Safári em Ruanda

Aqui a caça é o caçador

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Fui com o fotógrafo Vidal Cavalcanti para Ruanda, no final de 1986, quando milhares de refugiados hutus (foto) voltavam de países vizinhos depois do genocídio de mais de 800 mil tútsis, em 1984.  

Sem hotel, restou-nos um quarto de  prostíbulo, num bairro em que também viviam muçulmanos — e umas e outros se odiavam.

Toda noite voltávamos derrotados pelo telefone da praça central de Kigali, através do qual tentávamos passar fotos para São Paulo. Mas a ligação tinha um taxímetro embutido, um tique-taque tão forte que derrubava as transmissões.

Uma foto finalmente passada custava uns 600 dólares. Na hora de pagar, sentávamos no chão com a lista da série das notas de 100 dólares que não eram aceitas, porque falsas, para conferir com as nossas. Algumas cédulas eram recusadas por causa do ano que estampavam, coincidente com derrame dólares falsos na África.

Uma multidão de ruandeses nos assistia de olhos arregalados. O povo sem comer e nós gastando uma fortuna por um telefonema em que nada falávamos. Foco de prostitutas, muçulmanos e loucos por dinheiro, fechávamos a porta do nosso quarto e a protegíamos com móveis e malas, empilhados. Dormíamos no mofo.

Nosso intérprete, Tarzã, estava morrendo de Aids. Dormia o tempo todo no carro. Mal se mantinha de pé. Quando um soldado ameaçou cortar a cabeça do Vidal, que desobedeceu a ordem de não fotografar um já degolado, carreguei-o para fora do carro. Vitória: ele conseguiu que fossemos apenas presos, com as cabeças no lugar.

A ordem, estranhíssima, era seguir o jipe da polícia, sem nenhuma escolta. Ele ia rápido; nós, lentamente. Quando a distância ficou grande, entramos por uma estrada lateral e desaparecemos, até hoje. Eu comia ração da ONU. Vidal topava qualquer comida posta no prato dele com a mão do garçon. Seria macaco? A própria Chita? Cobra? Galinha? Ou o gorila famoso da Montanha dos Gorilas? Não importava: ele mandava vir mais.

Chegamos a Paris e fomos salivando direto para um restaurante. Vidal comeu ostras, filé au poivre, tirou fotos proibidas das pessoas sem lhes pedir permissão, e tomamos algum vinho. Separamo-nos, porque eu iria para uma maratona de texto, e Vidal tinha que passar fotos. Acordei com o telefone tocando.

Vidal estava passando muito mal com a comida refinada de Paris. Seu estômago era feito para os chefs ruandeses.

Eis aqui parte do nosso trabalho. Não o tenho completo. Perdi-o entre os vários computadores trocados desde 1996.

Soubemos da morte de Tarzã pouco tempo depois.

tutsis estadaoKigali, Ruanda, novembro de 1996 – O massacre continua em Ruanda. Agora morrem os sobreviventes que podem identificar os genocidas de 1994, ou que reclamam a posse de bens confiscados. Num relatório, A Prova Assassinada, baseado em investigações da Organização African Rights, casos de assassinatos, intimidação, pilhagem, estupro e tortura estão colecionados como provas de que o genocídio prossegue ainda hoje — um novo tempo de reconciliação batizado de pós-genocídio.

O ex-prefeito da área rural de Kigali, François Karera, contesta o uso do termo genocídio para definir a morte de cerca de 1 milhão da minoria tútsi pela maioria hutu em Ruanda, entre 7 e 30 de abril de 1994. Para ele ainda “restam muitos sobreviventes”. O relatório da African Rights conclui que “o número de pessoas a abater é muito modesto”. Alerta: “Na cadência atual dos novos ataques, não será necessário muito tempo para acabar com aqueles que restaram”.

O retorno de milhares de hutus que se refugiaram há 2,5 anos no Zaire, na Tanzânia e Burundi, por medo de represálias pelo massacre, amplia o risco de mais violência em Ruanda. Estão voltando para suas casas, agora ocupadas por sobreviventes tútsis. Muitos são denunciados como genocidas. Mais de 86 mil suspeitos já superlotam as prisões à espera de julgamento, sem data para começar. Antes do genocídio, havia cerca de oito milhões de ruandeses. Os hutus formavam a maioria de 85%, mantida mesmo com o exílio de 1,6 milhões refugiados. Os tútsis eram 14%. E perderam mais de 1 milhão. No povoado de Gatari viviam 12.263 tútsis antes de abril de 1994. Restam agora apenas 21.

O governo de Ruanda é hoje dominado por tútsis que pregam a reconciliação étnica e zelam para que os hutus voltando do exílio não sofram retaliações nem percam as propriedades que abandonaram. Uma frágil trégua. Todo sábado há enterros de ossadas que afloram em jardins ou plantações. A matança ainda está tão presente quanto os refugiados que acabaram de voltar em silenciosa procissão dos campos do Zaire, onde eram reféns dos radicais hutus do grupo Interahamwe, que planejou o genocídio. Mata-se por vingança e queima de arquivo. Suspeitos presos morrem como moscas, ao ritmo de 60 por mês.

“Dois anos depois, os extremistas genocidas continuam ativos, perseguindo e massacrando sobreviventes do genocídio” — denuncia a organização African Rights, que é dedicada exclusivamente aos direitos humanos, conflitos, fome e reconstrução civil na África. “Testemunhas hutus, que não podem ser caladas pela intimidação, também são assassinadas sem piedade”.

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Hèlene Mukangenzi foi degolada na noite de Natal de 1995. Morava sozinha em Kanserege, na área industrial de Kigali, depois de ter perdido praticamente toda a família em 1994. Era “uma mulher boa”, lembra o jardineiro Justin Ruhezamihigo: tinha emprestado dinheiro a uma sobrevivente que vivia com um militar, Epimaque, que a sequestrou durante o massacre — um caso de amor entre vítima e algoz. Ainda hospedaria o casal em sua casa, ao vê-lo na rua, despejado de Kicukiro. Quando os dois partiram para tentar a vida em outra cidade, Butare, ela notou o sumiço de uma máquina de costura. Aí começou a se condenar à morte.

Aos 26 anos, trabalhando com as freiras Pallotines, Hèlene foi recuperar a máquina de costura. Trouxe-a de volta, mas com a ameaça de Epimaque: “Nos próximos dias você verá…” Na noite de Natal, os vizinhos acharam que ela estivesse rezando, e não gritando. Ninguém a socorreu. O amigo jardineiro a encontrou degolada e violentada, ao lado da cama.

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Os irmãos Spèciose, Hyacinthe e Pierre voltaram ao povoado de Musumba, de onde fugiram quando os pais foram assassinados, em 1994. E reconheceram os prováveis assassinos, que se apoderaram de propriedades da família. Foram à polícia denunciá-los. Um dos suspeitos era o presidente regional dos radicais do Interahamwe, Frederik Harerimana, atualmente preso em Cyangugu, e o filho de Rose Ndimubanzi, conhecido por Jean.

O agricultor Fidele Nambajimana conta que os três irmãos — duas mulheres de 32 e 34 anos, e um rapaz, de 24 anos – passaram a dormir fora de casa, com medo de uma vingança noturna. Ela não tardou: seis homens armados de fuzis os atacaram. Mataram até a empregada Pie Ntampaka.

“A gente se pergunta quando os genocidas vão parar de arruinar nossas vidas”, protesta Fidele, também sobrevivente de 1994. “Os genocidas não suportam nos ver respirando… e o único arrependimento que parecem sentir é o de não terem terminado a tarefa”. Os pesquisadores do African Rights ainda descobriram que a execução dos três irmãos foi apressada para evitar que um homem, Eugene Namohoro, fosse obrigado a lhes entregar um porco roubado.

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O corpo mutilado de Benjamin Gatete foi um recado a todos que ousam identificar quem participou do genocídio. A mãe, Ancilla Mukangwije, de 72 anos, que o diga: já tinha perdido o marido e um filho de 25 anos, e agora o caçula, com 21 anos.

Benjamin estava ocupando uma loja em Kabuye que pertencera a Oscar Murwanashyaka, um soldado das FAR, as Forças Armadas Ruandesas ao tempo do massacre, agora substituídas pelo RPA, o Exército Patriótico Ruandês.

“Todos meus bens foram pilhados pela família de Oscar”, lembra Ancilla. Quando Benjamin resolveu reclamar, Oscar ficou sabendo no Zaire, onde as milícias ruandesas faziam reféns os refugiados hutus. “Entraram pelo teto da casa e cortaram meu filho em pedaços, roubaram tudo que podiam e o que não levaram, destruíram”. Ela própria fugiu para perto do campo militar de Karangiro, em Cyimbogo, para se sentir mais segura.

Uma vizinha de Benjamin ouviu gritos na noite do assassinato: “Kingura” (-Abra!). Depois viu o corpo retalhado: “Cortaram-lhe o tornozelo, uma parte da barriga da perna e a carne da coxa para mostrar aos assassinos no Zaire que cumpriram a missão”. Deixaram o que sobrou diante da porta. Nu.

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Caçado por extremistas hutus em 1994, Ephrem Namuhoranye conseguiu escapar. Mas dois de seus filhos morreram. No começo de 1996, refazendo a vida em Kigenge, perto de Gisuma, deparou com genocidas de seu povoado. E os denunciou. Eles foram presos, mas rapidamente libertados.

A 21h30 de 15 de março bateram na casa de Ephrem. Do grupo, alguém tentava se passar por um policial amigo, pedindo para abrir a porta, porém sua voz era pouco convincente. Sem retorno, arrombaram-na. “Eles fizeram meu pai sair para a rua a pancadas”, conta a filha Marie Gorette Murehatate, de 17 anos. “Atiraram diretamente em seu peito, e depois abriram-lhe a garganta”. Entraram de novo em casa para matar a mãe. “Atiraram nela e disseram ao vê-la caída no chão: missão cumprida”. Não estava morta: ainda hoje agoniza no hospital de Gihundwe, em Kamembe.

diferenças1O relatório A Prova Assassinada é pródigo em violências colecionadas no período pós-genocídio. Um orfanato foi atacado a granadas em janeiro de 1995. “Eram sobreviventes do genocídio, perseguidos por pesadelos, mutilados emocionais. Uma das crianças morreu e outras 25 ficaram feridas. Na cidade de Kibuye, à beira do belo lago Kivu, todas as terras pertencentes a tútsis passaram para hutus. O prefeito Abel Furere explicou à população que qualquer tútsi vivo seria uma potencial queixa de reintegração de posse. Sobraram poucos sobreviventes. De 252 mil, só oito mil escaparam.

Um tútsi que ganhou um processo de reintegração de posse, Anthere Munyandamutsa, foi executado por dois pistoleiros quando voltava para casa de uma reunião de sobreviventes.

“Somos perseguidos porque tivemos a coragem de voltar, reclamar nossas casas, reconstruir nossa vida e testemunhar contra os genocidas”, diz Israel Rwemarika, que perdeu a mulher, sete filhos e 123 familiares no povoado de Bisesero, em Kibuye. A Organização African Rights denuncia que “genocidas exercem controle direto sobre o aparato judiciário em Gikongoro e Cyangugu”. Mais: avalia que “os sobreviventes estão numa situação de extrema precariedade, e sua impotência os incita à desesperança”.

O policial Fulgence Kabego, de 27 anos, diz que sabe por que sobreviveu. “Ficamos vivos para enlouquecer: fomos exterminados, reduzidos à pobreza e agora nos tratam como loucos”. O hutu Winniphrida Nyandwi não só acusa genocidas como tem uma filha casada com um tútsi. “Virei um problema”. Já foi espancado várias vezes. Agora, toda a família é perseguida. Em Kaduha, os sobreviventes dizem: “Até a nossa fé em Deus esta abalada”.

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Foto: burgos4patqas

Foto: burgos4patqas

GISENYI – Famintos, esfarrapados, imundos e exaustos, 152 refugiados hutus cruzaram ontem a fronteira do Zaire com Ruanda, na vanguarda de milhares de outros que já partiram do extremo sul para o norte do lago Kivu, no Parque Nacional dos Vulcões, o habitat dos gorilas das montanhas.

O lado ruandês do lago Kivu, oferecido a turistas como “Suíça da África”, serviu apenas de escala rápida para a nova leva de refugiados. O balneário de vegetação luxuriante e hotéis europeus, colorido de flores e pássaros, está ocupado por jornalistas que acompanham há 12 dias “a marcha para a vida” de cerca de 1 milhão de hutus que estão voltando para Ruanda, depois de um exílio de dois anos no Zaire, Tanzânia e Burundi, onde se protegeram da certa vingança pelo massacre da minoria tútsi, agora no poder.

Os refugiados acamparam em Busogo, um centro de trânsito na aldeia de Mukingo, a 150 quilômetros ao Norte de Kigali. Sob o sol frio, os vulcões encobertos por neblina, muitos aproveitaram a água potável disponível para banhos improvisados. Várias crianças lavavam outras, mulheres ensaboavam os cabelos e os homens cuidavam do fogo, ou ficavam dentro de duas enormes cabanas de lona.

As costas curvadas, retas como tampo de mesas, mães banhavam também seus bebês nascidos no exílio do Zaire. Equilibrando-os assim, elas os secam e os vestem. Depois os enrolam num pano, e pronto: podem até esquecer deles, que ficam de pernas e mãos respaldadas, olhando para os lados, brincando com o cabelo sobre a nuca ou dormindo, só sendo retirados para mamar. Cada mulher parece ter um filho em gestação, outro nas costas e vários outros em volta. A maioria está sem o marido, morto por doença ou pinçado numa triagem do exército tútsi, que caça suspeitos de participação no massacre de 1994. Seriam mais de 150 mil o que chamam em francês de “genocidiários”, e as prisões já guardam mais de 70 mil à espera de julgamento.

taringa.net

f5Os refugiados que se renovaram como lava dos vulcões inativos na fronteira de Uganda, Zaire e Ruanda são agricultores de chá em Kibuye, para onde seriam levados, ontem mesmo, em alguns caminhões do Alto Comissariado das Nações Unidas. Era o que queriam, depois de 250 quilômetros a pé. Um líder natural do grupo, Kazoviyo Alexis, de 40 anos, disse em francês que “todos têm medo de não encontrar mais as terras que deixaram”. O tradutor do dialeto kinyarwanda que contratei, Moranguira Ahmad, só chamado de Tarzã desde que a própria mãe o apelidou ao nascer, sondou muitos homens do grupo, e explicou: “Mesmo que encontrem as terras com outros, vão esperar em paz que os ocupantes se retirem, em duas semanas, como determinou o governo”.

