No harém em Gaza com Bill e Monica

Queria saber: qual o impacto do caso Bill e Monica num harém? Mesmo em Gaza, num dos piores momentos de confronto com Israel, em 1998, consegui encontrar um harém que me aceitou como visita. Vamos entrar…

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No harém de Amin Ahmed Dahere, em Gaza, o presidente Bill Clinton é condenado por não ter comprado mais uma esposa, preferindo o adultério. E Mônica Lewinsky, que poderia valer o preço de um cavalo no mercado de Jerusalém, uns 2 mil dinares jordanianos, ou cerca de US$ 2.825, agora não seria mais aceita nem de graça.

“Mônica é o pivô de uma conspiração de Israel contra o processo de paz” – diz Ahmed Dahere, 37, apenas duas esposas por não ter como sustentar quatro, e 13 filhos de 7 meses a 14 anos. E Abu Amar, o Pai Construtor, como os palestinos chamam o presidente Yasser Arafat, está diante de um dilema: “Não tem alternativa a não ser confiar em Clinton, desacreditado como o presidente Saddam Hussein”.

A primeira esposa, Rehab, 37, comprada por 1.300 dinares (US$1.836), e Numa, 30, mais cara 200 dinares (US$ 2.118,60), não dão opinião: fazem o café, caladas. Cada uma tem o seu quarto e “são tratadas igualmente”. Já se foi o tempo em que sultões atiravam rubis em piscinas de água quente para suas odaliscas. Poucos são os haréns em Gaza ou Hebron no limite fixado pelo arcanjo Gabriel: “Se uma esposa não for suficiente, tenha quatro”. O profeta Maomé teve 15. “Hoje está muito difícil ter uma só em Jerusalém”, lamenta Magheb, maïtre de hotel e noivo: “O dote inclui, além do dinheiro, uma casa, eletrodomésticos, jóias, às vezes até um carro… Uma mulher sai mais caro do que um cavalo!”

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Os preços são mais acessíveis na miserável e poeirenta Gaza. Ahmed Dahere sustenta suas mulheres e 13 filhos trabalhando como operário de construção em Israel a US$ 36 por dia. A sala de seu harém é o hall entre andares de um sobrado. Outro senhor de harém de duas esposas, Jihad Ayad, 40, é um pequeno comerciante que poderia se dar o luxo de comprar uma terceira. Mônica? Ele a recusa até doada, mesmo que uma estrangeira possa ter valor extra. “Uma agente do Mossad”, ele a rejeita.

Surgindo no momento em que o presidente Clinton parecia prestes a pressionar o governo israelense a fazer concessões à Autoridade Palestina, Mônica Lewinsky foi saudada por religiosos judeus como a reencarnação da bíblica rainha Esther, que dormiu com o rei Xerxes, da Pérsia, e salvou o povo de Israel da forca coletiva. Agente secreta ou divina, ela continua paralisando o processo de paz no Oriente Médio. “Se Clinton cair e vier Al Gore será ainda pior”, diz Ayad. Harém vem de harim, “lugar proibido” ou “sagrado”, em árabe, e também “o que é”.

Conheci outro harém em Bethlehem, a Belém em que Jesus nasceu. Afastado um pouco da cidade, numa colina, era uma tenda enorme de beduíno. O sultão ali preferia as gordas, mas muito gordas mesmo. Tinha quatro que pareciam irmãs. Elas dividiam os afazeres do dia e cada uma teve alguma participação no chá com “nana” (hortelã) que serviram. Não o tomaram; ficaram olhando o maridão com as visitas.

John Frederick Lewis - 'Life in the Harem'

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Por duas vezes, passeando com brasileiras no “shuk” (mercado) dentro das muralhas da velha Jerusalém, fui assediado por árabes que queriam comprá-las. Uma era uma negra exuberante, ex-dançarina de programas dominicais de TV. Os interessados se revezavam, seguindo-nos pelas ruelas da santa Via Sacra, cada um aumentando a oferta do anterior, baseada no câmbio de camelos (a cotação era publicada no Jordanian Times). Podia sair dali com uma manada, ou um saco de dinares. A outra amiga, loura. Ameacei vendê-la, de brincadeira. Bastou insinuar que havia uma pequena chance de negociação, instaurou-se uma perseguição sem trégua. Corremos até o Muro das Lamentações. Aqui recuperamos a monogamia e a paz.

 

Mister Fordwagen

 

Na balsa Guarujá-Santos, a pé, Henry Ford II e a mulher estavam se empapando na forte chuva de vento que desabara de repente. O melhor refúgio, até já oferecido, seria uma Kombi. Mas o poderoso dono da Ford, que veio ao Brasil lançar o primeiro Galaxie 500, entraria na concorrente Volkswagen? Façam suas apostas…

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Mister Henry Ford II refugiou-se dentro de uma Kombi.capa1

Pouco antes, o dono da Ford Motor Company, neto do criador do Modelo-T e da primeira linha de montagem de carros do mundo, estava a pé, uma pasta em cada mão, ao lado da mulher Maria Christina Austin Ford, e acuado por um garoto que vendia laranja.

“Ô moço: leva uma aí…” – ouvia o grandalhão e rosado Ford II.

Armava-se um temporal de verão. Raios riscavam o céu. O casal Ford tinha ido ao Guarujá passar o fim de semana de sua visita de cinco dias ao Brasil, no final de janeiro de 1966, convidado de honra da festa anual do Clube Samambaia. A italiana Maria Christina, no primeiro ano de Miss Ford, brilhou no baile com um palazzo-pijama azul. Só não dançou.

“Aqui é a Saint-Tropez da América do Sul!” – ela descobriu.

Mister Ford estava no Brasil a negócios: “Nossos 233 revendedores vão vender o mais moderno automóvel fabricado na América do Sul” – anunciou ao desembarcar de seu Jet Star, em São Paulo. Era o Galaxie, a novidade do Salão do Automóvel de 1967. “… E seu preço será razoável, um pouco mais caro que o Aero-Willys e o Simca”.

Mister Ford comentou que “o carro no Brasil é caro por falta de concorrência”. E deu, por exemplo, a própria produção de mais de dez tipos só de carros-passeio: o Lincoln, Mercury, Comet, Fairlane, Galaxie, Thunderbird, Mustang, Falcon, Taunus, Cortina, Cobra e Bordinat Cobra. Para circular em São Paulo com seus convidados ele mandou trazer três Galaxies-500 do ano, dois outros de 1964 e um de 65. Mas não levou nenhum deles para o Guarujá. Sua mulher tinha descido a serra com amigos, no começo da tarde. E ele a seguiu à noite, de carona. Ficaram no prédio de 11 apartamentos de Luís e Alice Campelo, na praia das Tartarugas.

-Se seu carro quebrar no Brasil, qual outro alugaria ou compraria? – perguntou um repórter. Mister Ford ponderou: “Isso é muito difícil de acontecer… mas, se… eu pegaria um nacional, de preferência o Volks, agora muito popular nos Estados Unidos”.

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Mister Ford inspecionou as fábricas do Ipiranga e São Bernardo do Campo, com 4.088 empregados. Foi recepcionado na casa do industrial Ermelino Matarazzo e na Hípica. Agora esperava com a mulher a balsa para Santos, deixado no cais de Guarujá por seus anfitriões. Suava andando impaciente de um lado ao outro da rua. Tinha 49 anos e era dono de uma fortuna que chegaria a 200 milhões de dólares.

“Ô moço: leva uma laranja!” – o garoto perseguia Mister Ford.

Estava duas horas atrasado: no Rio o esperavam o presidente Castelo Branco e três ministros. Um Galaxie o levaria do cais de Santos para o seu Jet Star, no aeroporto de Congonhas.

A balsa atracou no Guarujá e partiu para Santos já debaixo do temporal. Mister Ford e Maria Christina, com um vestido de bolinhas pretas e rosas, correram para baixo da marquise. Mas a tempestade era de vento. Estavam encharcados, apertados no meio dos passageiros, quando o relações públicas da Ford avistou um abrigo: era uma Kombi da Breda Turismo.

Mister Ford ria muito ao passar as mãos nos vidros embaçados da Kombi. E Miss Ford reclamava de seus documentos molhados. A travessia de dez minutos já tem 37 anos.

