Isto os jornais não contam

Amigos meus escreveram o livro  Isto o Jornal não Conta, na capa assinado pelo veterano e ótimo jornalista Fernando Portela. Pego o título emprestado, passo-o para o plural, e conto aqui apenas um entre tantos casos que aconteceram comigo em redações, para além das notícias. Não foi o único, nem o último.

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Consultei a doutora Marie-France Hirigoyen em 1998, quando o sucesso de seu primeiro livro, Assédio Moral, repercutia muito na imprensa francesa. Ela recomendou:

“Reaja ou se demita”.

Reagi. Fui demitido.

Escrevi este artigo que circulou apenas na internet, e por pouco tempo, porque recusado por jornais e revistas. Cortei o nome do personagem porque ele se desculpou anos depois. Mas os estragos ficaram, não têm reparo e mudaram o destino de minha família.

Quando nos conhecemos, num jantar em Nova York, meu novo chefe foi dizendo: “Você é o nosso melhor correspondente”. Mas, num almoço no dia seguinte, com um amigo comum, ele iniciou um perverso processo para me substituir nos Estados Unidos. Conseguiu.

   Quando nos reencontramos em 1998 num novo emprego, ele no Brasil e eu na França, trocamos e-mail: “Nosso homem em Paris!”, ele escreveu. Retribui, deletando o passado que o condenava, e desejando-lhe “sucesso”. Fui demitido.

   Qualquer chefe tem o poder de demitir quem não queira. Mas torturar, não. A dose dupla de tortura de que fui vítima me levou à pesquisa de um fenômeno no mundo do trabalho batizado de bullying (tiranizar), na Inglaterra; mobbing (molestar), nos Estados Unidos; harcèlement moral (assédio moral), na França; e murahachibu (ostracismo social), no Japão. Algumas vítimas se matam. Outras são tratadas com antidepressivos ou tranquilizantes. Muitas pedem demissão e renunciam a direitos de indenização, dando vitória ao bully, ao tirano. E há as que resistem.

   A primeira pessoa a denunciar a tirania nas relações de trabalho foi uma jornalista inglesa, Andrea Adams. Ela escreveu dois documentários para a BBC Rádio 4, de Londres, que provocaram uma enxurrada de cartas de ouvintes. A inesperada repercussão a levou a publicar um livro, Bullying At Work, em 1992. Até alguns dias antes de morrer, com câncer, em 1995, ela fez campanha para tornar o psicoterrorismo no trabalho um delito como o assédio sexual.

   “Ir ao trabalho é como entrar na jaula de um animal imprevisível para enfrentar outra semana de crucificação profissional”, disse Adams em seu último discurso, para sindicalistas, em maio de 1994. Um drama clandestino sofrido por um mínimo de 12 milhões de europeus, segundo uma pesquisa pioneira da Organização Internacional do Trabalho, em 1996, e pela média de 2 milhões de americanos por ano, incluindo assaltos contra taxistas, na estatística de 1998 do Departamento de Justiça dos Estados Unidos. No Japão, uma experiência telefônica, a “bullying hot-line”, atendeu a 1.700 consultas só em um mês. Como o poder de um tirano se mantém pelo medo que cala suas vítimas, impossível medir o fenômeno em escala mundial.

   Há inúmeras formas de tiranizar um empregado. Adams as resumiu em alguns exemplos: marcar tarefas com prazos impossíveis; passar alguém de uma área de responsabilidade para funções triviais; tomar crédito por ideias de outros; ignorar ou excluir um funcionário só se dirigindo a ele através de terceiros; segurar informações; espalhar rumores maliciosos; criticar com persistência; e subestimar esforços. O processo é lento. As agressões, sutis. As reclamações serão interpretadas como choque de egos, atribuídas a uma nova forma de administração, à reorganização, reengenharia, senão rejeitadas. Não há lei que não a do mais forte.

   marie-france-hirigoyenA psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen (foto à esquerda) escreveu o livro Le harcèlement moral (O Assédio Moral): La violence perverse au quotidien (A violência perversa no cotidiano). Os cinco mil exemplares da primeira edição esgotaram-se rapidamente. Outros 60 mil, em seguida. O livro apareceu em português, editado pela Bertrand Brasil, depois de traduzido para 12 idiomas. A revista Le Nouvel Observateur consagrou-lhe uma capa, com o título: “Esses colegas e patrões que o deixam louco”. Os colegas entram no título como cúmplices: temem pelo próprio emprego. Quem for solidário com uma vítima poderá se tornar a próxima.