No campo de Busogo os refugiados comeram “biscoitos energéticos” e “ração de emergência” enviados pela União Europeia. Tiveram muita sorte: pouco depois que partiram, desabou uma chuva torrencial, com ventos que trouxeram ao chão a copa dos eucaliptos. Apesar do aguaceiro, a estrada ficou, como sempre, cheia de pedestres, em ambos os lados, como se fosse uma rua. A única rua, pois as aldeias estão a beira da estrada, sem acostamento. Carros e caminhões devem negociar a passagem. Camelôs montaram banca oferecendo sal, açúcar, batatas e tomates. Vez ou outra, alguém estende nas mãos uma galinha, ou ovos embrulhados em folha de bananeira.

A chegada de novos refugiados vai requerer uma expansão do programa de ajuda alimentar das Nações Unidas. Num comunicado distribuído em Kigali, uma porta-voz da Organização do Fundo Alimentar (FAO), Michele Quintaglie, advertiu que a situação poderá ficar “crítica” em alguns meses. Por enquanto, a ONU e várias ONGs estão alimentando mais de 250 mil refugiados já reintegrados em Gisenyi, Ruhengeri, as áreas rural e urbana de Kigali, Byumba e Gitarama.

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aveluz.com   KIGALI – O batalhão de soldados oferecido pelo Brasil ficou reduzido a um único brasileiro em Ruanda. Só ele, porém, está comandando 40 médicos e enfermeiros internacionais numa batalha contra epidemias que matam dez em cada 10 mil refugiados por dia. Mas o médico gaúcho Carlos Wandscheer não é enviado do governo brasileiro. Desde 1981, ele enfrenta crises mundiais pelo grupo Mèdecins du Monde, financiado pela União Europeia e alguns filantropos.

Até no Brasil já trabalhou, pelo Médicos do Mundo, o Dr. Wandscheer, de 48 anos. E por três vezes. Em 1983, ele estava embrenhado em Roraima para vacinar índios ianomâmis. Em 1987, em Fortaleza, foi implantar o Posto de Saúde Pirambu. E em 1988, no Xingu, formou agentes de saúde. Não é por acaso que teve sete malárias.

O Dr. Wandscheer tem um fino e curto rabo-de-cavalo. Um cabeleireiro em Ruanda aparou-lhe o cabelo nos lados e em cima, mas não tocou atrás. Tinha uma razão mística: um corte na nuca o colocaria em perigo – ele mesmo, não o médico. “Que podia fazer?”, ainda hoje se pergunta. Em Paris, onde mora, foi ao salão de sempre tosar o misticismo, mas mesmo o costumeiro barbeiro se recusou a pôr em perigo o companheiro africano.

O Mèdecins du Monde é uma cisão política do mais popular Mèdecins sans Frontières, ou Médicos sem Fronteiras (MSF). O grupo se formou para socorrer o “boat people” vietnamita, os refugiados que se lançavam ao mar em 1980. “Alguns médicos queriam socorrê-los, e o MSF, não; então, criamos um novo grupo”, explica o Dr. Wandscheer, gaúcho de Cruz Alta.

O Rio Grande do Sul lhe serve para ilustrar a dimensão do problema em Ruanda. “Imagine se fôssemos 30 milhões de gaúchos”, diz. Se fossem, os gaúchos teriam a mesma densidade populacional dos ruandeses, a maior da África. Ruanda é menos do que 1/3 do Rio Grande do Sul, com 26.338 quilômetros quadrados, e oito milhões de habitantes. Com uma agravante: está no meio do Zaire (a Oeste) e de Uganda (a Leste), o ponto de choque entre as influências dos colonos ingleses e franceses.

“O zairense é um latino, e o ugandense, britânico, que quer tudo certinho”, explica o Dr. Wandscheer. “Os hutus ruandeses identificaram-se com a França, que os tútsis acusaram e acusam de querer dividir o país para reinar.” O governo tútsi, no poder desde o massacre hutu de 1994, não está aceitando franceses na força multinacional humanitária, mesmo que a recuse agora por julgá-la não mais necessária, com os refugiados voltando do Zaire.

O Dr. Wandscheer tinha um amigo no Ministério da Saúde de Ruanda que se viu obrigado a fugir para não ser morto. “Era um hutu, durante o governo hutu, mas foi acusado de ter sangue tútsi por um homem que queria seu cargo”. Daí ele chegou a uma conclusão generalizante do massacre de tútsis por hutus. “Para mim, foi uma manipulação política”. Ele lembra que a rádio oficial martelava diariamente o mesmo refrão para os ouvintes: “tútsis são o diabo”. Quando a morte do presidente Juvenal Habyarimana, na queda de seu avião Mystère, em abril de 1994, detonou o massacre, “muita gente aproveitou o ensejo para matar inimigos pessoais”.

“Houve casos em que hutus esconderam amigos tútsis, mas matavam outros tútsis para que não se tornassem suspeitos de colaboracionismo”, conta o Dr. Wandscheer. Os números em que ele acredita também são diferentes dos normalmente aceitos, “mais realistas”. Entre os mortos do massacre e de epidemias, cerca de 600 mil, e os refugiados seriam 900 mil – e não 1 milhão, para ambos. “Acho que 10% da população morreram no massacre, e 2 a 3% mais, nos campos de refugiados e nos deslocamentos de um lugar a outro”.

O Dr. Wandscheer vai manter por mais um mês em Ruanda a equipe do Mèdecins du Monde, que está ajudando nos hospitais. O alerta à explosão de uma nova epidemia de cólera foi dado pela Organização Mundial da Saúde, depois de confirmados dois casos entre os refugiados que voltaram do Zaire. Na última epidemia, em 1994, chegaram a morrer cinco mil pessoas por dia, num total de 30 mil. Agora morreriam, por cálculos de ONGs humanitárias, 12.500 por dia, ou um milhão até o Natal. Outra estimativa, feita pelo grupo Médicos sem Fronteiras, é a de que a mortalidade poderá atingir até dez em cada dez mil pessoas, por dia, provocada por desidratação e diarreia.

A situação política preocupa o Dr. Wandscheer. “A reconciliação entre tútsis e hutus será um processo muito difícil, mas não impossível”. Um dos maiores problemas, para ele, “são as casas e terras abandonadas pelos hutus e agora ocupadas por tútsis”. Pobre Ruanda: o governo não tem condições de abrigar quem ficar desalojado. E vai provavelmente ser inundado por uma avalanche de denúncias contra hutus cujo crime será só o de reivindicar a posse de uma propriedade. Bastará que quatro testemunhas denunciem um ex-refugiado como “genocidiário” para que o prendam.

O Dr. Wandscheer tem fôlego para o pior. Seu batismo de fogo foi no Afeganistão, em 1981. Acabava então de deixar a pesquisa em medicina molecular, em Paris, para se tonar um médico do mundo. Depois esteve na Nicarágua, em 1982. Na guerra em Moçambique, em 1984-85, e no Togo, em 1993.

O dia em que cheguei à frente do campeão Ben Johnson

foto: thestar-com-my.jpg

foto: thestar-com-my.jpg

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Testarossa da Ferrari. O de Ben Johnson era preto.

Testarossa da Ferrari. O de Ben Johnson era preto.

O homem mais veloz do mundo, Ben Johnson, entrou em sua Ferrari e fugiu da imprensa. Fui atrás com meu Ford alugado. E acabei à frente dele.

A notícia da disputa foi publicada no Estadão, mas minha vitória, a parte mais saborosa do texto, acabou cortada.

Quando entramos na via expressa, e Ben Johnson acelerou, perdi-o de vista. Mas fui em frente por mais uns 30 minutos, pegando num desvio que imaginava ser um retorno para Toronto.

A uns poucos quilômetros apenas, olha ele lá. Ben Johnson, parado pela polícia rodoviária, por excesso de velocidade. Fui chegando devagar, e o ultrapassei por uns metros, garantindo-me o pódio, vitória!, mas saí do carro para ainda tentar, enfim, a entrevista que ele negava a toda a imprensa.

Fui caminhando na direção de Ben Johnson, que ia em outra direção, gritando, muito irritado. A TV CBC, que também o encontrou e já o filmava com os guardas rodoviários, era o seu alvo. Ele partiu para cima do câmera, e o empurrou, xingou; depois caminhou em minha direção, e eu fui dando uns passos para trás, até que me virei, corri e entrei no carro, trancando a porta por dentro.

Ben Johnson esmurrou o vidro do meu Tempest até desistir. Foi para sua Ferrari Testarossa preta, às vezes se voltando para a equipe da CBC e para mim, ameaçador. Acelerou e sumiu.

benNão tinha visto o texto impresso (acima) até agora, quando resolvi resgatá-lo. Por isso publico uma cópia escaneada, não o original. Ele foi cortado, alterado. Será que a redação não acreditou que eu tivesse vencido a corrida com Bem Johnson, ainda que em sentido figurado? Manteve-se a corrida, não o resultado, que acho que dava alguma graça à notícia. Não vou saber mais o que aconteceu.

Não foi a primeira nem a última vez que mexidas em meus textos me incomodam. Perdi um furo mundial por incompreensão de alguém na redação do jornal. Acertos são bem-vindos. Mas cortes que mutilam, não. Pode ser também que eu esteja e estivesse errado, e que o colorido à matéria do Ben Johnson não passasse de uma bobagem.

De qualquer forma, guardo a boa lembrança de ter ultrapassado um dia uma Ferrari Testarossa, com um Ford, e o seu motorista mais veloz do mundo, Ben Johnson.

Veja também o furo mundial que não foi publicado, aqui

Kissinger: “O Estadão vive me atacando”.

Henry Kissinger fala do novo livro com seu biógrafo, Niall Ferguson, de Harvard, na Universidade de Yale.
Kissinger fala do último livro com seu biógrafo, Niall Ferguson, de Harvard, na Universidade de Yale. (Foto: Finnegan Schick).

Brinca-se que dois presidentes dos EUA serviram a Henry Kissinger em

seus dois mandatos como Secretário de Estado. Tão poderoso, fiquei

intimidado quando o rabino Henry Sobel, seu amigo, nos apresentou.

Tinha tudo para ser um encontro rápido, chato e formal.

Mas aí ele inventou a reclamação: “O Estadão  vive me atacando”.

O Prêmio Nobel Kissinger lançou um livro em setembro, World Order,

em que postula que o mundo só conheceu até hoje uma “ordem regional”,

nunca mundial. Lendo-o, lembrei-me do nosso encontro, sobre o qual

escrevi um artigo para o Estadão, aqui reproduzido.

Jerusalém, 29/06/1983 — Quando lhe falaram que o Estadão estava ao lado dele, podendo escutar a conversa, Henry Kissinger reagiu como se o lesse obrigatoriamente todos os dias, logo ao acordar:

-Está sempre me atacando – disse alto o Prêmio Nobel e duas vezes secretário de Estado dos EUA no saguão do King David Hotel.

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Por um momento, até Nancy, sua esposa, olhou-o espantada. Depois, ele riu – estava brincando. As brincadeiras de Kissinger, visitando Israel, produziriam longas gargalhadas, um pouco mais tarde, durante um jantar na Universidade de Jerusalém.

Ele lembrou como o seduziram a comparecer ao jantar, e descreveu as táticas israelenses de negociações que considerou perigosas, porque podem culminar em “exaustão nervosa”. O reitor Simcha Dinitz, que no final o convenceu a fazer “algumas observações sobre seu amigo Navon” (o então presidente de Israel, Yitzhak Navon), apresentou-o como “o único secretário de Estado norte-americano ao qual serviram dois presidentes dos Estados Unidos”.

Kissinger fez “algumas observações” sobre o ex-presidente Navon, e “alguns comentários” sobre Golda Meir, lembrando que geralmente ele só fala após “quatro discursos de introdução, três discursos com observações iniciais, três outros com comentários e uma apresentação”, depois de um dia em que dá uma entrevista coletiva à imprensa e aparece em dois programas de televisão.

“O sobrinho levado de Golda”, como ele próprio, mister K, se definiu, deixou o humor por um momento para elogiar a iniciativa do presidente Navon em apoiar a criação de uma comissão de inquérito sobre o massacre de Sabra e Shatila, em Beirute, em 1982. “Restaurou a dignidade do povo judeu” — comentou. E receitou, com a voz rouca, pousada, enquanto sua esposa Nancy acendia um cigarro depois do outro, que “Israel encontrará seu caminho para a paz com justiça”, e que “com gente como Navon não se envolverá em nenhum tipo de extremismo”.

Kissinger veio a Israel a convite da Universidade de Jerusalém, mas fez também uma conferência na universidade de Tel-Aviv. Todo o mundo político israelense aproveitou a estadia dele para uma troca de ideias. Ao primeiro-ministro Menachem Beguin advertiu que a lua-de-mel entre Washington e Jerusalém pode voltar logo à fase de quase divórcio. O chanceler Yitzhak Shamir, depois de vê-lo, mostrou-se mais otimista com a possibilidade de uma retirada Síria do Líbano – já que Kissinger foi o negociador que conseguiu o famoso desengajamento de forças entre sírios e israelenses, no Golan.

Kissinger também esteve com os líderes da oposição trabalhista. Foi quando se despedia de Yithzak Rabin, no saguão do King David Hotel, que surgiu a conversa sobre o Estadão. Um amigo dele, o rabino Henry Sobel, apresentou-me como seu correspondente em Israel, provocando a reação imediata, porém simpática, de representar-se como uma vítima do jornal. Trocamos algumas palavras até ele sair com Nancy e seu filho David, de 23 anos, comentando:

-O Estado… Claro que conheço O Estado…

Galeria: Digesto Econômico.

19Ao postar esta capa da Digesto com a garota

que não deu a mão ao presidente Figueiredo, acendi

a curiosidade de amigos do Facebook, Linkedin e Google+:

“Que revista é essa?”.

Estou postando algumas capas da Digesto que resgatei,

mas ainda faltam muitas outras a serem acrescentadas.