PS.: este texto rendeu um aparelho de som num concurso da Volkswagen

 

Meu amigo Porro

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Valéria Schilling, Porro e Paulo Kus

Enfim, ontem, dia 1° de fevereiro, reabri meu arquivo em Folio. Filtrei-o via Windows para o Mac. Fácil, depois de anos de tentativas frustradas, desde que o Folio acabou. O primeiro artigo que surgiu foi o elogio fúnebre que escrevi para meu amigo Alessandro Porro, jornalista com quem partilhei guerra e paz no Oriente Médio por oito anos. Ficamos muito amigos. Chamava-o de Porro, como os outros jornalistas estrangeiros em Israel. Dia seguinte, hoje, 2/2, recebi uma mensagem de amigos em Atlanta, nos EUA, lembrando: “Hoje o Porro faria 86 anos”. Googlei “Alessandro Porro” e pouca coisa retornou. Nenhuma foto. Li, e recomendo, um longo e ótimo artigo de Ali Kamel para o Observatório da Imprensa (www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/mem211020031.htm), mesmo que tenha me irritado muito. Nele é dito que quem chamava o Alessandro de Porro não podia ser amigo dele. Como assim? Nunca o Porro me pediu para chamá-lo pelo seu nome, nem reclamou que eu e todos o chamássemos pelo sobrenome, mais curto. Que arrogância desqualificar dezenas de amigos do Porro por achar que o certo seria tratá-lo por Alessandro! Sabia dessa parte do texto sem tê-lo lido, até ontem. Escrevi para o Ali Kamel até que ele me concedeu o direito de ser amigo do… Porro. O elogio fúnebre que reproduzo agora, aqui, escrevi para o Observatório da Imprensa (embora não surja na pesquisa do Google). Se bem me lembro, Alberto Dines o encomendou, enquanto ambos víamos o caixão baixar à cova. Tenho um enorme respeito pelo Dines, meu guru desde sempre. Mas estou magoado com uma decisão que ele tomou: passou o título Meu Amigo Porro para Meu Amigo Alessandro. E substituiu sobrenome pelo nome em todo o corpo do texto. Merecia ser consultado. Impôs essa lenda de que o Porro só pode ser chamado de Alessandro. Que há de feio em Porro para que Dines e Kamel o evitem? Se não gostasse do próprio nome, porque nomeou uma filha de Alessandra Porro, mudando apenas uma letra. Ora, por favor… Mas aí está: Alessandro Porro continua polêmico e controvertido mesmo depois de morto. Saudades dele. Cometeu pecadilhos no jornalismo que o tornaram famoso, com Ché Guevara e com Cazuza, e também muitos acertos que, num balanço final, o absolvem. Tinha um imenso coração. E para todos: para quem o tratasse de Porro, ou Alessandro.


 

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A lembrança de Alessandro Porro me afligia nos últimos dias. Sabia-o mal de saúde e havia meses tentávamos marcar um encontro. Aí ligou Alessandra, uma de suas quatro filhas: “Papai morreu”.

Estava fechando a edição de segunda-feira do Diário do Comércio. Teclei “Alessandro Porro” no Google para coletar dados para uma nota de falecimento. Surgiram alguns textos que ele assinou na coluna Swan, em O Globo. Notícias de mais um livro que publicou, Casamento & Divórcio. Uma citação rancorosa em uma entrevista. Praticamente só. Quanta injustiça!

A Porro (no Brasil só o chamavam de Alessandro, mas no exterior, onde o conheci em 1977, era Mr. Porro) é debitada uma grande besteira jornalística. Não a li, não a vi, não a testemunhei, não conheço quem a confirme, mas apenas quem a repita, como se fosse lenda. É o relato da morte de Ché Guevara, escrito como se ele a tivesse assistido na Bolívia, mas despachada da redação da revista Realidade, na marginal Tietê, em SP. Como um bumerangue, o “furo” de reportagem voltou ao Brasil e o acertou em cheio, ferindo-o para toda a vida.

Nunca ouvi Porro falar de Ché desde que fomos apresentados, em Tel-Aviv. Ele era correspondente de Veja, eu do Estadão. Ele, veterano, eu começando. Frequentávamos o centro de imprensa com os brasileiros de O Globo, Jornal do Brasil e da Folha. Último a chegar, levei algum tempo até descobrir a concorrência mortal que nos unia cinicamente apenas no cafezinho, enquanto líamos comunicados do governo depositados em nossos boxes e ouvíamos o noticiário em inglês ou francês, cada um com seu rádio-gravador de pilha. Porro orgulhava-se de ter o melhor de todos. Em casa, o exibia: era um rádio tipo militar, reforçado para guerras, mas grande demais para carregar.

Porro não me declarou guerra. Até me ajudou com o credenciamento e a escolha do bairro para viver. Mostrou-me restaurantes. Aclimatou-me à vida israelense. Por ser o único semanário entre diários, ele se dava com todos, sem concorrência. Passava as noites de quinta-feira escrevendo; às sextas, comemorava. Lia com sotaque italiano a sua reportagem para os amigos. Depois, shabat, ia beber chá com hortelã no Café Kassit, na rua Dizengoff, onde se encontrava com Ibrahim, o seu amigo palestino. Visitava livrarias. Preparava ele próprio o jantar, quase sempre um espaguete a putanesca. O fim de semana só acabava na segunda-feira à tarde. Tinha um acordo com a mulher, Irene: ele limpava a casa de seu umbigo para cima, incluindo a montanha de louça suja que deixavam acumular, e ela ficava com o chão, o lixo, a roupa e um cão que tinha medo de tudo, até de passear.

Irene era uma negra escultural, descoberta por Porro quando dançarina dolivro-memorias-do-meu-seculo-lembrancas-de-um-corsario-8539-MLB20005831720_112013-O Sargentelli, num show brasileiro em Paris. Ela acabaria se tornando conhecida em Israel depois de fotografada com os seios oferecidos numa bandeja para capa de disco. Os árabes a saudavam com salamaleques, quando turistava pelas cidades palestinas da Cisjordânia. Mas alguns religiosos vizinhos de prédio não a queriam, nem ao marido, menos ainda ao cachorro – e uma vez tiraram dele alguns pelos para um antídoto contra os três.

Porro tinha um amigo inseparável em Israel: o norte-americano Barry Riesenberg, casado com Malka, então funcionária da El-Al, a companhia aérea israelense. Os dois escreveram um livro: como a paz em fim de negociações entre egípcios e israelenses seria recebida em várias partes do mundo. Eram páginas brancas, com uma frase só, às vezes com uma única palavra. O motorista de táxi em Nova York exclamaria: “Socorro!”, em iídiche. Yasser Arafat: “Socorro!”, em árabe (acho que também em hebraico). O papa: “Socorro!”, em polonês. Queriam publicá-lo a tempo de pegar a onda de consumo de fim de ano. Estavam seguros de que seria um grande sucesso. Mas a gráfica atrasou muito esperando o texto, que não existia. Pronto o livro, nenhuma editora aceitou distribuí-lo. Os dois autores resolveram protestar bloqueando a porta da principal livraria de Tel-Aviv, a Steimatsky, com um montão de exemplares. Mas um caminhão de lixo os levou todos embora.

No avião com o primeiro-ministro Menachem Beguin e a imprensa internacional, no primeiro voo histórico Tel-Aviv-Cairo, Porro pôs um exemplar do seu livro para circular. De repente, um jornalista gritou em inglês, mostrando-o a todos: “Eu comprei essa merda!”

Porro levantou-se e também berrou: “Ah, foi você!” A discussão continuou porque o único comprador queria seu dinheiro de volta. O avião gargalhava. Beguin pegou o livro e o repassou sem sequer folheá-lo. O coautor Barry acabaria usando o encalhe para calçar a própria cama ou como blocos de anotação.

No Cairo, Porro e um dos seguranças de Beguin se desentenderam à entrada da preciosa sinagoga dos remanescentes judeus do Egito. Foram apartados antes que se engalfinhassem. Barrado, ele aproveitou para ir ao shuk, o mercado. À noite, no Mena House Hotel, lá estava ele, como se nada tivesse acontecido, vestido com uma galabyia, a túnica dos árabes, toda branca. “É de linho”, exultava. Depois desta viagem, ele nunca mais pôde entrar em Israel sem ser levado por policiais para uma revista detalhada, em que até a pasta de dente era espremida. Cortesia do vingativo guarda-costas da comitiva de paz israelense.

O jornalista Porro que eu conheci prezava cada palavra que escrevia. Comparava as traduções para o árabe e o hebraico de acordos assinados em inglês. Atualizava-se obsessivamente sobre o Oriente Médio. Eram livros de história, biografias, ensaios, até a Bíblia, a Torá e o Alcorão. Lia os jornais americanos, italianos e franceses. Vendo-o tão zeloso imaginava que ele estava querendo abrir uma trajetória de trabalhos consistentes que o distanciassem cada vez mais do mito sombrio de Ché Guevara.

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No Egito: Porro, obviamente o mais elegante; eu entre ele e Wladimir Weltman

Porro tinha tanto humor quanto pavio curto. Eu o vi explodir dentro de um banco que não aceitou sua credencial de jornalista como documento de identidade. E o vi também se aproximar de um casal de velhinhos, abraçá-los como se os reencontrasse depois de perdê-los na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, fazer um escândalo público, eufórico, para depois se retirar sem dar nenhuma explicação. Ficou possesso quando alugou um carro branco, com motorista, para receber um Civita em Tel-Aviv, e apareceu um azul. Brigou comigo porque eu ia veloz de Beirute a Haifa, atrasado para enviar o artigo do dia, e ameaçou saltar no meio da estrada aberta por tanques, numa aldeia xiita. Não parei. Mas ele ainda me fez voltar uns 50 quilômetros, enfrentando de novo inúmeros check-points do exército israelense e de facções palestinas, ao descobrir que tinha esquecido os óculos no bar do hotel Commodore, nosso ponto de partida, horas antes.