   Hirigoyen traça o perfil do tirano. É um “narcisista perverso”, que acha o próprio equilíbrio descarregando em outro a dor que não consegue sentir e as contradições internas que se recusa a perceber. Uma sanguessuga: procura fora de si a substância para sua vida. Tem um senso grandioso da própria importância. Vive absorvido em fantasias de sucesso ilimitado e de poder. Pensa ser especial e único. Precisa muito de admiração. Acha que tudo lhe é devido. Inveja os outros. Comporta-se com arrogância. Explora todos nas relações interpessoais. E posa de referência, de padrão do bem, do mal e da verdade.

   -As vítimas são impotentes? Nada podem fazer?

   – Elas têm que aprender a se proteger, a dizer não – respondeu Hirigoyen.

   – Mas, como dizer não?, com o desemprego em alta?

   – Há um momento em que a opção é a saúde mental, ou o emprego. Tenho uma paciente que se demitiu para preservar sua personalidade.

   – A vítima fica só, sem a solidariedade dos colegas — comentei.

   – Solidariedade não existe, é cada um por si.

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    “Aqueles que podem, podem. Os que não podem, tiranizam” – proclama na Internet o Bully OnLine (www.successunlimited.co.uk), criado por Tim Field, autor do Bully in Sight (Tirano na Mira), guia que ensina a prevenir, resistir e combater o assédio moral no trabalho. Ele acrescenta atributos ao mais comum dos tiranos, os que praticam serial bullying, a destruição em série de empregados. É vingativo, quando só, mas inocente, diante de testemunhas. Médico e monstro, como Jekyll & Hyde. Mente compulsiva e convincentemente. E torna-se agressivo, se chamado à responsabilidade.

   O bully também produz uma vítima indireta. É o patrão, que continuará pagando o salário ao empregado que já não está mais podendo funcionar bem. Ele ainda arcará com as consequências de um ambiente de trabalho deteriorado, lembra o professor alemão Heinz Leymann.

   Só existia legislação para proteger as vítimas de assédio moral na Suécia, Alemanha, Itália, Austrália e Estados Unidos, quando escrevi este artigo. A Organização das Nações Unidas (ONU) anexou à Declaração dos princípios fundamentais de justiça uma nova e abrangente definição de vítima. “Vítimas são as pessoas que, individual ou coletivamente, sofreram um dano à sua integridade física ou mental, um sofrimento moral, uma perda material, ou uma ofensa grave a seus direitos fundamentais, como consequência de atos ou de omissões que ainda não constituem violação da legislação penal nacional, mas que representam violações de normas dos direitos do homem reconhecidas internacionalmente”.

   Hirigoyen encoraja vítimas de harcèlement “a virem a público” – para ela uma poderosa forma de levar a Justiça a uma tomada de consciência, como no assédio sexual.

   Por enquanto, as vítimas brasileiras da guerra de nervos no trabalho estão perdidas. Um chefe pode abusar do poder impunemente. Ou o empregado se submete à lenta destruição por golpes mesquinhos e covardes, que acabam acertando toda a sua família, ou vai embora. “O silêncio e o vazio cercam aos poucos a pessoa visada”, diz Hirigoyen. “Às vezes, a solidão é tal que vira rápido um drama”. Mas ela pergunta à “sociedade cega diante desta forma indireta de violência:

   — Não nos tornaremos cúmplices, por indiferença?”

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O assédio do sucesso

A psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen quer se proteger de um tipo inesperado do assédio que denuncia e combate desde 1998, quando escreveu seu livro Assédio Moral – A violência perversa no cotidiano, que vendeu 450 mil exemplares em 27 países.

   “Tudo se tornou assédio moral”, diz a doutora Hirigoyen. “Virou moda”.

   É o assédio do sucesso. A Assembléia Nacional da França votou em 11 de janeiro de 2001 uma emenda que introduz a noção de assédio moral nas leis do trabalho. O projeto de lei 13.288, de 10 de janeiro de 2002, da Câmara Municipal de São Paulo, prevê suspensão, multa e demissão para os chefes tiranos, baseado em estudos da doutora Hirigoyen. Surgiram associações e sites na internet em defesa de empregados acossados. O tema ficou popularizado com capas de revistas e em páginas de jornal.

   O assédio moral passou a ser usado, indevidamente, como sinônimo de estresse, ou para condenar a pressão normal de um chefe para que o subordinado trabalhe mais. Foi por isso que a psiquiatra Hirigoyen escreveu um novo livro, Mal-estar no trabalho – Redefinindo o Assédio Moral, lançado em português pela editora Bertrand Brasil.

