Jogo de vida e morte

 

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Arrumava os pertences de meu pai, depois de enterrá-lo. Tinha decidido doar camisas, calças e um terno, tudo tamanho esquisito, porque ele era gordo, mas baixinho. Ia enchendo a única mala que abri sobre a cama, às vezes parando para ler papéis com anotações, documentos pessoais, fotos, contas pagas e a vencer, lista de telefones e recados de quem o procurou. Punha a papelada, picando-a, dentro de um saco plástico. Assustei quando bateram à porta.

A dona da pensão disse que havia um homem na rua perguntando pelo meu pai. Era o bicheiro “responsável” pela área do Catete, no Rio, aonde estávamos.

— Cadê seu Luiz?

— Morreu ontem; foi enterrado hoje. Por quê?

O bicheiro estava mais que espantado — na verdade, assombrado, lívido.

Incomodado com o silêncio demorado, pedi:

— Fala, homem! Sou filho dele, pode falar…

— Bem, o seu Luiz jogou o ano todo num único milhar. Uma vez me contou que era o número da sepultura da esposa dele. Mas não sei… Hoje, deu o milhar. Inteirinho. Na cabeça. Vim aqui saber: por que ele não apostou?

Fiquei eu assombrado também. Meu pai começou no jogo do bicho antes de aprender o português. Fazia pouco tempo que desembarcara no Brasil, fugido do nazismo que crescia na Alemanha. Ele vinha da Bielo-Rússia e minha mãe, de Lod, na Polônia, inconsolável com a morte de seu noivo, formando em Medicina, em um campo de concentração.

— Se não casar comigo, me mato — foi o ultimato de Luzer à Gela, nomes logo abrasileirados para Luiz e Geni. Quando o navio atracou na praça Mauá, no Rio, o casamento já estava acertado. Mas minha mãe jamais superaria a perda do noivo polonês. Suicidou-se anos depois. Nem seus dois filhos já adultos e quatro netos, nem duas internações em clínica psiquiátrica e nem a aposentadoria aonde ela mais gostava de estar, Copacabana, a meio quarteirão do mar, a resgataram do abismo da depressão para a vida. Uma tarde, pediu a meu pai para ir comprar cigarro — e, assim que ficou sozinha, ateou-se fogo, depois de tomar veneno. Queria certeza da morte, sem nenhuma chance de sobrevivência.

jogo-do-bicho-feiraNo bairro Renascença, em Belo Horizonte, meu pai era o terror dos bicheiros, o Rei do Bicho. Ganhava muitas vezes. Qualquer número que lhe chamasse a atenção virava palpite. Acordava de sonhos inspirado, jogo feito. Gostava muito da borboleta, 13. Se visse um cachorro ser atropelado, cravava no 17. Certa vez, quebrou a banca. A notícia correu e o fez famoso entre apostadores, que então lhe pediam sugestões de dezenas, centenas ou de bichos. Se alguém ganhasse com sua ajuda, pagaria-lhe uma porcentagem. “Jogo é jogo” — mandava a a lei. Ele também era invencível no buraco, ou canastra.

Mudamos do Rio porque os irmãos de minha mãe, também refugiados poloneses, estavam aprumando em seus negócios em Belo Horizonte, e estendiam a mão a meu pai, que vendia roupas a prestações principalmente em rendez-vous e na zona, porque “as putas honram o nome, e pagam”. Logo ele abriu uma loja de roupas na Renascença, diante da parada bem movimentada do bonde Ozanã, na rua Jacuí. Depois, atravessou a rua e abriu outra loja, maior, só de móveis. Com a chegada da TV, acoplada às radiolas (rádio + toca-discos), as vendas da Mobiliária Renascença Ltda. dispararam. A primeira filial foi inaugurada no bairro da Graça.

Os bicheiros da Renascença tinham seu quartel-general no final de um comprido e bem estreito corredor, seguido de uma escadaria que dava num emaranhado de salas e quartos. Assim era por causa da polícia. Quando havia uma batida, dificilmente alguém era capturado. Sumiam todos. Às vezes, meu pai me mandava entregar o jogo lá dentro. Só chegava se guiado até a mesa de apostas. Todos nas ruas próximas serviam de alerta precoce aos bicheiros para a presença da “rapa”, a radiopatrulha.

Pedi para ver o milhar que meu pai não ganhou. Confirmei-o com a certidão de óbito da minha mãe, que estava à mão porque a consultara no dia anterior para enterrar meu pai ao lado dela, ou perto, na mesma quadra. Antes de assombrado com a coincidência mágica e inexplicável do milhar do bicho e o da sepultura, unidos pelo meu pai, já estava perturbado por causa de outro fenômeno.