Vivia uma vida desregrada. Fumava sem parar (e morreu aos 73 anos “sem pulmão”, como contou o amigo que o levou para o hospital). Bebia. Emendava dias e noites. Nunca o vi preocupado com dieta ou em fazer ginástica, caminhar. Um dia ele foi transferido de Israel para a Inglaterra. Em Tel-Aviv deixou a exuberante Irene, que passou a namorar um ferido de guerra sem uma perna. (Esse detalhe é importante: ao chegar em casa, ele tirava a “perna” e a arrumava, bem visível, ao lado da televisão). Em Londres deixou um olho, ao bater o rosto no corrimão da escada de um bar. Ganhou uma indenização por acidente paga por um de seus cartões de crédito. Dizia que ia comprar uma casa… Ele sonhava em abrir um restaurante pequeno. Mas não largava o jornalismo. Em todo grande acontecimento no Oriente Médio, lá vinha ele avisando, pelo telex, que estava voltando. Não importava a demorada revista-punitiva no aeroporto — ele não se permitia perder mais um capítulo de guerra e paz entre judeus e árabes palestinos. Sempre aparecia com um malte escocês para abrir com os amigos. Numa dessas viagens ele fez um trabalho memorável. Foi a reportagem da tragédia de Sabra e Shatila, o massacre de palestinos por forças cristãs libanesas, consentido pelo ministro da Defesa israelense na época, general Ariel Sharon. Ele mostrou ser inadmissível que Israel não soubesse o que acontecia nos campos de refugiados.

Porro gostava de casar (e dizia que procurava agora a sétima mulher) e de escrever livros (quantos publicou? não sei… Surpreendeu-me uma vez como autor de um livro sobre a operação Entebe; e ontem, como autor do guia Casamento & Divórcio; sempre, com projetos mirabolantes logo abandonados.) Um dia o reencontrei na plateia de uma palestra que fiz em São Paulo. Combinamos nos ver algum dia. Ele me mandou um e-mail com uma charge em que um nadador judeu abre uma piscina como Moisés, o Mar Vermelho, e uma pergunta sobre o jantar: “Quando?”

Pensei no “quando?” nos últimos dias. Como estaria o Porro? A poucas horas de ir a seu enterro, agora, senti que deveria escrever este testemunho. Será uma injustiça se um jornalista de tantas coberturas importantes e históricas, um homem notável, ficar relegado ao esquecimento ou só ser lembrado por um erro pelo qual pagou a vida toda.

 

Cocaína na Casa Branca

Os marqueteiros do presidente George W. Bush queriam uma dose real de cocaína no discurso que proclamaria a retomada da guerra às drogas. Para maior dramaticidade, a cocaína teria que ser negociada diante da Casa Branca. Feita a encomenda aos agentes da DEA, um pacote com pó branco foi mostrado pelo presidente Bush aos americanos, ao vivo na TV, em 5 de setembro de 1989, enquanto ele comentava: “Foi apreendido na praça do outro lado da rua da Casa Branca… Poderia ser heroína…”. A verdade foi bem outra. Toda a encenação não escondeu a trapalhada em que se envolveu a DEA. Deu tudo errado. E nem precisava. O Distrito de Colúmbia já era famoso por consumo de drogas. Apenas alguns meses depois, em 1990, o prefeito da cidade, Marion Barry, seria flagrado pelo FBI fumando crack, num quarto de hotel. E poucos anos antes, em 1981, o traficante mais procurado do mundo, Pablo Escobar, se deixou fotografar pela mulher, Maria Victoria, posando de turista diante da Casa Branca, com o filho (foto abaixo). Os três, depois, ainda visitaram o FBI.

O turista Pablo Escobar com o filho, diante da Casa Branca.

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Washington, DC — O discurso do presidente George Bush requeria um pacote de cocaína comprado diante da Casa Branca para ganhar maior dramaticidade. Marcaria o recomeço da guerra às drogas. Só que agora, quando um Juiz começou a ouvir o investigador encarregado da compra, e o traficante que foi preso, o drama virou uma comédia.

O investigador, Sam Gaye, lembra que seu chefe lhe perguntou, em 31 de agosto: “Você pode comprar droga perto na Avenida Pennsylvania, 1600? Dá para chamar qualquer dos traficantes que conhecemos?” O endereço era o da Casa Branca. E a missão tinha que ser cumprida em 24 horas. A ordem vinha diretamente do ministro da Justiça, Dick Thornburgh.

O primeiro traficante contatado não apareceu. O segundo, Keith Jackson, um estudante de 18 anos, não sabia onde era a Casa Branca. “Tivemos que manipulá-lo para que fosse até lá” — lembrou o encarregado das investigações da Drug Enforcement Agency (DEA) em Washington, William McMullan. O encontro, marcado por telefone, foi gravado. Mas quando o juiz Stanley Sporkin pediu a fita, ela já não existia mais.

O microfone secreto que Gaye levou para a operação de compra de droga na praça Lafayette, diante da Casa Branca, não funcionou. O câmera que filmava o encontro perdeu exatamente o momento da passagem da droga, porque uma mulher – um dos vários sem-teto que se manifestam ali – o atacou, aos gritos:

“Não tire minha foto, não tire minha foto.”

Os jurados não contiveram as gargalhadas. Riram ainda mais quando o vídeo foi exibido. Ele começa mostrando um dia de verão na praça Lafayette. Gaye é visto esperando na avenida Pennsylvania, com a Casa Branca e dezenas de turistas ao fundo. Logo que o traficante desce do carro, com o informante da polícia, vê-se uma mulher irritada aproximando-se da câmera. Por alguns momentos, o foco passa para a grama, o asfalto, o horizonte, e quando volta a focar na direção certa, o negócio já havia sido concluído, e traficante e policial já estavam distantes um do outro.

cocaPor fim, o negócio não ocorreu como se esperava. Jackson não passou o pacote de crack- cocaína fumável diretamente para Gaye, mas para o informante que arrumou o encontro. Uma foto que o mostra saindo do carro, para receber o pagamento de 2.400 dólares, foi tirada depois que da droga ser entregue. Jackson estuda no colégio Spingarn, em Washington, e não tem antecedentes criminais. Ele foi acusado por quatro vendas de cocaína — uma delas a que rendeu o melhor momento da proclamação de guerra às drogas do presidente George Bush, ilustrando como é fácil comprar drogas. Até mesmo diante da Casa Branca.

 

Comprei crack em SP: http://wp.me/p5l96l-87

 

 

 

Censura e guerra: XXXXXXXXXXX

Meu texto, no telex, de repente truncava. Repetia, truncava de novo. Ia tentando até que um teletipista da Reuters/Tel-Aviv avisou que me chamavam ao telefone. Era o censor militar. Não podia transmitir meu artigo. Surpresa: nele apenas dizia que, como o tempo tinha melhorado, Israel poderia atacar o Líbano a qualquer momento. Nada mais. Fui ao Censor Militar, ali perto, e combinei que era preciso avisar o jornal que faltaria, porque me esperavam com espaço aberto. Concordaram, desde que me ativesse a um breve aviso. Respeitei, só que acrescentei, no final do recado, que passaria a noite lendo Camões, cujos poemas, nessa época, entravam no que era censurado no Estadão. A invasão ao Líbano tinha começado enquanto tentei transmitir meu artigo. “Nosso correspondente censurado em Israel”, publicou o jornal em sua primeira página.

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Robert Capa/Magnum

 

“Na guerra, a verdade é a primeira vitima” — disseram Ésquilo, o dramaturgo grego, e oBqnoKJJCYAAk48E senador norte-americano Hiram Johnson, em 1917, entre outros a que se atribuem a mesmíssima repetida frase. Para alguns correspondentes de guerra reunidos em Jerusalém, a primeira vítima, porém, tem sido a liberdade de imprensa.

No seminário que examinou os meios de comunicação e as guerras no Líbano, no Iraque e Iran e no Atlântico Sul (Malvinas), promovido pela Universidade Hebraica de Jerusalém, falaram (em 4/3/1983), três correspondentes de três diferentes guerras para um auditório de outros veteranos de guerras, cientistas sociais, políticos, diplomatas, estudantes de jornalismo e até encarregados pela censura militar em Israel.

David Shipler, do The New York Times, concentrou-se na guerra do Líbano com a experiência de quem cobriu a guerra no Vietnã, entre 1973-75. Entre 1975-79 foi correspondente em Moscou, e desde 1979 está em Jerusalém.

“Nenhuma guerra é simples”, afirmou Shipler abrindo o seu depoimento, “e a do Líbano excedeu… Em complexidade: aqui temos OLP, sírios, xiitas ao sul, sunitas ao norte, maronitas, drusos libaneses, drusos israelenses, judeus, árabes da Cisjordânia, árabes de Israel, cristãos poderosos, palestinos pobres…e cada um com sua preocupação específica. É uma imensa tarefa, que pode ter três grandes divisões – militar, política e humana”.

Depois de detalhar, em termos profissionais, as três principais áreas de trabalho, Shipler explicou porque, desde Israel, decidiu cobrir a guerra da perspectiva política, deixando a militar para a sucursal de Beirute:

-Simples; eu tinha censor militar, e o Times, outro correspondente em Beirute. Era melhor que uma reportagem tivesse origem onde não existisse censura.