Passe por aqui de vez e quando, a partir de amanhã,

para ver a galeria  completa ou se completando.

A revista Digesto Econômico morreu aos 64 anos, junto com o octogenário jornal Diário do Comércio, por uma decisão da Associação Comercial de São Paulo, seu publisher. O último número foi suspenso na gráfica, pronto para rodar. A Digesto teve um passado de glória, com articulistas influentes no mundo da economia, academia e política, e por seu papel durante a Revolução Constitucionalista de 1932. As últimas edições bimensais focaram os temas da atualidade, com análises e reportagens aprofundadas, e um dossiê completo para pautar os candidatos à Presidência na campanha de 2010 (só Dilma Rousseff não compareceu ao debate em que o receberia). Havia três anos a Digesto elegia os melhores dos maiores da economia nacional, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas e Boa Vista Serviços.


Este é um dos últimos expedientes da revista Digesto.

A capa era um rodízio entre os artistas Max e Paulo Zielberman.

E o layout ficava com Lino Fernandes, nas férias de Evana Sutilo.

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No fim do caminho de São Tiago

Foto: santiagoturismo.

Foto: santiagoturismo

Noite brasileira na Galiza

(desconvidado: Gilberto Gil)

pensandomagro.net

Santiago de Compostela, “mágico” 25/7/2004 — A mágica paulocoelhiana piscou no Correo Gallego on-line às 21 horas do Brasil: “Se obró el milagro del Apóstol, y la lluvia cesó poco antes del comienzo del espectáculo pirotécnico”, em homenagem ao Dia Nacional de Galiza .

A “milagrosa” estiagem permitiu a “apoteosis de fuego, agua y luz” na Plaza de Obradoiro, acompanhada por 15 mil pessoas diante da Catedral romana-gótica-barroca de 933 anos, o terceiro destino dos peregrinos cristãos no mundo, depois de Roma e Jerusalém. A concha-símbolo do Caminho de Santiago surgiu no céu, projetada a laser verde, azul e vermelho, ao som de música celta.

O cantor e então ministro da Cultura Gilberto Gil não compareceu à festa. No que fez muito bem, depois de ter irritado os galegos insistindo em falar castelhano durante seu show, seis dias antes, 19 de julho. Foi ainda além: recriminou o nacionalismo galego! “Temos que ser mais internacionais”, ensinou aos (ex?) fãs. “Además estamos en tierras de España!”, acrescentou ao povo separatista que estuda espanhol como língua estrangeira, obteve o domínio exclusivo “cat” (de Cataluña) na Internet, e não o nacional “es” (España), e já tentou até formar uma seleção galega de futebol. Os romanos o chamavam de gallaeci, ou celta, há quase três mil anos. É visível na paisagem ou nas descobertas arqueológicas: a Galiza está mais para a Irlanda e a Escócia do que para Madri e Barcelona. E foi assim que a “noche brasileira” do 25 de julho ficou a cargo de Toquinho e Maria Creuza.

Galega é como o presidente Lula chama a sua mulher, Marisa Letícia da Silva. Também atende por Galego o primeiro-cão, um labrador presenteado pelo governador da Bahia, Jaques Wagner. O pai de Fidel Castro era galego, como o ditador generalíssimo Francisco Franco, que mergulhou a Espanha numa “Longa Noite de Pedra”, fascista, entre 1939 e 75. No Aurélio, galego também significa estrangeiro, com alguns usos depreciativos. Os galegos dizem que sua Galiza foi “o primeiro país da Europa”. E que em sua ponta ocidental, extremo europeu, onde cresceu o povoado de Finisterra, abre-se a porta para o fim do mundo, ou para “El más Allá”, ou a Costa da Morte, onde o sol se põe naufragando no oceano Atlântico.

São 2,8 milhões de orgulhosos nacionalistas galegos na Comunidade Autônoma da Espanha, formada pelas quatro províncias de La Coruña, Lugo, Ourense e Pontevedra – e brinca-se que haveria ainda uma quinta, Buenos Aires, na Argentina, que já ostentou o título de “a maior cidade galega” do mundo. O português nasceu na Galiza (e não Galicia, região entre o leste da Ucrânia e o sul da Polônia), quando o norte de Portugal e o noroeste da Espanha faziam parte do reino asturiano-leonês, no século XII. Falava-se então o que hoje se descreve como galaico-português. Dom Afonso Henriques emancipou o seu futuro reino ao derrotar tropas de Leon e de mouros, em 1139. A separação, o tempo e influências específicas diferenciaram o idioma comum. Mas galegos, portugueses e brasileiros se entendem muito bem. O que mais chama a atenção é o X no lugar de J ou G: Xeito (jeito), Xeneral, Belxica, Xornal, Xilberto Xil, 25 de Xullo…

Foto: briga-galiza.info

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O hino galego está colorido de verde em suas três primeiras estrofes: “¿Que din os rumorosos/na costa verdecente,/ao raio transparente/do prácido luar?//¿Que din as altas copas/de escuro arume arpado/co seu ben compasado/monótono fungar?//Do teu verdor cinguido/e de benignos astros,/confín dos verdes castros/e valeroso chan,/non des a esquecemento/da inxuria o rudo encono;/desperta do teu sono/fogar de Breogán.” A Galiza é a “España Verde”. Luxuriante. Úmida: como chove! Os caminhos de Santiago para as montanhas ao leste, ou para as chairas (planícies) e rias (estuários) ao centro-norte, são marcados por pequenos e remotos pueblos e suas casas de pedra com balcões, muitos minifúndios produtivos, lindas estradinhas e trilhas, praias de areia, refúgios para o pernoite de peregrinos, bosques de pinho, eucalipto e castanheiras, o ar carregado de misticismo e lendas à la Paulo Coelho, agora nome de rua em Santiago, e um sem fim de tira-gostos locais para infindos tipos de vinhos.

Este cenário tem sido mais explorado pelos próprios espanhóis, 70% dos turistas, e os portugueses vizinhos, mas bem poucos brasileiros, atraídos mais a ler com o pé o Diário de um Mago, em 1,1 milhões de passos pelo Caminho Francês, ou visitar Madri, Barcelona e Ibiza. Uma pena, pois tudo na Galiza é tão perto, tão acessível, tão gostoso…

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Por exemplo, Pontevedra. Está a meia hora de carro de Santiago de Compostela. Dizem que Cristóvão Colombo nasceu aqui. Dizem que aqui também foi construído um de seus navios, o Santa Maria, lançado ao mar com o nome de La Gallega. Outro dos mitos ganhou uma praça, a bela Praça Teucro. Era o filho de Telamon e Hermione, e meio-irmão de Ajax, que partiu sem destino rumo à oeste depois de se tornar herói na Guerra de Troia. E acabou fundando a cidade, ainda hoje quase toda de granito, o centro histórico com a reputação de ser o mais bem conservado da Espanha. Só para ver a tradicional feirinha se armar lá toda manhã já vale o passeio. As igrejas de Santa Maria la Mayor e La Peregrina, ambas do século XVI, são decoradas com conchas – a prova, para o peregrino, desde a Idade Média, de que chegou à cidade santa do apóstolo Tiago. Hoje, bastam 100 quilômetros a pé ou 200 km em bicicleta para fazer jus a um diploma em latim, o Compostela.

As lendas, regadas a vinho e tapas, ficam ainda mais saborosas e verossímeis. Acredita-se até na que se conta sobre o abade San Ero, do mosteiro de Amenteira, pertinho de Pontevedra, em Combarro. Passeando, há 900 anos, ele parou em êxtase com os trinados e chilreios dos passarinhos. E perdeu-se em devaneios. Só voltou a si e ao lar 300 anos depois, certo de que só tinham se passado alguns minutinhos. Não é à toa que a mascote da Galiza seja “la meiga”, a maga com poderes de bruxa mas também de vidente e curandeiro. Você pode até não acreditar, pero que las hay, las hay! Ou como se diz em galego: “no me creo en las meigas prou haber hai-nas”. Elas estão expostas nas lojas para turistas, nos carrinhos de ambulantes e nas tabernas pelos caminhos dos peregrinos.

Foto: pertraviagens.wordpress

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Cuidado com as meigas-chuchonas, que chupam o sangue de criancinhas. Ou a Lobismuller, a meiga nascida na Sexta-feira Santa. Elas são muitas, e cada uma guarda um poder distinto. Diante delas só existe uma defesa, o Desconxuro, e é bom decorá-lo antes de chegar à Galiza: “¡San Silvestre, Meigas fora!” O âmbar é um amuleto contra venenos ou encantamentos. Atrás de portas, para proteção à casa, pendura-se uma ferradura de cavalo, ou espora de galo e rabo de lobo.

A mãe de todas as lendas cerca o próprio São Tiago, às vezes identificado como o Maior; outras, o Menor, e também o Justo. Filho de Zebedeu e Salomé, ele pescava no lago Genesaret com o irmão João Evangelista quando Jesus o chamou. Foi um dos primeiros discípulos. Em sua Epístola, pontificou: “A fé sem obras está morta”. Como a palavra vazia, sem prática: a um faminto, nomes num cardápio não bastam; dar-lhe comida é o que resolve. Quando os apóstolos saíram pelo mundo a pregar os evangelhos, a Santiago coube a Gallaecia, na Hispania. Navegou pelo Mediterrâneo e bordeou a costa de Portugal. Pode ter desembarcado em Tarragona, de onde caminhou por uma via romana até a atual La Coruña.

Foto: andanhos.blogs.sapo.pt

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Um dia, a Virgem Maria apareceu a São Tiago (ilustração ao lado) sobre um pilar em Caesaraugusta – hoje uma coluna venerada na Basílica de Nuestra Señora del Pilar, em Saragoza, capital do Aragon. O milagre da aparição deu o sinal para ele voltar rápido à Jerusalém. Maria queria reunir os apóstolos para, então, morrer. Mas era o ano 42 ou 44 d.C., quando o rei da Judea, Herodes Agripa I, perseguia cristãos, a maioria já dispersa pela Fenícia, Antioquia e Chipre, para prendê-los, depois matá-los. E o Apóstolo Tiago, um dos primeiros presos, foi degolado. Seu corpo teria sido levado por seus discípulos de volta para Galiza, num estranho barco de pedra. E lá o enterraram em Iria Flavia, hoje Padrón.

Passaram-se 800 anos até surgir o ermitão Paio. Ele viu luzes sobre o bosque de Libredón. Ou, por outra versão, numa noite estrelada, ele seguiu um brilho na mata. Seria uma estrela que pousou? Um Ovni? Não, não, na verdade ele fora atraído por uma irresistível linha de energia sob a Via Láctea. Ou nada disso: só fogo-fátuo, tão comum em cemitérios… O bispo galego Teodomiro fez o que pregava o Apóstolo Tiago: agiu sem se perder em palavras e mais palavras. Mandou escavar o local. Eis então que aflorou um esqueleto com a cabeça debaixo do braço, em meio a vestígios de uma capela da era romana. A arqueologia só comprova mesmo que Compostela (para alguns, cemitério; para outros, campo estrelado) vinha de uma longa tradição de enterros: dali foram retiradas tumbas cristãs, suevas (povo germânico que ocupou a Galiza entre 411 e 585), visigóticas e muçulmanas. O rei de Astúrias, Alfonso II, o Casto, pôs, literalmente, uma pedra gigantesca sobre todas as dúvidas e teorias: ergueu a imponente Catedral de Santiago de Compostela.

A peregrinação podia ressuscitar o corpo e restaurar o espírito dos pioneiros peregrinos, mas não os livrava do forte cheiro de suor que exalavam dentro da Catedral. Foi então que um “gênio” na Idade Média inventou um antídoto já politicamente correto, e atração até hoje: o botafumeiro. É um gigantesco incensório de prata, que voa sobre as cabeças da multidão de um lado ao outro da nave, puxado por cordas, como um sino pesado, por quatro padres em cada ponta. Vai deixando nuvens de fumaça, que baixam como um desodorante coletivo. Consta que caiu lá do alto duas vezes. Hoje, só o balançam em ocasiões especiais. Mas, também, agora, os peregrinos costumam comemorar o fim do caminho, primeiro, com um bom banho.

Foto: touristeyes.es

Foto: touristeyes.es

Foto: pt.wikipedia.org1

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São 200 mil peregrinos por ano. Multiplicaram-se depois que o papa João Paulo II visitou Compostela, em 1982, e O Diário de um Mago tornou-se um best-seller mundial, em 1987. Pela “popularização” do Caminho de Santiago, Paulo Coelho virou rua na cidade. E ele foi lá inaugurá-la, em julho. Agradecido, lembrou versos do poeta sevilhano Antonio Machado: “Caminhante, não há caminho; faz-se caminho ao andar”. (Caminante, no hay camino,/se hace camino al andar./Todo pasa y todo queda,/pero lo nuestro es pasar,/pasar haciendo caminos,/caminos sobre la mar.)

Entra-se na Catedral pelo Pórtico da Glória. Na verdade, para-se. Não dá para cruzá-lo sem admirar seu triplo arco esculpido em 20 anos por Mestre Mateo. Pronto em 1188, sofreu exposto ao sol, ao relento e ao gesso de uma cópia encomendada pelo governo inglês, em 1866. Bem no centro, um Cristo de tamanho desproporcional mostra as mãos e os pés feridos, rodeado por São João, São Mateus, São Lucas e São Marcos. Oito anjos seguram instrumentos musicais. Os guias misturam línguas com as descrições de cada um dos inúmeros detalhes para os turistas. E nessa Babel há um gesto comum: todos tocam a palma da mão no autorretrato do artista, ao pé de uma coluna. É para absorver o seu talento. Comigo não funcionou.

Que não se pense em Compostela apenas como um grande mosteiro rescindindo ao incenso do botafumeiro. Nada disso: as noites fervem por suas vielas. Bob Dylan e David Bowie não a visitaram para rezar. Aqui vivem 30 mil universitários. De certa forma, lembra Ouro Preto, em Minas. Nela há um belo parque, um centro comercial que ostenta até uma filial do famoso El Corte Inglês, bons hotéis e ótimos restaurantes. E dela partem outros caminhos de Santiago para destinos pagãos Galiza afora, todos bem próximos, para pequenos passeios de meio-dia.

