/7/1982 — Gilberto Gil apareceu em sua entrevista coletiva vestido como os israelenses: sandália, calção e uma camiseta com o nome de Stevie Wonder. Mas, ao contrário dos israelenses, está contra a guerra no Líbano:
-Não gostei disso, Israel bombardeando Beirute…
Havia muitos jornalistas esperando-o, no Hotel Plaza. Antes de evitar o lugar de honra ao centro de uma comprida mesa, indo sentar-se junto aos repórteres, Gil falava da guerra a correspondentes brasileiros, enquanto uma empresária pedia aos israelenses que evitassem perguntas políticas.
Mas foi inevitável. Um repórter, lembrando que artistas americanos vieram a Israel distrair os soldados nas frentes de combate, logo perguntou:
-Você cantaria para os soldados?
Gil sorriu, e respondeu, num inglês fluente:
-Olha, não tenho a menor intenção.
-Você não tem medo da guerra? — outra pergunta.
-Medo físico, não.
-Você não levou em consideração a guerra, antes de vir?
-Não, desde que os empresários não suspenderam os espetáculos… Aí, Gil fez os jornalistas israelenses sorrirem:
-A guerra aqui não tem nada de novo. Israel está em guerra há muitos anos.
Dizia-se em Israel, antes de Gil chegar, que “foi uma luta de quase um ano conseguir contratá-lo”. Mas Gil desmentiu, revelando que há nove anos ele tenta vir a Israel, “que quero conhecer”, só o fazendo agora porque “o momento é propício, a música brasileira sendo muito divulgada entres os israelenses”.
Perguntaram-lhe se a derrota do Brasil afetou seu trabalho, e Gilberto Gil, vangloriando-se como “goleiro”, contou que gravava duas faixas do último disco antes do jogo Brasil e Itália, interrompendo para assisti-lo. Depois, não se sentia bem para continuar gravando, “mas tive que prosseguir, e ao chegar em casa, chorei”. Até hoje, ele continuou contando, “tenho pesadelos à noite: vejo Falcão…vejo Paulo Rossi…”
Gilberto Gil quer visitar “pelo menos dois kibutzim”, em Israel, e tem um programa cheio: hoje, ele dará uma entrevista ao vivo à rádio militar, no mesmo programa de Eli Israeli, um apaixonado pela música brasileira que popularizou Gal Costa no país, tendo por prefixo o “Trem das Onze”.
-Você soube do sucesso de Gal aqui? – Perguntou uma repórter.
-Sim, ela me contou…
-Espera fazer o mesmo sucesso?
-Olha, eu só tenho medo de cantar no sul da Bahia… se me aprovam por lá, o resto do mundo é fácil. Não estou sendo modesto, não: show é negocio. Não poderia estar aqui se não houvesse aviões e não cantaria, se não houvesse eletricidade. Eu sou apenas uma peça em tudo isto.
Depois da entrevista à rádio militar, Gilberto Gil participar de um outro programa em outra rádio e de um show ao vivo pela televisão. No sábado, no anfiteatro romano de Cesárea, será a sua primeira apresentação, os ingressos já todos vendidos, seguida de um carnaval no Country Club da cidade, promovido pela embaixada do Brasil. Na terça e na quinta-feira, na próxima semana, Gil dará mais dois concertos, um em Jerusalém e outro em Tel-Aviv.
Em sua entrevista, Gil falou também de sua própria música, desenvolvendo uma longa explicação para então concluir:
– Eu faço música negra.
Um jornalista perguntou sobre rock, jazz e ritmos românticos, para estabelecer uma referência para os israelenses, e ele aceitou que “pode-se encontrar de tudo em minha música”, e até mensagens políticas, incluindo-se entre Chico Buarque, Caetano, Milton Nascimento e Bob Dylan – embora, para ele, “Dylan seja muito discursivo”. E explicou “o toque de minha música”:
– Sarara, por exemplo. Quem sabe o que é isso em Nice, em Montreux, em qualquer país da Europa. Ninguém. Mas todo mundo repete. E isto pode ocorrer aqui também.
– Alho terapia?
Gil ficou rindo, copo de suco de laranja à mão, enquanto os jornalistas ganhavam champanha:
– Nada disso. No Brasil, maximalizam tudo. São umas pílulas de alho, e é tudo. Criam muitas histórias…
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