Shípler, como vários outros correspondentes estrangeiros em Israel, tentava alcançar os locais em que se desenvolviam as ações militares, mas ficou imobilizado a primeira semana inteira da guerra. E revelou o seu mais estranho problema com a censura que todos sofríamos, e o denunciávamos na abertura de nossos artigos:

-Liguei para Timor Goksel, porta-voz das forças de paz da ONU, no sul do Líbano, e ele me passou um retrato completo de quanto armamento e tropas Israel estava concentrando para a invasão. O censor de Israel cortou. Foi a primeira vez que vi censurarem as Nações Unidas, e falando de um outro país. A censura foi muito rigorosa no começo, mas a partir da segunda semana, relaxou. As informações que obtínhamos em Jerusalém, de fontes militares, estavam atrasadas 24 a 36 horas em relação às divulgadas pelas rádios libanesas.

Quando entrou no Líbano, foi com escolta:censorship

-Gente interessante era escalada para escoltar a imprensa. Não me sentia vigiado, nem sentia meus entrevistados libaneses intimidados. Não podia ir aonde quisesse. Campos de refugiados, por exemplo. A explicação era a de que “terroristas estavam ainda operando lá”, e mesmo que me responsabilizasse pela minha vida, não me conduziam.

-Nem sempre foi assim: tivemos muito mais liberdade de ação no front israelense – discordou um freelancer norte-americano, Josué Muravchik, que desfiou uma lista de vinte minutos de “erros da grande imprensa no tratamento da guerra no Líbano”. Borns cobriu a guerra de 1973 em Israel, e a de Chipre, em 1974. Trabalha para a televisão belga, e tentou cobrir a guerra entre Iraque e Irã, cujos números dos comunicados iniciais esgotavam a quantidade de aviões, de tanques e de soldados que ambos os lados alegavam possuir.

-Foi a experiência mais frustrante que já tive. Fui antes para Amã, na Jordânia, e depois para Bagdá. Levei dois dias para convencer um diplomata belga a me hospedar, livrando-me assim da perseguição da censura oficial. Mas me encontraram. Disseram-me: todos os jornalistas estão naquele hotel, e você tem que reunir-se a eles.

No hotel da imprensa, na primeira noite, ele tentou ir à rua, dar uma volta. “Onde você vai? – perguntou-me um soldado iraquiano. “Por aí…”. Senti-me humilhado. O soldado dizia: dentro do hotel você tem seus amigos, teletipos, bar, restaurantes…não está bom? Toda manhã, aparecia um oficial, e todos brigavam para conseguir um passe de ida ao front, ao campo de batalha. Parecia um paxá escolhendo suas escravas. Um dia, levou-me, com outros dois jornalistas. Chegamos a Basra, e ele ordenou: “Vocês têm dez minutos”. E esta foi minha experiência na guerra Iraque-Irã. Voltei para Amã. Voei para Bruxelas. Tinha um filme com barulhos de tiros, e alguns navios, em Basra.

Já Michael Nicholson, da Itn inglesa, veterano de 14 guerras, foi patriota para o navio de guerra inglês Hermes, em direção às Falkland/Malvinas.

“Claro que apoiava a partida da Marinha Real Britânica. Mas meu apoio não me impediu que me tornasse um crítico feroz de como a guerra foi manipulada”.

Nicholson contou que, “para entrar a bordo, recebi um livrinho, este (e o mostrou)… Diz aqui: regulamentos para correspondentes acompanhando uma força operacional. Data: 1958. O livreto tinha sido impresso depois da campanha do Suez. Seus dois princípios básicos e contraditórios: 1 – a essência do sucesso na guerra é o segredo, 2 -a essência do sucesso em jornalismo é a publicidade. E tentava conciliar o irreconciliável, recomendando “cooperação mútua”. É isto: o governo tinha certeza do papel que deveríamos desempenhar”.

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Nick Ut/AP, Vietnã, prêmio Pulitzer de 1973

O resultado, para Nicholson, é que “a guerra das Falkland foi a pior para repórteres desde a guerra da Crimeia”. Mas acrescenta: em termos de televisão. Em 1854, um correspondente numa expedição inglesa levou 20 dias para despachar seu material. Em 1982, “foram necessários 23 dias para ser transmitido meu vídeo sobre o cessar-fogo em Port Stanley”.

Nicholson explica: “Estávamos a três milhas da primeira estacão de satélite. E cobriam esta distância, diariamente, vários barcos de suprimentos. Havia ainda satélites militares e um americano, que a ABC, NBS e NBC, as cadeias americanas, tentaram nos passar, via Pentágono, mas o governo inglês não aceitou. Meu editor foi reclamar oficialmente. Sabem o que ele disse a primeiro-ministro?

-Os filmes de Nicholson têm relevância histórica. Como os pergaminhos do Mar Morto…

Os filmes dos correspondentes no Atlântico Sul não sofriam censura imediata, nem os seus comentários, mas também não chegavam a Londres. A tevê “parecia um filtro nacional. Vermelho, cor de sangue, tinha que ser evitado, e era o que se derramava cruelmente nesta guerra”. Nicholson fala que o governo inglês sentia “a síndrome da guerra do Vietnã, tolhendo a imprensa das informações, no momento em que ocorriam. Esqueceu-se, porém, de que o problema era o Vietcongue, e não a tevê CBS…”

Para Nicholson, a guerra foi reduzida a transmissões de sua voz, ilustrada por artistas em Londres, já que imagens não chegavam. “As ilustrações não eram ruins. Mas estamos na idade eletrônica, dos satélites, e me senti impotente”.

O líder do Partido Trabalhista, Shimon Peres, num almoço que interrompeu o debate sobre os três depoimentos de três situações de guerras em partes diferentes do mundo, defendeu a liberdade de imprensa, prometendo transformá-la, se formar um governo, num quarto poder institucional. Criticou “alguma limitação” na imprensa israelense. E aí começaram protestos. E também um outro debate, porém interno, e de Israel.

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Eddie Adams/AP, 1968, Saigon

Fala o censor (sem censura)

O chefe do serviço de censura militar de Israel, general Yitzhak Shani, acha “essencial” a imprensa, em tempo de guerra.

Dita por um censor, a declaração parece contraditória. Mas o general Shani parece inclinado a desafios quando se reúne com jornalistas para uma conversa como essa, no seminário sobre a imprensa e as guerras, em Jerusalém.

Zeev Hefetz, ex-diretor dos serviços de imprensa do governo israelense, apresentou-o como “o mal”, e o general Shani sorriu, mexendo em volumoso bigode. “Mal necessário”? – perguntou aos correspondentes de guerra reunidos no hotel Hilton. E falou da censura “normal” dos regimes totalitários. Falou da censura por intimidação – jornalistas ameaçados de morte, ou assassinados, no Oriente Médio, nas Américas latina e central. E da censura por restrição ao acesso repórteres impedidos de acompanhar a rebelião em Meca, ou as batalhas do Afeganistão, no Iran, no Iraque, nas Malvinas. Nesta lista, Zeev omitiu o Líbano. Para ele, aqui só houve restrição nos 15 primeiros dias da guerra.

-Exceto no Vietnã, houve censura nas duas grandes guerras mundiais, na da Argélia, em todas as guerras de Israel.

E concluiu: “é um mal necessário”. Antes de passar a palavra ao general Shani, o chefe da censura, lembrou: “a censura é anacrônica, em Israel, em tempos de paz”.

O general Shani provavelmente considera também “essencial” a imprensa, em tempos de paz. Mas não o disse. Seu tema era a guerra. E a censura, neste contexto, é uma arma. Uma arma que surpreendeu o exército da Síria.

Sem censura, as declarações do general Shani:

-Na minha opinião (ele chamou-se rindo de “o rei do mal”, completando a apresentação de Zeev Hefetz), a proeza da censura, nesta ultima guerra, foi a de surpreender os sírios. Primeiro, porque evitamos que fossem publicadas as notícias da mobilização de nossos reservistas, dias antes de a guerra começar.

(Olhando para os correspondentes, Shani prosseguiu)

-A maioria de vocês sabia. A maioria submeteu artigos. Não os aprovamos. Segundo: o intenso movimento da nossa artilharia e blindados para o norte, pela rodovia da costa. Qualquer criança via o que se passava. Novamente, vocês sabiam, vocês tentaram enviar noticias, e não puderam. Terceiro: quais eram as intenções do exército e que decisões de guerra tinha adotado o governo? Não sei, agora, se todos vocês sabiam. Quem soube, nada pode mandar. E quarto: depois da formal proclamação de guerra, vetamos a publicação da real dimensão da operação, de detalhes de planos e do avanço das tropas. Isto surpreendeu os sírios.

O general Shani sublinhou: “não interferimos em nenhum momento no debate pró ou contra a guerra. Nem somos contra jornalistas…E queremos ser leves: trabalhamos no horário da imprensa. Achamos também que o público tem o direito de saber. Só interferimos com as informações que poderão alcançar o serviço de inteligência do inimigo, ou que prejudicarão a segurança do estado”.

O general Shani tem outra frase contraditória. Diz: “ser uma real democracia, como o é Israel, e ter censura, parece conflitante, difícil de entender”. Ele explica que a base legal da censura em Israel vem de regulações de emergência do tempo britânico na Palestina. E prevê a proibição de “matérias que poderão prejudicar a defesa de Israel, a segurança publica, ou a ordem publica”. Por um acordo entre as forças armadas e os editores dos jornais israelenses, o único objetivo do censor é o de evitar a publicação de informações sobre segurança que podem ser úteis ao inimigo.