Na marina de Baiona está ancorada uma réplica da caravela Pinta, no lugar em que a original, com Cristovão Colombo no comando, jogou âncora em 1º de março de 1493, depois de descobrir a América. É um museu flutuante, com cenário que inclui até o boneco de um índio brasileiro, no porão. A placidez da baía em volta esconde o campo de batalha que ardeu durante séculos. Muitos povos tentaram possuir a linda Baiona. E sua história oficial orgulhosamente registra a repulsa ao pirata inglês Francis Drake, posto a singrar em fuga por Don Diego de Acuña, o conde de Gondomar.

Por uma galinha viva, em Cambados, São Benito deleta verrugas. Qualquer verruga. Só não faz a biópsia. Mas não se iluda: a maioria dos turistas não vem até aqui atrás de uma plástica milagrosa. São atraídos por uma preciosa herança dos monges de Cluny do século XII, o Alba-Riño, o “branco do Reno” – o vinho branco galego Albariño. O produzido em Portugal, com as mesmas uvas, tem o mesmo nome, Alvarinho. Nesta região de Rias Baixas, em que o litoral é bastante recortado e o mar, raso, paisagem de mangues mais comparada aos fiordes escandinavos, cada casa tem uma parreira. E todas enviam sua colheita para cerca de 200 bodegas. A maior delas, a Martin Códax, centraliza a produção de 285 pequenos fornecedores, e fica aberta à visitação e à degustação gratuitas. A cada tonel uma grata, gratíssima surpresa, de aroma intenso. Tim-tim. E aproveite: os bafômetros estão há mais de 10 mil quilômetros. Ah! São Benito, o exterminador de verrugas, também aceita cordeiro ou ovos em troca de seu trabalho – a negociação deve ser feita diretamente na igreja da praça de Fefiñans, que até mesmo os sem-verruga precisam conhecer.

O último relatório mundial de consumo de drogas das Nações Unidas conferiu o título de “capital europeia da cocaína” à cidadezinha de Miranda de Ebro, na rota Jacobea por onde pode ter passado o padroeiro da Espanha, São Tiago, ao chegar de Jerusalém. Já não é mais Galiza, porém perto, na Comunidade Autônoma de Castilla y León. Algum engano, provavelmente. Pelas contas do jornal inglês The Guardian, cada mil dos seus 40 mil habitantes aspiraram 97 carreiras por dia para conquistar a liderança de concorrentes fortes como St. Moritz, Londres, Zurique, Madri e Ibiza. O maior suspeito de provocar o erro é uma indústria química que despeja seus resíduos no rio Ebro, do qual se colheu a água para o teste. O prefeito exige um desmentido oficial, mas o povo, que gosta mesmo de vinho, brinca de procurar os cocainômanos vorazes da pacata cidadezinha. De qualquer forma, os espanhóis são classificados como os maiores usuários de cocaína do mundo, 3% de sua população entre 15 e 64 anos, seguidos de 2,4% dos ingleses e de 2,8% dos americanos.

O contraste entre o espiritual e o mundano se acentua à mesa, farta em frutos do mar. O pecado da gula contagia turistas e peregrinos. Há uma iguaria local servida só em alguns restaurantes da Galiza em toda a Espanha, o percebes. É um molusco que cresce grudado às pedras da costa entre Malpica e Cabo Ortegal, batido pelas ondas do Atlântico e do mar Cantábrico. Arrisca-se a vida para pegá-los. A pesca tem seus especialistas no remoto povoado de San Andrés de Teixido, o padroeiro dos pescadores. Aqui um quilo de percebes sai por 15 dólares, mas se ele viajar até La Coruña, já custará 60. Fresco, fervido e resfriado, o básico, já dá para se deliciar, sorvendo um Albariño.

Mero, robalo, salmão, vieiras, ostras, polvo… Para os turistas gastrônomos, a Galiza é a Capital do Polvo. Peça o pulpo a la galega, servido com azeite de oliva e pimentão, ou pulpo a feira, misturado à páprica, ótimo aperitivo. Come-se até o empanzinamento. E quando acaba o longo almoço, começa o ritual do jantar, tapas à mesa, vinho aberto. A Galiza também se tornou famosa como a Capital das Empanadas. Mas, sem nenhuma dúvida, ainda pode ser chamada de a Capital da Tarta de Santiago, a torta de amêndoas enfeitada com a cruz do apóstolo. O dono de um aconchegante hotel rural, com só nove quartos supercharmosos, La Fervenza, perto de Lugo, preparou no forno a lenha um capon, um galo castrado até 12 semanas de idade. Delicioso, mas muitíssimo gorduroso. A digestão levou dois dias.

Em Lugo, Paulo Coelho parou sua caminhada, iniciada em Saint Jean Pied de Port, na França, e pegou um ônibus para Santiago. Ele mesmo o revelou ao inaugurar a sua rua. Desde o século XII, os peregrinos recuperam o fôlego aqui. Assim emprestaram fôlego à economia da cidade, voltada para o setor de serviços. O turismo hoje é cultivado. A sua muralha romana de 2.140 metros, com dez portas, construída entre 260 e 310, é a maior atração. Ela está inteira, como a de Jerusalém. Só lhe falta um Muro das Lamentações, para onde com certeza afluiriam peregrinos e turistas ao final da estadia na Galiza, já com suspiros de saudades.

Museu íntimo de Dora Maar

Estava em Paris quando “Picasso de Dora Maar” foi a leilão.

Quem me contou lembranças do casal  foi o artista pernambucano

Cicero Dias, então ainda vivo. Era ele quem ajudava Picasso

a administrar suas trocas constantes de mulheres.

Republico um artigo sobre Dora Maar, hoje vedete de uma

exposição de Pablo Picasso em SP.

amor

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Paris, 6/10/1998 — Numa rolha de champanhe, Pablo Picasso gravou sua paixão pela amante Dora Maar há mais de 50 anos. Retirada agora de seu ineditismo, é como se destampasse uma cápsula do tempo. Eis Picasso com 55 anos. Eis sua musa Dora, 29, fotógrafa surrealista. E eis o acervo amoroso dos nove anos que passaram juntos: desenhos em pedras, ossos, madeira, caixa de fósforos, brincos, a rolha de champanhe e retratos como o de Dora adormecida, Dora na praia, Dora chorando, Dora de unhas verdes, Dora e o minotauro e Perfil de Dora sentada. São 143 relíquias que Dora guardou num museu íntimo, como fetiches, até morrer, sem herdeiros nem testamento, em julho do ano passado.

O “Picasso de Dora Maar” vai a leilão nos dias 27, 28 e 29, na Maison de la Chimie, em Paris, estimado em mais de US$ 25 milhões. Os desenhos, pinturas, fotografias e móveis de Dora farão parte de outro leilão em 20, 26 de novembro e 7 de dezembro, no hotel Drouot. O governo francês ganhará 60% do que for arrecadado. Genealogistas que entram em ação sempre que ninguém reclama um espólio valioso encontraram as pistas de dois parentes distantes, comprovados, mas não identificados até que assinem um contrato definindo quanto merecerão de recompensa, no mínimo, 15% do valor total.

“Dora era uma mulher muito nervosa”, diz o pintor pernambucano Cícero Dias, 92 anos, amigo de Picasso condecorado em maio pela França por ter municiado aviões ingleses com um poema de Paul Éluard, então despejado dos céus da Europa ocupada pelas forças nazistas, em 1942. “Foi internada várias vezes, deprimida, porque não aguentava saber de Picasso com outras mulheres”. Foram vizinhos, os três. Dora morou até morrer no prédio 6 da rua de Sovoie, a um quarteirão da margem esquerda do Sena. Pôs o amante num ateliê de sua esquina com a Rue des Grands Augustins. Cícero estava perto, do outro lado do rio.

Picasso e Theodora Markovitch foram apresentados pelo poeta Éluard no café Deux Magots, em St.-Germain-des-Prés, numa noite em janeiro, 1936. Nascida em Tours, na França, o pai da antiga Iugoslávia a criou, com a mãe francesa, “no Uruguai”, insiste Cícero, ou “na Argentina”, diz o jornal The New York Times. Os amantes conversavam em espanhol. Dora fotografou a produção de Guernica, inspirado na cidade basca alvo de um bombardeio aéreo alemão, e seria uma de suas figuras – a mulher horrorizada segurando uma lâmpada. Posou também para a série Mulher chorando. “Nunca pude imaginá-la a não ser chorando”, dizia Picasso. E foi assim que a deixou por outra mulher mais jovem, Francoise Gilot, em 1944.

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Dora nunca foi rica, mas jamais vendeu qualquer lembrança de Picasso. O seu acervo amoroso revela mais do Picasso homem do que do pintor. “O que importa para mim é que cada uma das peças está cheia de sentimento, cheia de vida”, diz o marchand parisiense Marc Blondeau, contratado como consultor para o leilão. Picasso esteve com Gilot na vernissage de pinturas de Dora, em 1945. E se viram pela última vez em 1954.

Um almirante em águas turvas

cella.com.br

Hoje o Irã, antes foi o Iraque o foco

nuclear no Oriente Médio. Um cientista

alemão, Karl-Einz Schaab, ajudava

o ditador Saddam Hussein a produzir a sua bomba.

De repente, ele apareceu no Rio e foi preso

pela Polícia Federal. Curioso: dois ex-secretários da Justiça

foram mobilizados para defendê-lo contra a extradição

pedida pela Alemanha. Traidor para os alemães,

Schaab revelou-se grande amigo de militares brasileiros.

Virou o documentário Stealing the Fire (Toronto, 2003).

ale8SP e RIO, 1997 — Peça-chave na produção de uma bomba nuclear cobiçada pelo presidente iraquiano Saddam Hussein, o cientista alemão Karl-Einz Schaab está escondido em Copacabana, no Rio de Janeiro, temendo ser sequestrado por “agentes secretos europeus e israelenses”, desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) negou sua extradição à Alemanha, em 4 de março, e o libertou depois de 14 meses de prisão na Polícia Federal carioca.

Schaab, de 64 anos (na época), é acusado de “alta traição” no mandado de prisão expedido pelo Supremo Tribunal Federal de Karlsruhe, na Alemanha, em 23 de fevereiro de 1996, por ter transferido ao Iraque uma avançada tecnologia europeia de centrifugação a gás para enriquecimento de urânio, apropriada do Urenco – o consórcio europeu no qual ele trabalhou, com acesso a arquivos secretos liberado pelo serviço alemão de contra espionagem e antiterrorismo.

Dividida em partes, isoladamente inofensivas, com nenhuma ou pouca incidência de proibições para comercialização, uma poderosa centrífuga, altamente secreta, foi contrabandeada para Bagdá. Schaab também entregou ao Iraque desenhos e reproduções fotográficas do modelo TC-11 de uma centrifugadora desenvolvida conjuntamente por cientistas ingleses, alemães e holandeses. Cobrou US$ 350 mil pelo serviço, considerado uma ninharia. “Estamos diante do pior caso de violação das leis de exportação de material nuclear da Alemanha”, disseram funcionários do governo alemão em Bonn, no início de 1996.

“Ao negociar com o Iraque”, defendeu-se Schaab ao ser interrogado na 13a Vara Federal, no Rio, em abril de 1997, “visava conter o expansionismo dos extremistas islâmicos do Irã”. Para reforçar, ele lembrou que os iraquianos foram considerados “um fator de estabilidade contra os iranianos” pelo porta-voz da Casa Branca, em Washington, “seis meses antes da Guerra do Golfo”, em 1991. Durante o interrogatório, ele se firmou “contra violência” e ainda se apresentou como vítima de “um tipo de perseguição política na Alemanha”. O advogado do governo alemão no Rio, Gustav Livioi Coniatti, perguntou-lhe: “Não há contradição entre não-violência e o armamento nuclear do Iraque?”

Schaab, representado no filme Stealing the Fire.

Schaab, representado no filme Stealing the Fire.

Schaab respondeu, segundo a tradução oficial das 2h37 do interrogatório em alemão: “Não vejo dessa forma, na medida em que o Iraque mantinha ligação com o ocidente”. Se o presidente Saddam Hussein não invadisse o Kuwait em 1990, provocando o que chamou de “a mãe de todas as guerras”, já teria uma bomba atômica em 1996, enriquecendo urânio de pesquisa francês e russo por centrifugação a gás – asseguram os cientistas David Albright e Robert Kelley, participantes de várias inspeções da ONU que reconstituíram parte da corrida nuclear iraquiana, um enorme quebra-cabeça envolvendo 185 empresas em 28 países, 7 mil técnicos e 20 mil operários.

No mesmo dia em que libertou Schaab, o STF autorizou a extradição de um outro alemão, Dietmar Hellebrand, preso em 9 de maio de 1997, no aeroporto Guararapes, em Recife, com cocaína escondida em aparelhos de ginástica. O tráfico de drogas “é crime punível pela justiça dos dois países”, sentenciou o ministro relator Sepúlveda Pertence. Já a venda de tecnologia nuclear da Alemanha para o Iraque foi julgado, por unanimidade, um “crime político”. O pedido de extradição do governo alemão não menciona “qualquer indício da prática de crime comum”, arguiu o ministro relator Octávio Gallotti.

O advogado Tórtima

O advogado Tórtima

O que a Justiça alemã considera um “crime de lesa-pátria” foi política do governo brasileiro, fornecedor de 24 toneladas de dióxido de urânio ao Iraque até 1982, quando o presidente Saddam Hussein tentava obter um míni arsenal nuclear para mudar o mapa do Oriente Médio e vingar-se de Israel pelo bombardeio aéreo de 1981 ao reator Osirak, suspeito de produzir plutônio na periferia de Bagdá.

“Se o governo brasileiro autorizar a extradição de Schaab, por considerá-lo criminoso, estará, ao mesmo tempo, reconhecendo uma certa cumplicidade, ou confessando coautoria num crime” – dizia o criminalista e ex-secretário de Justiça do Rio, Arthur Lavigne, em 1997. Ele foi o primeiro advogado de Schaab no Brasil, indicado por outro ex-secretário de Justiça do Rio, Vivaldo Barbosa.