   “Não se deve atribuir tudo ao assédio moral”, ela diz. “É preciso distinguir o que é do que não é, mesmo porque, do contrário, não se poderá mais agir para punir ou prevenir. Antes que um caso seja identificado como assédio moral alguém de fora deveria investigá-lo e emitir um parecer, como sugere um projeto de lei belga”.assedio moral é crime

   Agora que fixou limites para o assédio moral, a doutora Hirigoyen vai mudar de assunto: “Não quero me repetir e muita gente está escrevendo livros sobre o tema, com poucas diferenças”. Talvez ocorram mudanças também entre seus pacientes. “Na Europa estão surgindo especialistas, não necessariamente psiquiatras, que tratam de assédio, tanto individual como coletivamente”.

   Será difícil para a doutora Hirigoyen ficar imune ao assédio do assédio moral. “Totalmente, não. Ainda recebo cartas de todas as partes do mundo”. Formada em medicina na França, em 1978, especializou-se em psiquiatria e psicanálise, e depois em vitimologia nos Estados Unidos. Ela também faz conferências. “Numa no México, um homem começou a chorar, reconhecendo: es mi vida, es mi vida… Qualquer que seja o país ou a cultura, o problema é o mesmo, são formas de ataque e sofrimento iguais, só o contexto difere, em função de maior ou menor proteção social. Em alguns lugares, o assédio se desenvolve sutil, escondido. No Brasil a violência no ambiente de trabalho é ostensiva”.

   O Brasil “está muito avançado”, em comparação à Europa e aos Estados Unidos. “Vejo que cada vez mais o mundo do trabalho tende a se individualizar. No fundo, cada pessoa, diante do assédio moral, se encontra só. Por isso a lei é importante: ela permite que o indivíduo ouse reagir”.

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Como reagir

Primeiro da turma de 1975 de Ciência da Computação na Universidade Staffordshire, na Inglaterra, Tim Field especializou-se em assédio moral no trabalho, na prática, ao ser forçado a sair de um emprego, em 1994. Hoje, ele mantém um serviço de aconselhamento por telefone e na internet, escreve livros e dá consultas a empresas e sindicatos. Entre seus clientes ingleses estão vários departamentos de polícia, o correio, o ministério da Defesa e algumas universidades.

   Depois de responder a 3 mil telefonemas e receber 26 mil visitas no seu site da internet, Tim Field chegou aos conselhos básicos para quem quiser reagir a um chefe tirano. Aqui, um resumo dos que se aplicariam às vítimas brasileiras.

* Lembre-se de que um chefe tirano projeta em suas vítimas as próprias fraquezas profissionais e morais. Assim, não as introjete.

* Sentir vergonha, dificuldade, culpa e medo é uma reação normal, mas imprópria se render ao tirano o controle e silêncio de sua vítima.

* Não se pode enfrentar sozinho um chefe tirano. Procure ajuda. Consulte o departamento médico de sua empresa.

* Aprenda o máximo que puder sobre assédio moral no trabalho.

* Supere toda falsa percepção sobre assédio moral, como a de que se trata apenas de uma forma dura de chefiar, ou de reorganização empresarial.

* Anote tudo. Não é um único incidente que conta, mas a regularidade com que acontece, o seu padrão e o conjunto.

* Guarde cópia de cartas, memorandos e e-mails.

* Faça um diário com as reclamações e críticas do chefe tirano. Se puder obtê-las por escrito, tanto melhor. Se as tiver pedido, e não for atendido, registre. A repetida recusa de justificar ou substanciar faltas cobradas pode ser usada como prova de assédio.

* A tiranização no trabalho estressa. Se o médico a diagnosticar, que inclua a causa – as condições no local de trabalho.

* Reclame do assédio moral ao escalão superior. Mas, cuidado: em geral, o tirano é que receberá o apoio de cima.

* Não se deixe levar pela armadilha da saúde mental: os sintomas e efeitos do assédio moral são uma lesão psiquiátrica, não doença mental.

* Uma licença médica deve ser registrada como acidente de trabalho, e a sua causa, a opressão do chefe tirano, denunciada ao empregador.

* Se o chefe tirano fizer suas críticas em público, procure um advogado para adverti-lo, por carta, que ele é passível de processo por difamação e calúnia.

* Considere demitir-se como uma decisão positiva, uma opção entre saúde e emprego.

* Se forçado à demissão, denuncie a causa ao empregador, por escrito, e oriente-se com um advogado antes de assinar qualquer documento.

* Considere tornar público o seu caso.

  

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