Não há censor político – acrescenta o “rei do mal”. E mesmo a censura militar pode ser contestada. Desde 1949, há 180 casos de contestação legal – da imprensa contra a censura, e vice-versa.

Um outro general também falou na reunião que encerrou o seminário da imprensa e a guerra, realizado no pais das guerras, por promoção da universidade hebraica de Jerusalém. O general Yacoov Even é o chefe dos porta-vozes militares. Quer dizer: ele é a voz, divulgada e amplificada por vários assessores. Um outro “rei do mal”.

-Mal como um rifle, ou uma penicilina. Tudo depende do uso que se faz. Em tese, sou o inimigo do censor. Eu tenho um maravilhoso exército para mostrar, mas ele… ele quer esconde-lo. Mas sou eu o responsável pela falta de acesso tão crítica nesta guerra. Injustamente criticada.

O general Even lembrou que o maior inimigo desta guerra, o líder da OLP, Yasser Arafat, que chamou apenas de Arafat, recebia informações através de rádio e jornais, em seu QG de Beirute.

-Não era, por exemplo, como um país, a Inglaterra, que tem redes de espionagem, sofisticados radares, aviões… Então, espalhei uma certa neblina. Estratégica neblina, não estúpida. Por cinco dias, não explicamos o que se passava. E atingimos totalmente o nosso objetivo militar contra a OLP. Isso não quer dizer que a informação não era dada. Em Israel, sabia-se quase tudo. Câmeras estavam com as tropas. Depois, abri as fronteiras aos repórteres, no quinto dia.     Centenas entraram inicialmente; depois, milhares.

O general Even não quis entrar na discussão dos números de mortos que começou logo no primeiro cessar-fogo da guerra. “Era o irmão do Arafat quem dava os números do outro lado. Eles eram fascinantes, de um ponto de vista jornalístico. Fornecemos os números que tínhamos, e nossa preocupação, sempre, foi a de não perder a credibilidade com a imprensa. Mas ele frustrou-se: o acesso dado à imprensa, no Líbano, foi um bumerangue. “Atacavam-nos com artigos distorcidos, mentiras, inocência, fotografias selecionadas…”

4587-1Even tem “três sonhos”: o de que não haverá uma nova guerra; e se houver outra, que o exercito de Israel esteja muito bem preparado e equipado; e, por fim, que a imprensa seja “decente” na cobertura.

Um correspondente de guerra inglês fez o elogio da censura, durante uns 20 minutos. Achou-a necessária, para a democracia da Inglaterra. Um colombiano, observador no seminário, falou de raptos de jornalistas, a imprensa pressionada pelo governo, pela oposição, pela guerrilha, e quis saber, de censores, especialistas em comunicação, e outros jornalistas: “o que fazer?” a professora Dina Goren, do curso de comunicações da universidade de Tel-Aviv, disse-lhe francamente: “não tenho uma resposta”, e o tema não foi elaborado, por outros, porque o tempo se esgotava, dando apenas para novas duas perguntas. Um repórter perguntou:

-Mas se há censura militar, por que se proíbe o acesso?

Resposta do general Shani:

-Porque Israel não pode confiar no autocontrole ou na integridade de dezenas de repórteres estrangeiros. O jornalista estrangeiro é estrangeiro. Sua obrigação é para com seus leitores. Então, basta que ele pegue um avião, vá a Chipre e de lá envie seu artigo para o seu jornal.

A última pergunta foi sobre se os telefones dos correspondentes são escutados, como há pouco tempo revelado.

– O censor interfere na ligação se estiver sendo transmitida uma informação militar não submetida antes à censura. Mas isto não é novo para você…- respondeu o general Shani, provocando risos.

– Certamente não é respondeu o repórter. – Mas perguntava-lhe sobre ligações locais…

– Não há censura em ligações locais – insistiu o general Shani.

– Não perguntei se censuram, perguntei se vocês escutam…

-Não.

 

 

 

 

Último encontro com Arafat

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Não encontrei mais o líder Arafat combatente,

nem o bravo que apertou a mão de

Yitzhak Rabin na Casa Branca, em 1993. 

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Ao partir para tratamento na França, onde morreu em 11/11/2004

GAZA, 3/8/1995 – O Nobel da Paz Yasser Arafat perdeu a auréola do combatente. Estava pálido, agasalhado com um colete de manga comprida sob o sol do deserto, e despido da mística e do revólver que sempre o armaram, quando recebeu para almoço uma delegação brasileira que veio oferecer ajuda para a construção da Palestina, assim honrando o próprio nome de guerra dele – Abu Amar, Pai Construtor.

“Era mais fácil guerrear” – resumiu um veterano de guerras da OLP, guarda-costas de Abu Amar. Mais fácil quando Arafat era “casado com a revolução”, e não com uma mulher. Quando não tinha endereço fixo, como o que ele próprio chama de “prisão”, em Gaza. Quando era um revolucionário; não um “moderado”. Enquanto posava com o chanceler Luís Felipe Lampreia para a TV Palestina e alguns fotógrafos, perguntei:

– Presidente, o que o senhor espera do Brasil?

Arafat, 66 anos, também chamado de “O Velho”, carinhosamente, parecia que nem ia responder, quando então começou: “Não podemos esquecer o forte apoio que recebemos de Brasília”. Falava baixinho. (A última vez que foz uma pergunta a Abu Amar, na Beirute destroçada sob o cerco de Israel em agosto de 1982, ele vibrava, carregado de energia, mesmo que estivesse no porto prestes a zarpar no navio Atlântida, rumo à Palestina perdida, o exílio em Tunis, longe do Oriente Médio.)

“O povo do Brasil, os partidos, o presidente, todos, em todas as circunstâncias, nos ajudaram” – acrescentou Arafat, o tradicional keffiah preto e branco na cabeça. “Ajudaram no passado, no presente e ajudarão, sem dúvida, no futuro”. Outro repórter perguntou se ele estava contando com a ajuda da grande comunidade árabe brasileira. “Estamos atrás do apoio de todos os brasileiros, e não só dos palestinos que vivem no Brasil”.

coffin372ready   Só olhar em volta para constatar o quanto o Pai Construtor está precisando de ajuda para construir. Ela é tão vital para a paz que até o chanceler israelense Shimon Peres faz campanha mundial para promovê-la. Antes da delegação brasileira estiveram com o presidente Arafat alguns rabinos de Nova York. Há dois anos a cena seria uma miragem no deserto. Mas ali estava agora o grupo de keffiahs e quipás, diante da imprensa, prometendo “lutar pela paz”. A paz não tem um preço definido. Com 50 quilômetros de comprimento superpovoados por cerca de 1 milhão de habitantes, 60% desempregados, 60% refugiados, celeiro do radicalismo islâmico, Gaza depende de água, energia e trabalho de Israel. Significa “Tesouro”, em árabe. Os israelenses a chamam de Aza, ou Forte. Aqui, Sansão perdeu a força, foi preso e morreu. … uma das cidades mais antigas do mundo, no meio da estrada entre o Egito e Assíria.

O embaixador Pedro Paulo Pinto Assumpção vai ficar em Israel para chefiar “a missão interdisciplinar exploratória” oferecida pelo chanceler Lampreia ao Pai Construtor. “Virão técnicos dos ministérios da Agricultura e Saúde, da Embrapa, do Fundo Nacional da Saúde e da Agência Brasileira de Cooperarão”, ele explicou. “Vamos explorar as áreas em que poderemos cooperar”. O pacote de ajuda foi inicialmente montado com base num estudo do Banco Mundial. As reuniões estão marcadas para Ramallah e Gaza.

“Este é um lugar de futuro”, acredita Assumpção, que está deixando a chefia do Departamento de Oriente Próximo no Itamaraty para assumir a embaixada do Brasil em Tel-Aviv. Há um boom visível de obras por toda parte. Ao lado do quartel do presidente Arafat, diante do Mediterrâneo, o governo holandês dá a sua contribuição, levantando prédios. O motorista Akrim, “Generoso” em árabe, não viu ainda nenhum futuro: com 15 filhos e 24 irmãos, ele diz que sem trabalho em Israel “não há o que comer”. Quase todo o orçamento da Autoridade Palestina é esvaziado para pagar 14 mil ex-guerrilheiros, agora divididos em oito diferentes forças, numa grande mistura de uniformes. Muitos ficam sentados num salão em que circula a brisa do mar, tomando chá, café e esperando as ordens de Abu Amar. São simpáticos e alegres. Também perderam a auréola de revolucionários.

O presidente Arafat ofereceu charutinhos de carne, húmus, franguinho a milanesa e água mineral egípcia aos amigos brasileiros. Foi convidado por carta do presidente Fernando Henrique Cardoso a visitar o Brasil. E indicou que vai, em outubro, aproveitando uma visita já programada para a América Latina. O chanceler Lampreia prometeu a imprensa internacional, ao sair de Gaza: “Vamos cooperar com a Autoridade Palestina em tudo que pudermos”. Abu Amar o levou até o carro.

petite_188424-3-13Arafat a bordo do Atlantis,

zarpando do Líbano para o exílio,

em 1982. Fui ao porto para a

sua despedida de Beirute.