Mistério: um cidadão alemão, que quer trocar um visto válido de residência temporária no Brasil, carimbado pelo consulado brasileiro em Rivera, no Uruguai, por um outro que lhe permita trabalhar, enfrenta um repentino problema – e, então, surgem dois renomados advogados, ex-secretários de Justiça do Rio, para socorrê-lo. Barbosa cometeu uma única indiscrição, revelando que quem o mobilizou justificou-se, avisando: “Esse homem (Schaab) é o pai do submarino nuclear brasileiro”. E Lavigne não conversa sobre o caso nem um ano depois de tê-lo abandonado, sem explicação.

“Fantasias…” – ri o advogado que derrotou a Alemanha defendendo Schaab no processo de extradição, José Carlos Tórtima. Mas ele também logo adverte: “Não sei muito do meu cliente no Brasil”.

Foi Vivaldo Barbosa quem acompanhou Schaab à Divisão de Polícia Marítima, Aérea e de Fronteiras, na praça Mauá, no centro do Rio, em 12 de dezembro de 1996. Caminharam “incomunicáveis”, sem um idioma comum, nem mesmo o inglês, em busca de um visto de trabalho para estrangeiro que deveria só ser concedido pelo Ministério do Trabalho. Na Polícia Federal, porém, esperava-os havia dois meses um mandado de prisão preventiva, assinado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Octávio Gallotti, acatando um pedido de extradição feito pelo governo alemão. Schaab ficou. Deu ao escrivão, como seu endereço, a rua Dona Mariana, 210, apartamento 308, em Botafogo.

Talvez uma mera coincidência: o endereço é o do prédio Marechal de Ferro, construído por militares da Marinha e do Exército. Hoje restam um capitão e dois majores entre os moradores. O porteiro há 27 anos, Osvaldo de Paula Assunção, ouviu falar em Schaab só quando agentes federais apareceram para “uma vistoria no 308”, onde encontraram um inesperado drama: Tânia, uma mulher de 37 anos que se autoflagelava durante frequentes crises de choro, só remediadas com internações no hospital Souza Aguiar. Agora com câncer, ela se mudou para perto da família, em Porto Alegre.

Faz dez anos que o contra-almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, então diretor do Centro Experimental de Aramar, em Iperó (SP), declarou à imprensa “ter obtido, pessoalmente, sob falso pretexto”, alguns rotores para centrífugas a gás. Curioso: Schaab trabalhou para uma firma especializada em rotores de fibra de carbono, a MAN Technologie AG, em Munique; foi o dono da RO-SCH Verbundwerkstoff GmbH, em Kaufbeuren, na Alemanha, que também os produzia; e fundou a Alwog, na Suíça, que os vendia.

Ao ler a notícia da prisão de Schaab no Rio, a jornalista Tânia Malheiros, que por dez anos investigou a área nuclear no Brasil, autora do livro Histórias Secretas do Brasil Nuclear (Distribuidora Charme, Rio, 1996), uniu fios que a intrigavam, e concluiu num lampejo: “Este é, com certeza, o alemão que citei no meu livro, mas de quem não tinha o nome”. Estava escrito, na página 84:

“Um técnico alemão, cujo nome tem sido preservado, foi quem forneceu ao contra-almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva o projeto de uma máquina da Alemanha, construída pela Marinha e utilizada para produzir cerca de 600 ultra centrífugas de aço para Aramar – em Iperó, São Paulo. A tecnologia dessas ultra centrífugas estava superada em poucos anos, em função do avanço nas áreas de ponta nos países do Primeiro Mundo. A Coordenadoria de Projetos Especiais da Marinha (Copesp) continuava, assim, ainda distante do que existia de mais moderno nas grandes potências nucleares, em termos de ultra centrífugas.”

E Malheiros acrescenta, no parágrafo seguinte: “A grande oportunidade para reverter esse quadro surgiu na década de 90. O Iraque havia encomendado à Alemanha uma máquina de última geração, para produzir ultra centrífugas de fibra de carbono, mas a entrega não foi possível com a invasão do Kuwait, no dia 2 de agosto de 1990. Logo depois, Othon daria uma de suas últimas ‘cartadas’: participou ativamente das negociações com os alemães e, em 1992, a máquina já estava na Copesp. Esses e muitos outros segredos o contra-almirante ainda guarda a sete chaves.”

Schaab era especialista em centrífugas a gás, como as da foto.

Schaab era especialista em centrífugas a gás, como as da foto.

Quando presidente, José Sarney proclamou, ufanista, num discurso em 4 de setembro de 1987, que o Brasil já dominava o processo de centrifugação a gás. Um laboratório da Marinha, com seis centrífugas, produziria combustível para submarinos atômicos. O programa nuclear “autônomo” brasileiro dispunha de um saldo de US$700 milhões no Banco di Roma, em Luxemburgo, depositado pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). O Iraque enveredou pelo mesmo caminho, também em 1987, desistindo de outros métodos para o enriquecimento de urânio.

O Brasil e Schaab revelaram ter “um denominador comum”, para David Albright, inspetor da ONU e presidente do Institute for Science and International Security, em Washington: ambos “forneceram informações sobre centrífuga a gás para o Iraque”. Mas a participação brasileira foi menor do que esperavam os iraquianos, acrescentou Mark Hibbs, no Bulletin of the Atomic Scientists, em 1993, citando um funcionário do governo americano.

Outro denominador comum pode ser estabelecido entre a defesa de Schaab no processo de extradição e um comentário do brigadeiro Hugo de Oliveira Piva, que representou o Brasil nas negociações de um “programa conjunto de desenvolvimento avançado” com o governo iraquiano, em 1979 “Com a queda do xá (Reza Pahlevi) e a tomada de poder no Irã pelos fundamentalistas muçulmanos, o Iraque passou a ser o grande aliado do Ocidente para conter a expansão do fundamentalismo islâmico, principalmente nos países produtores de petróleo.” Ele lembra, no livro de Malheiros: “As principais potências ocidentais passaram então a armar o Iraque e a dar grandes empréstimos para a formação de seu parque industrial.”

Schaab foi um prisioneiro “bastante reservado”. Uma agente federal conta que ele recusava dar entrevistas a repórteres alemães e brasileiros, mesmo que autorizadas por juízes do STF. Toda quinta-feira era visitado pela esposa, Brigitte, que se juntou a ele no Brasil depois de libertada da prisão na Áustria. Como sócia da RO-SCH, acusada de vender 20 rotores de fibra de carbono para o Iraque, acabou sendo incluída no mandado de prisão expedido pela promotora alemã Wilma Resenschick, de Augsburg. Como o marido, ela não fala com a imprensa. O advogado alemão do casal, Ralf Schönauer, é quem prega a “censura” a entrevistas, em nome de uma “fase muito delicada” das gestões para dar aos Schaabs o direito de viver em liberdade na Alemanha.

A possibilidade parece bem remota. Na véspera do julgamento do pedido de extradição em Brasília, dois procuradores alemães surpreenderam Schaab em sua cela da Polícia Federal. Não tiveram nem sequer a cortesia de avisar antes o seu advogado, José Carlos Tórtima. “Que deslealdade!” – ele ainda lembra, inconformado. Trouxeram uma proposta: “Abrisse mão de se defender no processo de extradição, e seria condenado a uma pena suave na Alemanha”. Fizeram intriga, dizendo que “estava sendo tapeado pelo advogado brasileiro”. Mas o voto unânime no STF mostra como se enganaram.

Tórtima, 52 anos, foi recomendado por um parente de um dos companheiros de cela de Schaab, depois da desistência de Lavigne. “Disseram-me que o senhor me tira dessa encrenca…” – apresentou-se. Estabeleceram um contrato de risco, que dependerá de um eventual desbloqueio de seus bens pela justiça alemã, a diferença entre o patrimônio que tinha antes e depois dos negócios com o Iraque, e fixaram um pró-labore, que cobre despesas. Já falam em português, que vai fluindo com o tempo, ou em inglês, espanhol, às vezes em alemão, através de um intérprete.

“Ele poderia ser muito útil no Brasil”, descobriu Tórtima, nos encontros. Em Bagdá, Schaab blindou carros de poderosos membros do governo de Saddam Hussein. Para a Petrobras, traria um know-how que aperfeiçoa as perfuradoras de petróleo em alta profundidade.

Quando Tórtima teve que ir à Alemanha, Schaab lhe deu um conselho: “Vá para a Suíça, cruze a fronteira por terra e não viaje pela Lufthansa”. Foi o que ele próprio também fez ao entrar no Brasil por Santana do Livramento, vindo do Uruguai. Antes, alongando ainda mais a volta, passou pelas ilhas Canárias. Uma centrífuga despachada da Suíça para o Iraque, em 1991, seguiu a mesma estratégia de camuflagem, via Singapura, mas nunca chegou ao destino. Que Schaab não o ouça: o seu advogado só obedeceu a ele em parte, voando para a Alemanha com uma escala na Suíça. “Não senti nada diferente”, conta hoje. E o que deveria ter sentido? “Não sei…”

A Tórtima não foi preciso se aprofundar no cipoal da produção de bombas nucleares. Bastaram-lhe dois preciosos argumentos para ganhar a causa. O primeiro: Schaab já tinha sido julgado e condenado a 11 meses de prisão, em 16 abril de 1993, em Kempten, na Alemanha, por violação à Lei de Comércio Exterior. E a reabertura de um processo já julgado “é inadmissível, ofensa (…) à Constituição brasileira”. Segundo: o artigo 77 do Estatuto do Estrangeiro dispõe que “não se concederá a extradição quando o fato que motivar o pedido não for considerado crime no Brasil ou no Estado requerente”. E o crime de “traição à pátria”, ou alta traição, não está previsto na lei penal brasileira.

Num momento da defesa, Tórtima se exaltou, recusando-se a aceitar que “a grande nação de Goethe eleja um culpado, um autêntico bode expiatório” para corrigir um “monumental erro de sua política externa, dramaticamente exposto no insólito episódio da invasão do Kuwait pelas tropas iraquianas”. O que Schaab fez “foi uma insignificância diante da colaboração dada ao Iraque pela Alemanha”, ele repete em seu escritório na rua da Assembleia, no centro do Rio. O jornal London Times o confirmou com uma ironia publicada em 17 de fevereiro: “A julgar pelo fluxo de exportadores alemães para Bagdá, antes da Guerra do Golfo e no início dos anos 90, Saddam parecia estar enfrentando um gigantesco problema de mosquitos”. Difícil provar se vendiam pesticidas ou gases venenosos: de 56 inquéritos abertos, somente seis terminaram em prisões. E 11 empresas foram investigadas sobre o papel que representaram na nuclearização do Iraque.

Cartaz do filme Stealing the Fire

Cartaz do filme Stealing the Fire

“Se o ruim se tornar pior”, concluiu o London Times, “Saddam poderá ainda se abrigar em seu bunker de 1.780 metros quadrados à prova de bombas, desenhado por uma firma de Düsseldorf e mobiliado por uma outra de Munique, com filtros especiais de ar acionáveis caso a guerra na superfície se torne demasiadamente quente”.

Entre o primeiro julgamento de Schaab, na Alemanha, e o pedido de extradição para julgá-lo de novo, ocorreu uma reviravolta nas inspeções de armamento nuclear e biológico iraquiano pela ONU. De um perito em rotores
que giram sete vezes além da velocidade do som, reduzidos por Tórtima a “famigerados tubos”, Schaab foi

O Iraque de Saddam era o Irã atual na corrida nuclear

O Iraque de Saddam era o Irã atual na corrida nuclear

elevado a “cabeça do programa de armas nucleares do Iraque”. Os novos segredos revelados pela 28a inspeção da ONU afloraram com a fuga do genro do presidente Saddam Hussein, o ministro da Indústria e da Industrialização Militar, general Hussein Kamel, em agosto de 1997, seguido de outro genro e das duas esposas, para o vizinho reino da Jordânia.

Desde a invasão do Kuwait, então descobriu-se, o Iraque desenvolvia um urgentíssimo programa para produzir uma única bomba nuclear até o primeiro trimestre de 1991. Com 50 ultra centrifugadoras a gás interligadas, como numa cascata, 13,7 quilos de urânio russo e 11,9 quilos de urânio francês, destinados a pesquisas, deveriam ser enriquecidos ao ponto de detonação.

A ONU renovou seu interesse por Schaab enquanto crescia a última ameaça de guerra no Golfo, em fevereiro. Os inspetores ingleses Garry Dillon e Trevor Edwards, vindos de Viena, foram do Galeão para a Polícia Federal. Tórtima participou do encontro com sua filha, Fernanda, que fala inglês. Ao reconstituí-lo, porém, ficam faltando detalhes essenciais. “Perguntaram a origem de um equipamento que encontraram recentemente em Bagdá”, ele lembra. Era o que queriam saber, principalmente. “Da Rússia”, esclareceu Schaab. Os ingleses apreciaram a resposta com exclamações.

A reunião acabou praticamente em seguida, de repente, quando foi mostrado um videoteipe em que Schaab aparece de peruca, dando uma entrevista. “Ele ficou injuriado, não querendo mais conversa”.

Negada a extradição, livre, Schaab só saiu da Polícia Federal ao entardecer, depois que Tórtima tomou “muitas” precauções não reveladas. E passou à clandestinidade. “Foi uma operação de guerra”, descreve o advogado, embora uma testemunha policial não tenha observado nada de especial na praça Mauá. Agora ele diz: “Fui alertado de que serviços secretos europeus e israelenses estão na mira. Tentarão a extradição na marra”.

Levantar âncora!

No verão europeu de 2013, fui com mulher e filha

comemorar a vida depois de vencer um câncer

na bexiga. Alugamos um barco, compramos vinhos e

queijos, e subimos um canal francês até perto da

Alemanha. Aprendemos a pilotar navegando.

Tão boa a aventura que a compartilho

aqui como sugestão de viagem imperdível.

(Reproduzo as páginas do Diário do Comércio, ampliáveis

para leitura, porque não encontrei mais o texto no computador). 

Viva a vida!Gare de Saverne, o porto de partida.
Gare de Saverne, o porto de partida.
Primeiro encontro com o Ostwald

Primeiro encontro com o Ostwald

Bicicletas e Wi-Fi a bardo

Bicicletas e Wi-Fi a bardo

Navegar (e namorar) é preciso...

Navegar (e namorar) é preciso..

Noite:  encomendar croissants entregues no barco.

Noite: encomendar croissants, entregues no barco de manhã

Fazendas e...

Fazendas e…

Andar térreo. A escada leva aos dois quartos.