150926165742__85730600_monkey2Quando a dona da pensão no Catete telefonou para avisar que meu pai tinha sido levado de ambulância para uma clínica cardiológica, em Botafogo, “mas que já estava passando bem”, fui de carro de São Paulo ao Rio, sem parar. Peguei a Via Dutra por volta de meia-noite e cheguei com o dia amanhecendo. No caminho senti algo que julguei ser uma premonição, nunca antes vivido. Foi ao cruzar São João do Meriti, na baixada fluminense: frio no estômago, arrepios, calafrio, inquietação — tudo junto. Aí lembrei, ao reconhecer a entrada que leva ao Cemitério Israelita de Vila Rosali: aqui está enterrada Gela-Geni, minha mãe.

Na recepção da clínica em Botafogo percebi algo estranho ao falar o nome do paciente que queria visitar. Estranhei mais ainda quando, em vez de darem o número de um quarto ou a direção da enfermaria ou UTI, levaram-me direto para a sala do chefe dos médicos de plantão. Pior ainda, para completar, o doutor gaguejava.

— Seu pai está bem — ele me tranquilizou, talvez como introdução ao pior. — O paramédico que o examinou diagnosticou que ele estava infartando. Deu-lhe os primeiros socorros, colocou-o na ambulância e o trouxe para cá, onde ele continuou sendo medicado. Só que exames mais acurados, pela manhã, não confirmaram nenhuma cardiopatia. Foi um lamentável erro de diagnóstico. Talvez seu pai estivesse com indigestão, ou algum outro incômodo qualquer. Então, agora, temos que o manter sob observação por 48 horas, porque o que lhe demos para salvá-lo poderá matá-lo. Mas fique tranquilo: vocês não pagarão nada. Assumiremos todas as despesas.

Meu pai estava de bom humor, mesmo conectado a monitores e tomando soro na veia. Até brincou: “Vamos aproveitar que você e seu irmão vão estar aqui para visitar o túmulo da sua mãe. Poderemos ir depois de amanhã, aniversário da morte dela.” A alta foi assinada de véspera. Combinamos que sairíamos da clínica assim que acordássemos, sem pressa. Mas meu irmão não viria mais, com muito trabalho em Belo Horizonte.

Durante a noite, acordei ao sonhar que fazia xixi na calça. Passei a mão para sentir se estava molhado, e nada. Seco, resolvi perguntar a meu pai que bicho daria esse meu sonho. Ao olhar para ele vi-o sufocando, os braços abertos em minha direção. Deu tempo de ampará-lo. O abraço com o corpo abandonado ficou pesado. Entraram médicos e enfermeiras no quarto. Choques, injeções, socos no coração — e no monitor um traço contínuo. Já ia pedir que parassem quando pararam: nada adiantaria mais.

Fomos para o cemitério de Vila Rosali, como previsto. Meu pai, no caixão. E no aniversário da morte de minha mãe — que, a partir de agora, seria o do casal, com um ano de diferença entre eles.

O rabino cantava uma lamentação para mortos, e eu me perguntava: “Foi mesmo premonição o que tive ao passar por aqui, na Dutra?” Uma ventania repentina balançou árvores, levantou pó e apagou velas quando as primeiras pás de terra começaram a cobrir a cova. Meninos que seguiam a cerimônia trepados num muro fugiram dali. O vento em dia quente, sem nuvens, seria uma resposta criptografada do… além? Ou apenas me tornara macabro diante das coincidências?

Esvaziei e limpei o quarto dos últimos tempos do meu pai, paguei à dona da pensão, e saí do Catete para o Ibirapuera, em São Paulo. Passei pela avenida Brasil tão congestionada como horas antes, quando segui o carro funerário para Vila Rosali. Subi a serra das Araras. Sentia alívio por sair, enfim, da Baixada Fluminense, para mim associada à morte de mendigos no rio Guandu, ao tempo do governo Carlos Lacerda, e à alta criminalidade. Já perto de Penedo me lembrei do saco que enchi com a papelada que restou do meu pai, tudo picadinho como confete. Abri-0, e também só um pouco a janela do motorista, e o fui esvaziando devagar, de mão em mão, os papeizinhos sumindo ao vento.

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Epílogo

   Por vários anos saí à caça de bilhetes de loteria com os números das duas sepulturas. Só achei milhares aproximados, que nem reembolso renderam. Agora conheci uma bicheira. Mas não herdei a sorte paterna. Certa vez, faz tempo, um homem me abordou com um bilhete que tinha apenas o primeiro dos cinco algarísimos do milhar diferente dos que tanto procurei. Fui dormir milionário, cantarolando “Acertei no milhar”, do Moreira da Silva. Mas nada… Se desse, eu enlouqueceria.

 

 

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