Leia em http://wp.me/p5l96l-ci

 

Segredinho do Brasil em Israel

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O segredinho diplomático que esqueci por 34 anos pode agora ser revelado. Nem é tão importante assim, mas revelador das relações “envergonhadas” ou embaraçosas entre o Brasil e Israel. Senti-me desobrigado com a confidencialidade ao ler nas memórias do embaixador brasileiro em Tel-Aviv, Vasco Mariz, o relato do que me pediu, em segredo, em 1982, em sua casa de Herzilya.02VascoMarizBastidoresDiplom

Preocupado, o embaixador Mariz, renomado musicólogo, contou que o decano dos embaixadores em Israel, o americano Samuel Lewis, estava voltando para os Estados Unidos, chamado para assumir o posto de assistente direto do secretário do Departamento de Estado, Alexander Haig.

“Então, serei eu o decano. Já pensou?” – ele perguntou.

O decano é convidado permanente a todas as recepções oficiais do governo, faz discursos e ganha muita visibilidade. Aí o problema: ser destaque em Israel não era do interesse do Itamaraty e exporia o Brasil ante seus amigos árabes.

“Já pensou o Brasil fazendo as honras ao primeiro-ministro sul-africano Pieter Willem Botha, um símbolo do apartheid?”

O que o embaixador Mariz queria era uma notícia de que ele deveria ser o próximo decano em Israel. Assim foi publicado. O Itamaraty agiu mais que rapidamente, trazendo-o de volta ao Brasil. Amigos como Moshe Dayan, Yitzhak Rabin e jornalistas israelenses lamentaram a partida. O ex-chanceler Abba Eban soube dessa saída à francesa e a deplorou em um livro.

Foi, literalmente, uma saída à francesa. Da mesma forma como o americano Lewis informou a Mariz do decanato que lhe caberia, Mariz ligou para o embaixador francês Marc Bonnefous, o terceiro da lista dos mais antigos.

“Vou falar hoje mesmo com Paris” — disse-lhe Marc, alarmado.

A fila andou para o quarto potencial decano, o embaixador da Suíça. Já ao telefone com Mariz, ele afirmou: “Impossível! Os interesses bancários suíços vão exigir que saía também”. Com o quinto embaixador, o da África do Sul, não houve problema algum. Ao contrário, ele até ficou contente, porque as relações entre os dois países iam muito bem.

O Brasil sempre se manteve low profile nas relações com Israel. Não mais, desde Oswaldo Aranha, que presidiu a Assembleia Geral da ONU que votou a partilha da Palestina, em 1947, um brasileiro teve algum protagonismo entre os israelenses. A não ser cantores. Em suas memórias, o embaixador Mariz não conta que pediu a notícia no jornal, que era de verdade uma notícia, não um favor, mas que falou diretamente com o chanceler Saraiva Guerreiro.

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Confronto israelense, via Brasil.

O Globo pediu um novo texto sobre o “segredinho” e ei-lo, publicado.

Nada melhorou na relação Brasil-Israel

Importante era não incomodar o mundo árabe, especialmente o Iraque de Saddam Hussein, ótimo comprador de armas e de serviços de nossas empreiteiras

POR MOISÉS RABINOVICI

 

O Brasil escapou de assumir o protagonismo do mundo diplomático em Israel chamando de volta a Brasília o seu embaixador em Tel-Aviv, Vasco Mariz. Faz 34 anos — e tudo permanece igual ou piorando nas relações entre os dois países, agravadas hoje pela nomeação de um novo embaixador israelense, Dani Dayan, congelada pelo governo brasileiro.

(Aviso: guardei por 34 anos este “segredinho” para preservar quem o engendrou, oIMG_1228 próprio Vasco Mariz, transferido para o Peru pouco depois de publicado que ele, tornando-se o decano dos embaixadores em Israel, daria ao Brasil uma visibilidade comprometedora ante os países árabes, então prioridade para o Itamaraty. Foi ele quem o revelou primeiro no livro “Nos bastidores da diplomacia”, as suas memórias de 50 anos a serviço do Itamaraty, publicado em 2013 pela Fundação Alexandre de Gusmão, ligada ao Ministério de Relações Exteriores).

Vasco Mariz fará 95 anos no próximo dia 22. É autor de mais de 65 livros, renomado musicólogo, historiador, articulista em vários jornais. Sem ter rodado como embaixador do Brasil o circuito Elizabeth Arden (Nova York, Londres, Paris, Roma e Madri), colecionou encontros com 54 chefes de Estado. Não fazia ideia do que ele queria quando me convidou para visitá-lo em sua casa de Herzlya, ao norte de Tel-Aviv. Mas o encontrei preocupado. O embaixador americano e decano em Israel, Samuel Lewis (1930-2014), voltaria em um mês para os EUA, chamado para assumir o posto de assistente direto do secretário do Departamento de Estado, Alexander Haig. “Então, serei eu o decano. Já pensou?”, ele perguntou.

O Brasil já não vendia mais carros nem ônibus para Israel. Resistia até mesmo à ajuda gratuita para florescer o Nordeste brasileiro, a exemplo do deserto do Neguev. Importante era não incomodar o mundo árabe, especialmente o Iraque de Saddam Hussein, ótimo comprador de armas e de serviços de nossas empreiteiras. Havia muitos operários de Minas trabalhando “nas Arábias”.

“Como reagirá o Itamaraty se o seu embaixador em Tel-Aviv, por exemplo, tiver que fazer as honras ao primeiro-ministro sul-africano P. W. Botha, símbolo do apartheid, num almoço com o primeiro-ministro Menachem Begin?”, ele exemplificou, com o pior cenário possível.

O que o embaixador Mariz queria era uma notícia de que ele deveria ser o próximo decano em Israel. Assim foi publicado. O Itamaraty agiu mais que rapidamente, trazendo-o de volta ao Brasil. Amigos como Moshe Dayan, Yitzhak Rabin, os presidentes Yitzhak Navon e Efraim Katzir, Shimon Peres e vários jornalistas israelenses lamentaram a partida. O ex-chanceler Abba Eban descobriu a razão dessa saída à francesa e a deplorou em um livro, dois anos depois.

Foi, literalmente, uma saída à francesa. Da mesma forma como o americano Lewis informou a Mariz do decanato que lhe caberia, Mariz ligou para o embaixador francês Marc Bonnefous, o próximo da lista dos mais antigos.

“Mas eu também não posso ser decano aqui em Israel!”, reagiu monsieur Marc, alarmado. “Imagine o que dirão os países muçulmanos nos quais a França tem interesses tão grandes! Vou falar hoje mesmo com Paris.”

A fila andou para o terceiro potencial decano, o embaixador da Suíça. Já ao telefone com Mariz, ele afirmou: “Impossível! Os interesses bancários suíços vão exigir que eu saia também”. Com o quinto embaixador, o da África do Sul, não houve problema algum. Pelo contrário, ele até ficou muito honrado porque as relações entre os dois países iam tão bem que até envolviam mistérios nucleares.

Um ano antes, o então chanceler Azeredo da Silveira, sob o governo Geisel, tinha criado uma crise com Israel para convocar o embaixador Vasco Mariz para consultas em Brasília. Era uma intriga: um jornal brasileiro publicara que as denúncias sobre envio de urânio brasileiro para o Iraque — publicadas no “The Guardian” por seu correspondente no Brasil, e republicadas no “Estadão” — tinham por fonte o Mossad, o serviço secreto israelense.

O Itamaraty tentara convocar o embaixador brasileiro em Israel antes, mas não o conseguira porque ele já estava no Brasil, em férias, ou em Chipre, embaixada que acumulava. Agora, Vasco Mariz acabava de voltar de novas férias. E partiu rapidamente, sob o lamento público do primeiro-ministro Menachem Begin: “O que aconteceu entre nossos dois países foi um engano completo”. Ou “um gesto para o Iraque”, como concluiu a imprensa israelense. O “gesto” durou apenas uma semana.

O Brasil sempre manteve perfil baixo, quase oculto, nas relações com Israel. A exceção foi com Oswaldo Aranha, aliado de Getúlio Vargas e embaixador que presidiu a Assembleia Geral da ONU que votou a partilha da Palestina, em 1947. Ele é nome de uma praça em Jerusalém e de três ruas em Tel-Aviv, Ramat Gan e Beersheva. Em suas memórias, o embaixador Vasco Mariz não conta que “soprou” a notícia de seu decanato à imprensa, mas que falou diretamente com o chanceler Saraiva Guerreiro. Nem poderia, porque estaria “furando” o Itamaraty. Ao correspondente, ficou a impressão de tê-lo demitido.

Moisés Rabinovici é jornalista e foi correspondente em Israel

 

 

Gôndolas do Jardim Pantanal

O Jardim Pantanal foi inundado de novo no início deste ano de 2016. Faz 37 anos a cena se repete. Mas em 1977, quando fui a uma das enchentes mandado pelo Estadão, encontrei um pouco mais de poesia do que nas notícias que leio agora. As pranchas de navegação, tetos de Kombi desmanchada, eram chamadas de “gôndolas”, como em Veneza. E a rua da enchente principal, Rua da Praia.