Andar térreo. A escada leva aos dois quartos.

...pequenas cidades à beira do canal

…pequenas cidades à beira do canal

O roteiro

O roteiro

Salue!

Salue!

penichette

penichette1

7½ minutos de horror: pais matam a filha Palestina.

Montagem: MRGRDY7787.BLOGSPOT

Montagem: MRGRDY7787.BLOGSPOT

Há um ano a brasileira Maria Isa morreu num presídio do Missouri, nos EUA.

Seu marido palestino morreu antes dela, em 1997, de diabetes, enquanto

esperava ser executado, no corredor da morte. Os dois mataram com

seis a oito facadas a filha de 16 anos, Palestina, porque ela os “desonrou”,

voltando-se mais aos costumes ocidentais que à Meca. O crime foi gravado pelo

FBI, que só transcreveria a fita depois. Os gritos de Palestina horrorizaram

o júri e os Estados Unidos. A familia Isa era monitorada sob suspeita de terrorismo.

Afinal, entre seus membros, havia um Hitler, um Saddam, Arafat, Hussein,

além da Palestina. E estava ligada  ao grupo do terrorista Abu Nidal.

St. Louis, Missouri, 1992 — A um mês da condenação à morte ou à prisão perpétua, e no dia do segundo aniversário do assassinato da filha de 16 anos, a brasileira Maria Isa parecia feliz experimentando um novo tênis branco enquanto lamentava ser “vítima de um complô dos serviços secretos americanos” ao repórter que a visitava no presídio de St. Louis, no Missouri.

“Até que enfim acertaram meu número!” – disse Maria à guarda que esperava de pé com a caixa de tênis à mão. Ela trazia no peito, como medalhas, as fotos de seus dez netos distribuídas em três enormes botões sobre o uniforme azul de presidiária. Foi a última dos presos a entrar no corredor das visitas. E suspendeu o sorriso ao ver um estranho ao lado da sobrinha.

Sarrafi, sarrafi” – explicou Ahlah Matias, filha de Iracema, a irmã de Maria que também vive nos Estados Unidos, em Ohio. Sarrafi quer dizer repórter, em árabe, uma presença expressamente proibida no presídio pelo diretor de Segurança Pública de St. Louis, William Kuehling. “Uma antiga política”, ele mandou dizer ao fechar a porta à imprensa. O convite partiu de Fátima Abdeljabbar, uma das filhas de Maria e Zein Isa, que está preso na cadeia do centro de St. Louis. “Entra comigo no horário de visita. Diz que é um amigo da família. Só precisa provar que mora fora do Missouri”.

Um vidro blindado separa os visitantes e prisioneiros. Alguns se beijam, e se tocam, como se ele não existisse. Mas para falar, mesmo com rostos colados, precisam de um telefone. Ahlah passa ao repórter o telefone e os 20 minutos a que tem direito. Fátima, com os quatro filhos de três meses a oito anos, espera do lado de fora a abertura das grades para a próxima sessão de 20 minutos, a última da noite. As duas filhas de brasileiras casadas com palestinos usam véu na cabeça e seguem com fervor o islamismo. Maria, não. Ela é católica. Mas aprendeu a conviver com a primeira esposa do marido, Foizia, ao mudar-se de Santa Catarina para a aldeia de Betiim, na Cisjordânia. Muitas esposas só descobrem que são mais uma no harém quando vão conhecer o Oriente Médio. Alguns homens casam até quatro vezes.

“Gostei muito da Palestina” – diz Maria, 48 anos. “Bom demais para mim. Eu trabalhava no armazém de Zein, e Foizia cozinhava. Uma vez ela veio aqui na América. Aí cozinhei para ela um dia, porque nos outros nosso marido a levou para jantar fora. É como uma grande amiga minha”. Fátima acha que os palestinos devem sentir uma certa atração especial pelas brasileiras. “São mulheres fortes”, acrescenta. “Só na aldeia de Deir Debuar, em Ramallah, viviam mais de 15 brasileiras havia nove anos. Imagina agora?” A embaixada do Brasil, em Tel-Aviv, em 1983, tinha uma lista de brasileiras que queriam ser repatriadas que “daria para lotar um Jumbo”, como dizia um diplomata.

Palestina, 16 anos. Reprodução: Murderpedia.

Palestina, 16 anos. Reprodução: Murderpedia.

Maria gostou tanto da Palestina que à última filha chamou Palestina. “A terra perdeu o nome, e aí demos o nome à nossa filha”. Todos a chamavam de Tina. Era uma das melhores alunas da escola Roosevelt. Jogava futebol como um menino de rua do Brasil. Já trabalhava á noite no balcão do Wendy’s, um rival do Mc Donald’s. E namorava Cliff Walker, um rapaz negro de 20 anos. “Um homem pode ter quantas mulheres puder alimentar”, explica Fátima, “mas uma muçulmana só deixa os pais para casar, e com outro muçulmano, muitas vezes um primo”. Tina estava mais voltada para Nova York do que para Meca. E Maria não entende: “Nós a criamos tão bem…O pai comprava uma dúzia de roupas para revender só para tirar uma para Tina, quando moramos em Porto Rico”. Para a família, ela era uma rebelde. A prima Ahlah diz que gostaria de ter um pai como Zein, “tão bondoso, tão preocupado com as filhas”. Outra prima, Sausan Nijneh, acrescentou: “Dava tudo que ela queria. Até prometeu enviá-la para um curso de francês em Paris. Uma ingrata!”

A prima Nijneh mora na rua Delor 3757, diante do apartamento em que Palestina foi assassinada a facadas em 6 de novembro de 1989, ao voltar do trabalho no Wendy’s, durante uma discussão com os pais. A parede da sala é decorada com uma grande bandeira vermelha, preta, branca e verde da Palestina. “Vermelha pelo sangue”, ela comenta. E prevê que a paz no Oriente Médio só será concluída quando “um rio de sangue correr à altura do joelho”. O chaveirinho sobre a mesa tem as cores palestinas. A mesquita, numa foto, é a de Al-Aksa, em Jerusalém. E o nome do sobrinho de 16 anos sentado no sofá já lhe rendeu uma prisão em Israel e muitos problemas nos Estados Unidos: Hitler.

“Mas me chamam, aqui, de Hassan” – explica Hitler. “Meu pai escolheu o nome porque Hitler odiava judeus, e os judeus ocupam a minha terra, a Palestina”. Nijneh também não faz distinção entre judeus e israelenses. “São todos iguais, e oprimem nosso povo”. E ela acha que o governo americano “é judeu”. Então, nem chega a ser muito surpreendente que o FBI tenha recebido ordens de escutar a família Isa. “Para os Estados Unidos qualquer palestino pertence à Organização de Libertação da Palestina”. Ela própria não está muito pró-OLP, atualmente, por causa do diálogo iniciado com Israel, na conferência de paz de Madri. Uma vez um vizinho a procurou para advertir: “Cuidado com as paredes”. Os telefones davam sinais de que tinham ouvintes extras. O promotor-assistente Robert J. Craddick supõe que a escuta deveria ser feita perto do apartamento, talvez noutro ao lado, ou no de um andar acima, mas não ao “vivo”, por causa da mistura de português, árabe e inglês que exigia uma tradução especializada. O FBI nada comenta.

Maria Isa. Foto New York Daily.

Maria Isa. Foto New York Daily.

Maria diz que nunca viu o marido levantar qualquer suspeita de militância terrorista nos 27 anos em que estão casados. E o defende: “Um brasileiro deve jogar pelo Brasil. E a religião de Zein não é ruim”. Ela ficou muito revoltada com o FBI, não só por ter escondido microfones em seu apartamento, mas porque “editou” a gravação apresentada no julgamento. A transcrição a acusa de mandar Tina “calar a boca” quando grita desesperadamente por ajuda, enquanto esfaqueada pelo pai. São 7,5 minutos de absoluto horror. Veteranos do tribunal de St. Louis choraram ao ouvir. As redes de TV se negaram a por no ar. Os jurados recomendaram a pena de morte para o casal Isa. O promotor Craddick teme não se livrar do “pesadelo” que povoa agora seus sonhos “pelo resto da vida”.

“Nada disso é verdade”, assegura Maria.

– Então, o que aconteceu?

Maria: Não vi. Por isso, não sei.

– Como não viu? A sua voz está na gravação…

Maria: Meu marido gritou comigo. E caí no chão. Por isso não vi.

– O júri recomendou para você e o marido a sentença de morte…

Maria: Isso não está certo. Querem apenas castigar meu marido. A gravação foi fabricada e não deveria ser ouvida pelos jurados.

– Você acha que será executada?

Maria: Espero que me expulsem para o Brasil.

Fátima e Ahlah ficaram surpresas com a esperança da mãe. Não a tinham ouvido até então. Mas não acham que exista alguma perspectiva de deportação. A mobilização da opinião pública brasileira “não adiantará neste caso”, como antecipa o promotor Craddick. “Não há nada que o Brasil possa fazer”. Para ele, o sangue na roupa de Maria prova que ela segurou a filha enquanto o marido a esfaqueou seis vezes. O advogado de defesa, Charles M. Shaw, explica o mesmo sangue de outra forma: a mãe superprotetora colocou-se entre o pai e a filha. E conclui: “Maria não é culpada de nada, só de ser casada com Zein Isa”.

Maria contou que está em campanha contra o FBI dentro do presídio. “Agora que falo melhor inglês, explico a todo mundo o que fizeram comigo”. No tribunal, chorou quando o júri recomendou que ela e o marido sejam executados. Mas agora “não sofre mais”, como acrescentou. “Minha mãe talvez venha me ver. E acho que vão me tirar da pena de morte, porque Zein assumiu toda a responsabilidade pela morte de Tina”. A Sra. Jacunaima Magani Matias, de 70 anos, nunca saiu do Mato Grosso nem viajou de avião, mas talvez esteja em St. Louis até antes do dia 13 de dezembro, quando o juiz Charles A. Shaw, xará do advogado de defesa, anunciará a sentença.

Zein, 60 anos, está com quatro úlceras na perna e é diabético. Ele também contesta a gravação do FBI. Nela não aparece um detalhe que ele acha muito importante: Tina lhe pediu US$ 5 mil, e com uma faca na mão. O namorado, Cliff Walker, estaria na rua esperando. Foi só então que o pai pronunciou a ameaça que provocou arrepios entre os jurados: “Você vai morrer esta noite”. E conta: “Forcei a faca na direção dela, e ela caiu. Lutamos no chão”. Aí ele pôs o pé na boca de Tina para calar os gritos. Não se lembra quantas vezes a apunhalou, talvez seis, ou oito vezes. O FBI examinou a transcrição das conversas da família Isa depois do assassinato. O promotor Craddick imagina um cenário cinematográfico: um detetive abre o jornal e vê que ocorreu um crime numa casa “grampeada”. Vai pesquisar, e encontra tudo gravado. “Esse foi um caso excepcional”, ele acrescenta. “Uma escuta sempre é dirigida. A polícia só pode ouvir o que um juiz autorizou. Se está a procura de drogas e surpreende uma trama para um assalto, não pode intervir”.

Quem ouvisse as conversas telefônicas entre Zein, Maria e as filhas casadas não teria dúvidas de que Tina estava condenada à morte. Uma frase do pai, por exemplo: “Ela se tornou uma mulher queimada, uma p… negra, e a única forma de limpá-la será através de seu sangue”. Outra: “Se Tina morrer, vou alegar legítima defesa. Colocarei uma faca em sua mão depois que ela cair”. Um comentário de Fátima, uma irmã: “Se Deus me der um desejo, vou enterrá-la num caixão”. Outra irmã, Soraia Salem, sugeriu que Tina fosse acorrentada no porão, e seu passaporte enviado para a Palestina. O pai completou: “Vou é mandá-la dentro de um caixote”. Toda a família sentiu-se desonrada com o namoro e o trabalho de Tina. “Foi um sacrifício”, concluiu a promotora Dee Joyce-Hayes. Mas ela pediu que os jurados não justificassem o crime com a religião. “Muitas coisas ruins já foram feitas em nome do cristianismo ou do islamismo”.

Maria saiu da solitária em que permaneceu durante o julgamento para um salão onde dorme com outras 50 mulheres. Sua pena seria comutada por prisão perpétua. “Só tenho aqui dentro uma inimiga, uma policial que me xinga o tempo todo. Os outros me tratam muito bem”. Quando for sentenciada, dentro de um mês, ela poderá ser removida para o corredor da morte do sistema penitenciário do Missouri. Mas ela diz que não está “sofrendo” com a antecipação: “Sou a única a fazer o rosário aqui”, ela conta, orgulhosa. Em sua cela, no centro da cidade, Zein também reza as cinco orações do dia voltado para Meca, na Arábia Saudita. A família espera a sentença pronta para se mudar para a Palestina assim que ela for criada. “A Palestina é a coisa mais importante em nosso coração”, diz Fátima.

zein1Por trás de cinco grades de uma superprotegida cadeia está o homem que espera a morte por ter matado a filha. E o palestino-brasileiro-americano Zein Isa diz que só quer mais um favor da vida: “Não executem minha mulher, Maria”.

Ele repete várias vezes, com o sotaque que troca “p” por “b”: “Boubem Maria, boubem Maria. Ela deve ser debortada bara o Brasil. Eu só matei Balestina, porque ela me atacou com uma faca”. Palestina, 16 anos, nascida em Cáceres, no Mato Grosso, foi enterrada aqui, em St. Louis, no Missouri, há dois anos, mas num cemitério católico, porque uma muçulmana não pode “levantar a mão contra o pai sem desonrá-lo”, e vestida toda de branco, com um véu de noiva.

A metade do rosto de Zein Isa, 61 anos, é visível pela janelinha da última e pesada porta de ferro da Cadeia Municipal do centro de St. Louis, uma cidade embranquecida pela neve que caiu durante toda a noite. Está num cubículo, e mal pode dar um passo atrás para ficar com o corpo inteiro à mostra. Ele diz que sofre com quatro úlceras numa perna. Manca, e pede o fim da visita mesmo de filhas porque “dói muito manter-se em pé”.

Até chegar aqui, um visitante passa por um exame de documentos, revista pessoal que extrai da roupa até a carteira, um vistoria no sapato, e uma, duas, três e quatro portas gradeadas pesadas que vão se abrindo por controle remoto ou manualmente. Um policial está sempre por perto. Os jornalistas não podem entrar.