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Foto: notícias.r7.com

Gôndolas fazem a travessia das mulheres que vão trabalhar e os homens ficam para vigiar as casas A gôndola atraca no cais improvisado diante do Mercadinho Macau para o desembarque dos passageiros. O aposentado Luís Oliveira Silva observa o movimento na Rua da Praia. Ele é um ilhéu nato: migrou de Macau, ilha no Rio Grande do Norte, para o Jardim Pantanal, na zona leste de São Paulo, onde passa ilhado a temporada de enchentes.
A retirante pioneira de Macau foi Maria de Oliveira Lemos, irmã de Luís. Ela chegou ao Jardim Pantanal em 1991, prosperou e hoje mora num bairro próximo, “enxuto”, convenientemente chamado de Bom Sucesso. O exemplo atraiu muitos outros macauenses. Só de sua família vieram 21 pessoas.
pantanal_1266610375“Cuidado com o tubarão!”, grita o alagoano Expedito Nunes da Silva para os passageiros de duas gôndolas navegando pela Rua Pinha do Brejo, a Rua da Praia.
Cada viagem custa R$ 0,50. O serviço começa às 5 horas, ainda escuro, e termina no breu, às 20 horas. O movimento maior é o de empregadas que trabalham em casas de bairros distantes, também chamados de Jardim, como o Pantanal. Já garantem a volta, deixando-a paga. Raros são os homens que usam as gôndolas.
“Se saímos de casa, carregam tudo”, diz Carioca, no cais da Associação dos Moradores do Jardim Pantanal. Daqui ele vigia sua casa, que está metade submersa do outro lado da rua. O apelido denota que Aroldo Luís de Souza é “acostumado à praia”. Mas ele lembra uma diferença: “No Rio, a gente vai para a praia; aqui, a gente acorda na água”.
Dia de sol no Jardim Pantanal, Carioca pôs o boné com o apelo eleitoral da campanha do prefeito Celso Pitta: “Não deixe São Paulo parar.” Desempregado, 63 anos, ele se refugiou no “porto” da Associação dos Moradores, onde dorme com outros hóspedes atento à luz de seu quarto que ficou acesa. Seriam só dez braçadas, se quisesse nadar. “Mas a água dá coceira.” Foi só uma hora de chuva, há uma semana. Num instante, a várzea do Rio Tietê ficou coberta por uma onda de 1 metro. Carioca mediu: “Em seis dias, a água baixou apenas 3 centímetros.” Quando secar, serão dias de lama. Terá início a temporada de desinfecção. As casas passarão por um banho de cloro. Diques de cimento em portas crescerão contra a próxima e inevitável enchente. Ninguém fala em mudança.
Pescaria – “Um terreno num lugar seco pode custar mais de R$ 10 mil”, explica o pedreiro alagoano Pedro Gabriel da Silva. Na várzea do Jardim Pantanal não custava nada no tempo da invasão, em 1990. E tudo foi ocupado, apesar de ilegal, apesar do perigo. Surgiram assim 15 bairros com cerca de 10 mil famílias. “Nem porco vive num lugar desses”, diz Gabriel. Mas ele está hoje com mulher, cinco filhos, dois netos e dois cachorros no teto de sua terceira casa levantada em três anos.
Da laje da casa de Gabriel, Wagner da Luz, de 10 anos, lança a linha para pescar cascudos no quintal do desempregado José Lima, outro retirante do Rio Grande do Norte. O irmão menor toma conta da lata com o primeiro peixinho do dia. Com escadas, pedaços de madeira e pedras vão se armando pontes e ligações entre as casas.

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Foto: catracalivre.com.br

A mulher de José Lima partiu de gôndola às 5 horas. Por ironia, trabalha numa fábrica de chuveiros. Por ironia ainda maior, o marido é um especialista em vedação, mas está desempregado. Orgulhoso, ele mostra os diques que ampliou nas portas da sala e da cozinha. A água bate nos diques em ondas quando as barcas passam na Rua da Praia.
Sereia – A filha Cileide da Silva Araújo, de 10 anos, brinca com uma sereia na cama de casal. “É a Daniela”, apresenta. Apertada, a sereia canta. O irmão Rafael, de 4 anos, brinca de casinha. Quando se cansam, vêem desenhos na TV. A cama virou playground. Outra irmã, Elisângela, de 15 anos, cuida da casa.
Os canais da Veneza varzeana cheiram a esgoto. São águas do poluído Tietê acrescidas de lixo local e animais mortos, agora estancadas. As gôndolas de madeira fazem água por aberturas no casco, mas filtram a sujeira. As balsas de carcaça de carros roubados, sobra de desmanches, vão rente à água, sem nenhuma proteção. A área em que vivem os ilhéus de Macau conta com três barcos em operação. No Pantanal-1 trafegam as balsas.
Os remadores entram na água para manobras difíceis, ou quando encalham. Não parecem importar-se com o cheiro, a cor e a ameaça de leptospirose, uma infecção provocada principalmente pela urina de ratos. Para poupar R$ 0,50 da passagem, o pernambucano Josildo Ferreira de Souza sai de casa só de calção, vestindo-se para o trabalho num bar. Põe a roupa seca sem banhar-se.
Muita criança sai para caçar sapinhos em meio à imundície. Num dos melhores pontos de pesca, boiava na quinta-feira o plástico que cobriu sob o sol, até chegar o rabecão, o corpo de Oswaldo Almeida Silva, de 27 anos, afogado na primeira vaga da enchente, na tarde do sábado, quando foi comprar cigarro.
O pedreiro Francisco Rodrigues da Fonseca, atualmente gondoleiro, suspendeu todos os móveis de sua casa. A geladeira está sobre uma mesa, erguida com tijolos. O fogão ganhou uma paliçada. Da casa exala cheiro de mofo. A gôndola navega sobre cercas, passa sobre o alicerce de uma nova casa sendo levantada, cruza dois cachorrinhos numa casinha suspensa, ao nível dos vasos de um jardim, e ganha “o mar”, na Rua da Praia.

veja.abril.com.br

Foto: Joel Silva/Folhapress

A próxima gôndola de Francisco Rodrigues “será muito melhor”. A atual já estava pronta no domingo, nas primeiras horas da enchente. Em Mossoró, no Rio Grande do Norte, onde nasceu, trabalhou tirando areia de rio. Daí “ter experiência”, gaba-se. Ele transporta dois passageiros em cada viagem. Por ele, levaria três.
Mais frágil ainda é a gôndola do menino Gilberto Mendes, de 14 anos. Parece de brinquedo. Mesmo assim, ela levou uma equipe de TV, balançando ameaçadoramente a qualquer movimento brusco.
O balseiro Djalma Batista da Silva, baiano de Itagibá, opera do outro lado do Jardim Pantanal, navegando sobre um campo de futebol e entre a fiaparia das gambiarras que roubam energia elétrica para a maioria das casas. Com sua carcaça de perua, ele tirou 70 pessoas da enchente, ainda debaixo do temporal.
É o único que não pede dinheiro. Aceita o que lhe dão. “Com tudo o que aconteceu, agradeço a Deus por ter onde morar”, diz. E pergunta: “Não fosse aqui, aonde iríamos morar?” O Mercadinho Macau é um porto entre a Rua Cachoeira do Itaguaçabu, que começa no seco, e a Associação dos Moradores do Jardim Pantanal, no final da Rua da Praia. Passou uma semana acessível apenas a gôndolas, ou a banhistas animados por um conhaque. A porta está protegida por um dique de 80 centímetros. O dono, Luís Oliveira Silva, é um veterano. “Em 1995, fiquei 17 dias dentro da água”, conta. “E mais três dias, em 1996.” Um dos pioneiros macauenses, Oliveira Silva lembra que o nome Pantanal foi escolhido porque “havia aqui muita mata medonha de tabu”, erva que dá em águas rasas e paradas, com raízes presas na lama. Por dez anos, ele teve vários empregos em São Paulo até “receber uns trocados” e aposentar-se. Abriu a venda “para ir vivendo”. Tornou-se hoje algo como “cônsul” da ilha de Macau na várzea do Tietê.
O que atrai os ilhéus de Macau não é a vida no Jardim Pantanal, mas o sonho de repetir a trajetória de sucesso da pioneira Maria de Oliveira Lemos e do irmão Luís, que a seguiu. Ele explica: “Macau, terra do sal, usa hoje mais máquinas do que empregados.” Só não tem vindo mais macauenses “por falta de dinheiro”.
Da parte de sua mulher, Maria do Socorro, já migraram seis irmãs. Uma filha, Geisa, de 28 anos, casou- se com um eletricista também do Rio Grande do Norte.
Estão com um bebê, morando nos fundos do mercadinho, porque “a água chegou ao colchão do berço”.
Uma freguesa chega ao “consulado” de Macau e é cearense, Dinha Norberto. Em compensação, o marido Marco Antônio, que ela conheceu no Jardim Pantanal, pertence à comunidade. O “cônsul” não sabe quantos seriam. “Uns cem?”, pergunta. Olhando em volta, brinca: “Só a Xuxa, a cadelinha de 9 anos, não é macauense.” No bairro, há cerca de 2,5 mil famílias.