Zein Isa repete o que Maria contou numa entrevista em seu presídio fora de St. Louis. Palestina era “a filha mais querida” entre os seis filhos de suas duas esposas. A outra mulher, Foizia, está em Betiim, na Cisjordânia, onde a família viveu por algum tempo, mas infeliz com a ocupação israelense. A nova geração vai carregando nos nomes o protesto contra Israel. A filha morta era Palestina. Um sobrinho de Isa foi batizado de Hitler. Um neto, de Saddam, “o único que acertou os judeus”, com os misseis Scud durante a guerra no Golfo. Outro primo que vive em Ohio, filho da brasileira Iracema, é Arafat, em homenagem ao líder da OLP. E ainda há mais um prêmio á Saddam, um outro sobrinho de Ohio chamado Hussein. Dentro das casas o que enfeita as paredes são bandeiras vermelhas, verdes, brancas e negras da OLP, fotos das mesquitas de Jerusalém e mapas árabes de Israel.

Zein Isa, porém, nega qualquer ligação com algum grupo terrorista palestino. “Basta ser palestino para se tornar um suspeito nos Estados Unidos”, ele diz pelas três pequenas aberturas abaixo da janelinha na porta de ferro. A família Isa demonstra uma desconfiança recíproca com os judeus. “Você chama Mussa (Moisés, em árabe)? Ainda bem que você é brasileiro, porque não confiamos nos judeus…” E judeu, para as filhas de Isa, fervorosas islamitas, pode ser até mesmo o governo americano, quando ele se inclina a favor de Israel. O FBI manteve a família sob vigilância durante dois anos, com microfones em suas casas.

Palestina, assassinada. Foto:  Murderpedia

Palestina, assassinada. Foto: Murderpedia

A morte de Palestina, com seis facadas, há dois anos, foi uma tragédia cultural. Zein Isa não concordava com que a filha trabalhasse, namorasse e fosse independente, ao contrário das irmãs que se casaram com palestinos. “O namorado era negro, mas podia ser branco, marrom, amarelo. Foi um caso de honra”, diz a família. Fátima, ali na cadeia com o pai, ainda acrescenta: “Mas como o juiz foi negro, aqui nos Estados Unidos logo se atribuiu o assassinato a um preconceito racial”.

Zein Isa concorda fazendo sim com a cabeça. Palestina estava comprometendo “a honra dela própria, da mãe, do irmão, de todo o mundo, até dos netos”. Fátima não tem dúvidas de que a única vítima do assassinato da irmã foram os pais. “Fazia anos que o FBI nos escutava. Desde 1987 vigiavam. Por que não foram sacudir essa guria que queria acabar com papai? Não, não. Deixaram meu pai matar a filha apenas para pegá-lo, apenas porque achavam que ele tinha conexão com a OLP”.

A família Isa, em Betiim, é conhecida. Quando o pai de Zein morreu, “toda a cidade chorou”. Um homem assim tão respeitado não pode ser desonrado. “Na Arábia não é feio um pai matar a filha”, diz outra irmã de Palestina, Aziza. “Aqui nos Estados Unidos as moças podem andar na rua, bebem droga, bebem bebida alcoólica, fumam, fumam marijuana e dormem com outros rapazes antes de casar. Ficam grávidas. Vendem filhos para comprar drogas. Nos somos gente árabe, que tem cultura e que tem honra…”

Fátima interrompe a irmã Aziza para perguntar: “Você sabe o que é honra para o americano? Vou lhe dizer: honra é não mentir para o Imposto de Renda”. E ela acrescenta: “Se meu pai tivesse matado Tina no Oriente Médio o máximo de cadeia que pegaria, se pegasse, seria uns cinco anos. Muita gente pediria a Deus para lhes dar um pai como o meu pai. Tina tinha o melhor dos pais. Ele a encheu de roupas caras. Uns sete mil dólares só de roupa. E para o enterro ainda lhe compramos um vestido de noiva de 750 dólares”.

Zein Isa diz pela janelinha: “Não me breocupo em morrer”. Está magro, foi operado da perna uma vez no ano passado, mas as úlceras o atacaram de novo. Passa o tempo solitário, lendo o Corão e fazendo cinco orações diárias curvado para Meca. Depois do julgamento, com a condenação a morte que deve ser confirmada dia 13 de dezembro, ele passou a ter pressão alta. Em sua casa de Betiim, na Cisjordânia, que “vale 77 mil dólares”, ainda vive um filho pediatra e a outra esposa. Se pudesse voltaria agora para a Palestina, de onde saiu porque não encontrava trabalho e se indignava em viver sob ocupação israelense.

Aziza e o pai aproveitam o final dos 20 minutos da visita para falar em árabe. O assunto é o destino de Maria. A família está em campanha para transformar em prisão perpétua a recomendação dos jurados para que seja também executada. Outra possibilidade que vem sendo explorada é a de uma eventual deportação para o Brasil. Ela optou por se manter brasileira, ao contrário do marido, naturalizado americano, e só tem como documento um passaporte brasileiro. “Ajudem Maria”, apela Zein Isa. “Ela não me ajudou a matar Tina. Eu sozinho a matei. Ela apareceu com uma faca na minha frente…Foi legítima defesa”. Na gravação do FBI, porém, a voz de Maria é audível entre os gritos da filha. Num momento ela até diz: “…vai tarde”. Na transcrição oficial não consta esta frase, considerada “inaudível” pela tradutora do português.

Os 7,5 minutos de gravação foram a principal prova contra Zein e Maria, no julgamento. Cada um foi defendido por um diferente advogado, com a esperança de que fossem julgados separadamente. Mas houve um só júri, e uma recomendação única: pena de morte. As crianças da família Isa aprendem que “os avós estão presos, e às vezes surgem na televisão, por causa de uma filha desobediente, Tina”. Fátima contou a seus filhos: “Tina levantou a mão contra o avô. E o avô bateu nela. E ela morreu”. É o que aprenderam também os filhos de Aziza: “A menina que mancha a honra da família deve ser punida”. A desonra de Palestina foi a de querer se tornar uma adolescente americana, e não muçulmana. A de namorar um rapaz que não a queria em casamento, mas só para um namoro de adolescência. A de querer trabalhar e ser independente numa família em que as meninas são criadas para se devotar aos maridos e filhos.

“A menina muçulmana é como uma flor”, explica Aziza. “Se as pétalas caem, ela não vale o vaso de cristal”. Tina se tornou o exemplo da desobediência na família Isa. No segundo aniversário do assassinato, ninguém foi visitar o seu túmulo. Na véspera, as filhas visitaram a mãe, Maria. E depois Zein, o pai. Choraram muito ao sair, porque o superintendente do presídio comunicou o corte das visitas aos domingos, e manteve apenas duas por semana, na terça e sexta-feira. Amparada pelos filhos, o rosto contorcido de dor, Fátima explicou: “Acharam que três visitas são um privilégio para quem logo será transferido para o corredor da morte”.

O namorado esperava

Palestina na rua.

Mas ela não voltou.

O rapaz acusado de “virar a cabeça” da adolescente brasileira Palestina Isa, pivô da “desonra” lavada com um brutal assassinato, contou que os dois “nunca tiveram uma relação íntima”, nem estavam pensando em se casar. “Ela tinha 16 anos…Só queria um amigo para ir ao cinema, dançar”, disse Cliff Walker, o namorado negro de Tina, através do promotor Robert J. Craddick.

As irmãs de Palestina continuam acusando Cliff Walker: “Tina era uma menina muito boa até que conheceu esse rapaz preto. A Tina bonita que amávamos morreu um ano antes da morte, um ano antes de ser enterrada” – disseram Fátima e Aziza, que defendem os pais, Zein e Maria, pelo assassinato. E Fátima ainda repetiu ontem: “Se meu pai vai morrer porque defendeu a honra de Tina e da família, terá um grande prazer. Se vão executá-lo porque ele é palestino, terá muito orgulho. Para meu pai será um prazer morrer como um homem honrado”.

Cliff Walker, hoje com 20 anos, não quis aparecer pessoalmente para uma entrevista. O promotor Craddick explicou que ele “está procurando superar o doloroso passado, recomeçar a vida”. Saiu da escola Roosevelt, trabalha meio período e procura um emprego de tempo integral. “Mas aqui, em St Louis, um adolescente negro tem 50 por cento de chances de conseguir uma boa colocação”.

Fátima o chama de “vagabundo”. Diz que ele agora está namorando Mariane, a melhor amiga de Tina. E que os dois sumiram sob proteção policial, “porque pensam que estejam ameaçados de morte”. E acusa: “Esse rapaz não é nenhum homem. Se fosse, teria ido salvar aquela menina”, ou “aquela guria”, como tem chamado a irmã, evitando um nome sagrado como Palestina. Tina entrou em casa em 6 de novembro de 1989, após a primeira noite de trabalho num restaurante, esperando uma recepção tão ruim dos pais que pediu ao namorado, Cliff: “Espere um pouco. Se ouvir gritos, voltarei”.

Tina não voltou. Foi esfaqueada seis vezes pelo pai, Zein, enquanto a mãe, Maria, a mandava “calar a boca”, segundo a transcrição da escuta feita pelo FBI no apartamento da família Isa, sob suspeita de ligações com grupos terroristas palestinos. O trabalho fora, o namoro e a americanização de Tina entre fervorosos muçulmanos somaram-se para a decisão anunciada por Zein: “Ouça, minha querida filha, você sabe que este é o seu último dia? Esta noite você vai morrer…” Maria já tinha ido á escola Roosevelt avisar que Tina não mais a frequentaria como “um castigo pelo namoro”. E para o pai “a honra da família só poderia ser lavada com sangue”, com um sacrifício.

O promotor Craddick falou com Cliff Walker: “O que nos parece é que a família Isa continua tentando desculpar o que fez. Acusaram primeiro Tina, porque ela agiu sozinha. Agora acusam Cliff. Ele é que teria virado a cabeça de Tina. Isso é tendencioso. Estão sempre alegando que o assassinato ocorreu porque foram provocados. Cliff não fez nada com Tina. Ele nunca a influenciou a desrespeitar a família. Os dois sempre entenderam muito bem a diferença de culturas que os separavam. Tina só queria fazer o que as outras garotas faziam. Ter controle do próprio dinheiro, e foi por isso que começou a trabalhar. E namorar”.

A família Isa desmente que os problemas com Cliff surgiram porque ele é negro. “Podia ser marrom, branco, amarelo”, explicou Fátima. “Uma muçulmana não tem namorado”. Mas o promotor Craddick constrói uma frase curiosa para discordar: “Não aceitavam que Tina namorasse ninguém, e muito menos um negro”. Ele também desmente que Cliff tenha recebido uma oferta de um dote de US$ 5 mil para casar com Tina. “Isso simplesmente não aconteceu porque os dois não contemplavam um casamento. Nem eram íntimos…”

Tina não era “sexualmente ativa”, acrescenta Craddick, baseado em Cliff e no depoimento feito por amigas durante o julgamento. “Temos razões para acreditar que Tina era virgem”. O namoro nunca evoluiu para uma relação mais profunda. A família a enterrou como uma noiva, toda vestida de branco, e não voltou mais ao túmulo, nem nos dois primeiros aniversários da morte. Convidada a ir ao cemitério, Fátima respondeu: “Eu, não. Pra que? Mas se você for, ore por ela, que tanto faz sofrer nossos pais”.

Cliff não namora Mariane Paladino, a melhor amiga de Tina, como denunciou Fátima. Ela também não quis aparecer pessoalmente para uma entrevista. O promotor Craddick, que a conhece “muito bem”, explicou: “Você pode imaginar que as duas pessoas mais próximas de Tina tiveram que testemunhar no tribunal. E ficaram muito próximos. Foram vistos muitas vezes na sala da promotoria. Mas não são namorados. Mariane não se recuperou psicologicamente a ponto de namorar ninguém. Ela está passando, realmente, por um tempo muito difícil”. Os dois também não estão sob proteção policial, “embora tenham medo da vingança de uma família que foi capaz de matar a própria filha”, desde que a desmentiram no julgamento.

Fátima foi avisada de que o Ministério da Justiça no Brasil se proclamou impotente para tomar qualquer iniciativa pela brasileira Maria. Mas insistiu que vai ainda escrever uma carta ao consulado brasileiro em New Orleans. Ela quer uma opinião oficial contra o julgamento único para os pais numa tentativa de levar a mãe, sozinha, diante de outro júri. Zein confessou o assassinato, alegando legítima defesa. Pela sua versão, ele é que foi atacado por Tina com uma faca. Maria diz que desmaiou, e não viu nada. A gravação com a voz dela pedindo á filha para se calar “foi fabricada pelo FBI”. Os jurados recomendaram a pena de morte para os dois. E um juiz deve confirmá-la no dia 13 de dezembro.

“Aqui, geralmente, o juiz aceita a sentença pedida pelos jurados” – prevê Craddick. E ele só terá duas opções: a pena de morte ou a prisão perpétua. Só depois do veredicto é que os advogados de defesa terão 25 dias para apelar.

A gravação do assassinato da adolescente Palestina Isa pelos pais pode ser parte de uma investigação do FBI sobre lavagem de dinheiro, e não somente uma precaução contra a eventual militância da família em grupos palestinos terroristas.

O FBI não dá nenhuma pista dos objetivos que o levaram a instalar sofisticados instrumentos de escuta na casa de Zein Isa, em 1987. Mas uma fonte ligada ao processo do assassinato de Palestina, na Corte Municipal de St. Louis, disse ontem que “a família trabalha em armazéns que podem servir para lavar pequenas quantias de dinheiro”.

Aziza, uma das filhas de Zein e Maria, explica que o seu marido é empregado num armazém, e que os maridos das irmãs Fátima e Soraia trabalham em armazéns próprios, em St Louis e Kansas City. O armazém do pai foi vendido para pagar as despesas dos advogados de defesa, US$ 30 mil até agora, mas a comunidade palestina local e os amigos da aldeia Betiim, na Cisjordânia, doaram outros US$ 15 mil. O que sobrar vai ser usado para as despesas com o apelo previsto logo depois que sair o veredicto, no dia 13 de dezembro.