 

 

 

Reino do terror em Israel

Grupo de jovens colonos

planejava derrubar o governo israelense,

expulsar árabes e restaurar

a monarquia dos tempos

dos reis Saul, David e Salomão

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Bebê queimado na casa incendiada em Duma

Jovens de 13 a 24 anos, judeus, presos pelo serviço secreto israelense depois de um atentado na aldeia árabe de Duma em que morreram uma criança de 18 meses e seus pais, em julho de 2015, pertenciam ao desconhecido grupo Revolta, fundado para derrubar o governo de Israel e restabelecer uma monarquia como ao tempo bíblico dos reis Saul, David e Salomão.

Alguns dos “revoltados” foram indiciados na manhã deste primeiro domingo de 2016, inclusive o autor confesso do incêndio criminoso que matou a família Dawabsheh para vingar o assassinato de um colono judeu, Malachi Rosenfeld, um mês antes, em Duma, perto de Nablus. Desde novembro, 23 de cerca de 40 afiliados ao Revolta foram presos. O Shin Bet, serviço secreto interno israelense, foi muito pressionado por críticas nas duas pontas de sua investigação: os detidos denunciaram terem sido torturados, no que foram amplificados por seus pais, e os palestinos reclamaram da “mão leve” quando os suspeitos são judeus.

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Amiram Ben-Uliel (facebook)

O principal indiciado neste domingo foi Amiram Ben-Uliel, de 21 anos, o“revoltado” que atirou duas bombas caseiras em duas casas de Duma, uma delas vazia, e escreveu em seus muros “Vida longa ao rei Messias” e “Vingança”. Um menor de idade que o acompanharia no atentado não compareceu ao ponto marcado. O fogo provocado pela bomba jogada pela janela da casa dos Dawabsheh carbonizou o bebê de 18 meses, Ali. Seus pais, Sa’ad e Raham, não resistiram às queimaduras depois de algum tempo internados em Israel. Um irmão, Ahmed, 4 anos, sobreviveu, mas muito queimado, ainda sob tratamento.

Mesmo ausente do atentado, o menor do “Revolta” foi indiciado como “acessório” ao triplo assassinato. Outros três menores e dois jovens serão julgados por incêndios a um depósito de cereais em Akraba e a um táxi em Yasuf, na Cisjordânia. O grupo se preparava também para atacar Israel, um estado sem direito a existir até a vinda do Messias. Seus militantes moram nas redondezas de Shiloh, uma das primeiras colônias criadas na Samaria durante o governo de Menachem Beguin, empossado em 1977. A ideologia que os une lembra muito o rabino Kahane, que pregava a expulsão de todos os árabes da Terra Prometida e acabou assassinado em Nova York. O seu sobrinho foi um dos primeiros detidos pelo Shin Bet.

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Reis David, Salomão e Rehoboam

O “Revolta”, fundado em 2013, pretendia levantar o terceiro templo de Jerusalém no lugar em que hoje estão as mesquitas de Al Aksa e Omar, sobre o Muro das Lamentações. Só esta meta teria o potencial de levantar todo o mundo muçulmano contra Israel. Como os “revoltados” não reconhecem o estado israelense, não se sentiam obrigados a respeitar as suas leis. Entre os documentos apreendidos pelo Shin Bet sobressai um manifesto escrito em forma de mandamentos:

. Destruir tudo primeiro, e depois reconstruir.

. Um rei deve ser coroado depois de derrubado o governo.

. Sob a atual administração estrangeira, devemos criar células em cada colônia, topo de montanha, cidade e yeshiva (seminário judaico), cada um com 3 a 5 membros que decidirão como agir.

. As células começarão com pequenas operações. Entre elas, não haverá contato.

. Não fale, não investigue e nem faça enquetes.

. Não haverá espaço para gentio, particularmente árabes que vivam dentro das fronteiras do estado, e se eles não partirem será permitido matá-los indiscriminadamente – mulheres, homens e crianças.

. O sangue dos não judeus será sempre mais barato (inferior?) ao sangue dos judeus.

O Shin Bet não conseguiu identificar um padrão de hierarquia dentro do “Revolta” ou mesmo células criadas e organizadas por uma outra autoridade. O grupo dispensava autorização, coordenação e sincronização para ataques como o de Duma, que acabou por revelá-lo, mas não destruí-lo, pois nem todos estão presos. Prova de que algumas células estão ativas são as ameaças contra as famílias dos agentes secretos.

O primeiro-ministro Yitzhak Rabin foi assassinado por um fanático que professava as mesmas ideias do “Revolta”, menos a restauração do reinado de Israel, embora o local do atentado tenha sido a praça que então era chamada de os Reis de Israel. A monarquia dos judeus acabou quando o reino de Judá ou Judeia foi conquistado pelo império babilônico, em 586 A.C..

Veja também: terrorismo judeu.

 

Miragem de paz em Jericó

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Vista de Jericó do Monte da Tentação

Jericó (setembro de 1978) – A festa foi já uma comemoração pelo nascimento de um estado palestino: “Biladi, Biladi”, cantava a multidão embandeirada com as cores verde, branca, vermelho e preta, antes proibidas por Israel. Biladi é “nosso país, nossa terra”. E a canção continuava:

“Quero dar a você, biladi, todo meu amor e meus sentimentos”.

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O fundo era de tambores na cidade que Josué derrubou com trombetas de chifre de carneiro. Jericó, “Perfumado”, a mais antiga do mundo, Cidade das Palmeiras na bíblia hebraica, festejou a miragem de ser a primeira oficialmente de um futuro estado Palestino, com um dia de carnaval. Caminhões abriam espaço numa multidão delirante como se fossem trios elétricos baianos. Bandas juvenis marchavam. Recebia-se a imprensa, na entrada da praça principal, com a saudação:

“Bem-vindo ao meu país”.

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A população de Jericó ficou tão feliz com a perspectiva de paz que já arranjou nada menos que cinco casas oficiais para “o presidente Yasser Arafat”. Alguns mais emocionados no conseguiram manter-se parados, mesmo dançando, e subiram e desceram com seus carros enfeitados de bandeiras e retratos de Arafat a estrada de Jerusalém. Uma façanha: ela sobe de 250 metros abaixo do nível do mar para 820 metros acima em apenas 20 minutos. Vai-se do lugar mais baixo do mundo para a maior altitude espiritual da Terra Santa, do sufoco de um oásis para o frescor do Monte das Oliveiras. Não encontraram obstáculos pelo caminho. E buzinaram muito em Jerusalém. A polícia os olhou à distância. No final do dia, israelenses contagiados içaram também suas bandeiras na cidade. E a paz de Washington se refletiu pela primeira vez realmente entre israelenses e palestinos.

 

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Rosa de Jericó

Uma bandeira palestina já tremulava em Jerusalém desde o começo da tarde, na casa do negociador Faissal Husseini, a Oriental House. Depois foi aparecendo nos carros, e no final do dia já fazia parte do cenário. Os retratos de Arafat também se multiplicaram. Mesmo o inacreditável podia ser ontem fotografado: soldados israelenses posando diante de bandeiras palestinas. Não houve choques. A polícia até desviou o trânsito para dar passagem a uma passeata iniciada diante da Porta de Damasco, na velha Jerusalém. E de cima de um prédio em Jericó outros soldados fotografavam a alegria da multidão dançando na praça.

Nem um mero rádio de pilha foi produzido para que o povo acompanhasse o aperto de mãos entre Rabin e Arafat, transmitido ao vivo pela TV israelense. Às 5 horas em ponto, um orador subiu num palanque, e puxou o “Biladi, Biladi”. A assinatura dos primeiros acordos só ocorreu 45 minutos depois, mas ali ninguém ficou sabendo. “Todos meus sonhos estão aqui”, disse Amim Shooman.

O orador incendiava a festa com notícias quentes. Ele gritou, por exemplo, que “o presidente Arafat” ia pedir ao primeiro-ministro Rabin, na Casa Branca, a libertação de todos os prisioneiros palestinos. Depois, ele prometeu uma mensagem do próprio Arafat para dentro de uma hora. O termômetro subiu mais no oásis. Algumas vezes ele gritou anúncios tipo: “Gaza está com Arafat”. Ou “toda a Cisjordânia festeja”.

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Jericó (foto: http://www.taringa.net)

O estudante Ihab Dawich, com 18Eanos, nunca viveu em Jericó sob o domínio de um país árabe, só israelense. “Estou muito feliz”, ele contou. Uma criança, pelo microfone, lembrou aos outros jovens da festa como Israel ocupou a Cisjordânia em 1967, durante a Guerra dos Seis Dias. Não havia animosidade contra Israel.

Ao ser sobrevoada por um helicóptero israelense, com fotógrafos, a multidão mostrou o V da vitória e levantou bandeiras. Só não precisava nevar. Mas os militantes do Fatah, o movimento de Arafat dentro da OLP, acharam que alguma neve faria bonito. Do alto de um prédio foram despejadas gotas de sabão que lambuzaram lentes de televisão e cabelos dos repórteres, levadas para o lado por um ventilador, e não para baixo. Em Campinas e Foz do Iguaçu, cidades irmãs de Jericó, não houve comemorações.