A suspeita de atividade terrorista pode ser justificada pelo radicalismo dos Isa, mas um líder da grande comunidade judaica de St. Louis contou que não se lembra de nenhum problema com os imigrantes palestinos. O promotor Robert J. Craddick confirma: “Não estou sabendo de nenhuma ação da OLP por aqui, mas o FBI considerou os Isa muito importantes para os ouvir permanentemente”.

Aziza lembra como a família ficou sabendo que estava sendo espionada. “Em 1987, um rapaz que trabalhava no conjunto de apartamentos em que morávamos foi ao bar do meu cunhado, e revelou que alguns policiais entraram em nossa casa e puseram aparelhos de escuta dentro. Os agentes do FBI tinham alugado um apartamento em frente, de onde monitoravam a escuta. Minha irmã Soraia revirou sofás, móveis…todos os lugares em busca dos microfones, e nada encontrou. Papai brincou: querem escutar minhas filhas brigando umas com as outras? Tudo bem, fiquem à vontade”. Para ela, a única explicação possível é a de que são palestinos. “E palestinos, para o FBI, são todos terroristas”.

Fátima interrompeu várias vezes uma conversa telefônica para perguntar: “Está ouvindo? Eles estão na linha…” Ela ainda denunciou que sua correspondência é aberta. E lembrou-se de algo ocorrido há cinco anos, sem estabelecer nenhuma ligação com a vigilância do FBI. “O irmão da caixa que trabalhava no armazém de meu cunhado matou outro homem por causa de droga. E a casa dele, da mãe e dos irmãos passaram a ser também escutadas”. Mas o pai nunca se envolveu com drogas, ela acrescentou. “Acontece que todos os árabes são vigiados. Podem vigiar o quanto quiserem…Não estamos fazendo nada contra a lei, nem contrabando”.

Quem administra o dinheiro que sobrou da venda do armazém de Isa é um cunhado, que vive em Chicago. “O pai confia muito nele”, diz Aziza. “É o genro mais velho”. A família tem uma trajetória considerada também interessante pela mesma fonte que levantou a suspeita de que a escuta do FBI pode ser parte de uma investigação sobre lavagem de dinheiro. Zein e Maria se casaram em 1962, no Brasil, e desde então vivem viajando. Já estiveram em New Jersey, depois na Carolina do Norte, e então se mudaram para Porto Rico, para a Cisjordânia, voltaram ao Brasil, de novo a Porto Rico, até que se instalaram em St. Louis. Só depois se descobriram as ligações de Zein com o grupo terrorista de Abu Nidal, responsável por ações espetaculares dentr e fora do Oriente Médio.

“Deve ser lavagem de dinheiro, mas coisa pequena”, acrescentou a fonte. Ela teve acesso a várias transcrições das gravações do FBI, mas “só quis saber o que se relacionava com o assassinato de Tina”. Os gritos que Tina deu enquanto morria foram fulminantes para a decisão unânime dos 12 jurados. E um reexame cuidadoso da gravação demonstrou que a brasileira Maria não pode ter desmaiado enquanto a filha era esfaqueada, porque ela comenta bem claramente: “…já vai tarde”.

Veja também: a brasileira que ajudou matar um soldado israelense.

Yasser Arafat: exílio no continente perdido.

Foto AlJazeera

Foto AlJazeera

A primeira vez que estive a cinco metros de

Yasser Arafat foi quando ele se despedia de Beirute,

derrotado na guerra de 1982 contra Israel.

Segui-o até a entrada do porto. onde o esperava o navio

Atlantis, que o levaria para o exílio na Tunísia.

Em comum, Arafat e Atlantis

simbolizavam um continente perdido.

Bandeira do Al Fatah

Bandeira do Al Fatah de Arafat

Beirute, 30/8/1982 – Foi uma tumultuada operação-resgate, e não a cerimoniosa despedida que estava preparada. Yasser Arafat, de uniforme verde-oliva, kefiah enrolada na cabeça, desceu de sua limusine preta para passar em revista uma guarda de honra da OLP, e uma multidão o envolveu, levantando câmeras e armas de todos os tipos.

Pela primeira vez, eu me encontrava a cinco metros de Yasser Arafat, e em Beirute oeste, onde penetrei, quase clandestino, pela manhã, e sem passaporte, porque nele havia carimbos de entrada e saída de Israel suficientes para que fosse condenado como espião, pela OLP.

Os palestinos gritavam em coro, suspendendo e abaixando fuzis, metralhadoras, pistolas e lança-granadas:

“A revolução vencerá”.

No local da cerimônia, na fronteira oeste-leste do porto de Beirute, havia uma grande poça de esgoto. E como a festa de despedida tumultuou, ela se transformaria no tapete vermelho comum a todos, mesmo para Arafat.

Antes, às dez da manhã, os poucos jornalistas que chegaram a área oeste do porto, atraídos pelos rumores da partida do chefe da OLP, foram reunidos, ao lado do “Hotel Normandy”, pelos guerrilheiros palestinos e pelos Mourabitoun — as milícias pró-nasseristas que agora mandavam aqui, bem armados. E pudemos ver o Atlantis, branco, navegando para o porto de Beirute entre os navios de guerra franceses e norte-americanos.

Uma tropa da Legião Estrangeira da França esperava, num tanque e num caminhão, recebendo ordens diretas do embaixador francês no Líbano, Paul Marc Henry, de terninho azul molhado de suor, se­guido de muito perto por guarda-costas de metralhadoras e revólveres engatilhados. Um mourabitoun, em cima de um jipe com bateria antiaérea, parecia ansioso para dar o primeiro tiro da festa de despedida. Apontando para o mar, a rota do êxodo, ele dizia, otimista:

-A revolução palestina continuará seu caminho.

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Uma outra placa, bem humorada, nos escombros de uma loja completamente arrasada por bombardeio aéreo, anunciava: “Crisis Tourism”, ou turismo da crise, imposto por Israel aos guerrilheiros da OLP. Uma criança de três anos tentava empunhar um fuzil kalachnikov maior do que ela, incentivada pelo pai, para a alegria dos fotógrafos. Quando a deixou cair, ela ficou apontada para a mãe, que correu para sair da mira.

Quem atinge o porto, deste lado oeste, chega já sem referências para medir a destruição geral. Beirute parece ter sobrevivido a um cataclisma. Toda a cidade exibe as marcas da violenta guerra, bombardeada por aviões, por barcas lança-mísseis e pelos canhões de artilharia. Os hotéis antes famosos, à beira-mar, são ruínas. O lixo se amontoa por todos os lados. E é difícil encontrar alguém desarmado. Ao contrário, muitos estão constantemente com os dedos no gatilho. Vi um tanque T-54, soviético, pertencente a OLP, ao lado do ex-Hipódromo, cujo cano fundiu, de tanto disparar. E vi também muitos caminhões lança-mísseis, as katiushas, nas áreas agora sob o controle dos Mourabitoun ou dos militantes da El-Amal, a milícia xiita, pró-khomeinista.

No lobby de um dos hotéis mais famosos da cidade, vendia-se armas a preços de liquidação, 20 a 25 dólares cada. Pés de maconha cresciam na rua, mas só vitrine. Se se tentasse colher algumas folhas, logo surgia o vendedor, dono da plantação.  As lojas reabriram. O centro ficou intransitável de tanta gente com seus carros aproveitando a abertura dos bancos e repartições públicas. Ao contrário de Beirute oriental, decorada com fotos de Bachir Gemayel, o novo presidente, a ocidental parecia renascer para o nasserismo, decorada com fotos do antigo presidente egípcio Gamal Abdel Nasser. Nos dois lados da cidade havia uma nova energia perceptível no ar, o alivio pós-guerra. Apelos à reconstrução e a normalização eram repetidos nas rádios e nos jornais, lembrando que “O Líbano voltará a ser dos libaneses”, quando todas as forças estrangeiras forem embora, em menos de um mês.

Despedida do amigo Wallid Jumblat, o líder druso. Foto: Al-Araby

Despedida do amigo Wallid Jumblat, o líder druso. Foto: Al-Araby

Yasser Arafat partiu depois que os sírios da Brigada 85 começaram a se retirar, por terra, para Damasco. Das 6h11 às 7h43 da manhã, eles saíram pela galeria Semaane escoltados pelos sofisticados Bersaglieri, os soldados italianos emplumados — são várias penas, algumas castanhas, outras verde escuro, pendendo dos capacetes brancos. O desfile contou com alguns tanques velhos sobre jamantas, caminhões lança-mísseis semi-destruídos, e uma grande variedade de veículos militares de transporte, alguns rebocados, todos com as fotos do presidente Hafez Assad e bandeiras da Síria. Logo na saída, cruzavam com bandeiras israelenses, hiçadas durante a noite, sob protesto das forças multinacionais.

Os israelenses viam os 1200 “inimigos” sírios desfilando, discretos, com binóculos, de vários edifícios próximos, e ao longo dos 25 quilômetros até Sofar, no Vale de Bekaa, onde a rodovia passa ao controle da Síria. Num momento, quando surgiu um caminhão de soldados com turbantes vermelhos enrolados nas cabeças, exibindo um grande cartão redondo com a foto do presidente Hafez Assad em meio a flores, uma pequena multidão de libaneses vaiou. Aí, ocorreram as já tradicionais trocas de gestos obscenos

A esta hora, Yasser Arafat seguia para a casa de Wallid Jumblatt, o líder druso dos movimentos de esquerda, para despedir-se. Aqui, comentaria que se sentia “muito orgulhoso” da resistência que seus guerrilheiros opuseram às forças israelenses, durante dois meses de sitio, e revelou, brincando, que pensava acrescentar um “L” à sigla de sua organização.

A “OLLP” se dedicaria à Libertação do Líbano e da Palestina, “ambos ocupados por Israel”. Em sua mensagem aos habitantes de Beirute, na noite anterior, Arafat elogiaria “a resistência heroica diante da agressão israelense”, saudando “a solidariedade libanesa-palestina, na prova mais dura que já conheceu a nação árabe”.

– Nós combatemos juntos e nos sacrificamos para defender o Líbano, esta terra onde viveram nossos ancestrais e onde viverão nossas crianças. Esta terra continuará sendo árabe, e nós permaneceremos unidos, pelo sangue e pelo destino. A história prendeu sua respiração com a gente, observando a epopéia que escreveram os habitantes de Beirute com seus irmãos combatentes, diante da mais infame das máquinas de guerra e de destruição israelense/norte-americana.

O algoz de Arafat, o general Ariel Sharon. Foto: NPR.org

O algoz de Arafat, o general Ariel Sharon. Foto: NPR.org

Aos rumores de que iria partir secretamente, ou mesmo de que já tinha partido, Arafat respondeu que a sua retirada seria pública, “um adeus popular”. Depois da casa de Wallid Jumblatt, ele foi se despedir do primeiro-ministro Chafic El-Wazzan. Ao porto, já chegava o seu vice, Abou Yad, liderando um longo comboio de limusines a prova de balas, protegido por dezenas de guarda-costas, todos vestidos com camisetas cinzas e calças jeans, um grande revólver no coldre às costas, uma metralhadora na mão. Via-se num carro o ex-primeiro-ministro Selim El-Hoss, e, num outro, o mufti Sunita, Hassan Khaled. Todos pararam próximos aos blindados da Legião Estrangeira francesa. Perguntei a um Mourabitoun como se chamava o local.

-Hotel Normandy – ele disse.

-Mas aonde está o hotel?

Com sua bota, ele ficou riscando a poeira no chão: — Virou pó.

Então, ele perguntou quem eu era:

-Sarrafi, Sarrafi (jornalista) – respondi, e antes que insinuasse uma verificação de documentos, acrescentei: “Brasil, Sarrafi Brasil”. O mourabitoun abriu um grande sorriso, e se lembrou da copa do mundo.

-Zico, Izidoro…

medium_3429308312Outros mourabitouns surgiram, acompanhados da polícia militar da OLP, pedindo a todos os jornalistas que se concentrassem mais abaixo, na fronteira oeste-leste do cais, onde uma tropa esperava Arafat para a despedida de honra. Os franceses guardavam a zona do cais que se estende para o leste, onde começa a região controlada pelos marines norte-americanos. Mas havia muitos civis armados, alguns com camisetas de Che Guevara, além dos uniformizados, representantes de várias sub-facções da OLP.

Entre a tropa e a imprensa havia uma grande poça de esgoto. Ao lado, o prédio do banco sirio-libanês, destroçado. E escutávamos, apreensivos, o ruído de aviões bem alto, invisíveis, mas com certeza israelenses, pois o aeroporto estava fechado desde o dia sete de junho, quando a guerra começou.

No “Hotel Normandy” começaram os tiros da festa de despedida, para o ar. Na rua estreita, onde estavam a imprensa e a guarda de honra, parou um caminhão lotado de soldados da OLP que ocuparam posições numa área já inteiramente ocupada, apertada para a cerimônia pretendida. Uma mulher preparou flores, três guerrilheiros enrolaram bandeiras dos vários grupos da OLP que darão para o líder levar em seu êxodo grego e tunisiano. Enfim, as sirenes de um jipe Range Rover, com muitos guarda-costas, anunciou que atrás, na limusine preta, vinha Yasser Arafat.

Ele desceu, e tudo ficou, de repente, muito tumultuado. Muitos queriam beijá-lo, costume comum entre os árabes. Arafat, miúdo no meio de tanta gente, foi avançando lentamente, identificável pelo kefiah (turbante) preto e branco. E entrou na poça de esgoto em que todos acabamos nos molhando.

Seu carro preto abriu passagem, com pessoas até sobre o teto, e quando a porta abriu, os que estavam próximos de Arafat o enfiaram para dentro. Por um cordão de isolamento, a limusine chegou a uma trincheira de sacos de areia, onde a ninguém é permitido ultrapassar, e há empurrões, ameaças de sacar armas. Um jornalista cai deitado no esgoto, e os outros estão sujos até os joelhos. A mulher com flores, e os guerrilheiros com as bandeiras, forçaram inutilmente a entrada.

Arafat partiu para o setor oriental, onde embarcou num navio especial grego, sob proteção americana e francesa, para a Grécia. Os tiros tão aguardados começaram a ser disparados, para o mar. O chão ficou cheio de cartuchos vazios.

O navio era o Atlantis. E seu mais ilustre passageiro se afastava outra vez de sua Atlântida, o continente palestino perdido.

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