Mortes e acordos entre Israel-Síria-Jordânia e Libano.

Foto do exército de Israel, hoje, na Ponte Allenby

Um jordaniano que dirigia um caminhão carregado com ajuda humanitária para Gaza estacionou para inspeção israelense na Ponte Allenby, perto de Jericó, na Cisjordânia. Tinha um revólver. E o disparou até ele não funcionar, engasgado com uma bala. Então, sacou uma faca e matou duas pessoas, uma de 60 e outra de cerca de 20 anos. Foi morto. A passagem entre Jordânia e Israel foi fechada.

(Em Gaza, quase ao mesmo tempo, um comandante e três oficiais foram mortos ao passarem sobre uma mina improvisada.)
Ano passado, nessa mesma ponte Allenby, três israelenses morreram baleados, também por um motorista de caminhão jordaniano de alimentos para Gaza.
Algumas horas depois do atentado desta quinta-feira, o ministro de Assuntos Estratégicos, Ron Dermer, confidente do premiê Benjamin Netanyahu, sugeriu que o Vale do Jordão pode ser anexado sem maiores consequências, se for uma reação ao reconhecimento do estado da Palestina, na semana que vem, na Assembleia Geral da ONU, em Nova York. A expectativa sobre a reação dos Emirados Árabes Unidos foi reduzida a uma retirada de seu embaixador de Tel-Aviv, não mais uma ruptura.


O ministro Dermer esteve negociando um pacto de convivência entre Síria e Israel, em Londres, onde também se encontrou com o secretário de Estado Marco Rubio, que esteve em Jerusalém e Doha, no Catar, há poucos dias. Não foi a primeira vez que ele propôs a anexação de parte da Cisjordânia, mas a que tem mais chance de ocorrer, antecipada pelo próprio premiê Netanyahu e exigida, praticamente, por seus aliados da extrema-direita na coligação governamental.
O presidente sírio Ahmed al-Sharaa revelou-se otimista com as negociações com o ministro Dermer, nesta quinta-feira, prevendo um acordo para “os próximos dias”. Para ele, o pacto é necessário para acabar com as incursões aéreas e terrestres do vizinho israelense. Mas não está claro como foi ou será resolvido o impasse sobre as Colinas do Golã, anexadas por Israel depois de conquistadas, na Guerra dos Seis Dias (1967).
Em Londres, o primeiro-ministro Keir Starmer e Trump concordaram em discordar sobre o reconhecimento da Palestina, durante uma entrevista coletiva, nesta quinta-feira. O Reino Unido iria se antecipar à França, anunciando-o antes. Mas a recepção real ao presidente dos EUA o dissuadiu.
Ao afirmar que “o Hamas não deve ser parte de nenhum futuro governo na Palestina”, o que não impedirá o seu reconhecimento, Starmer recebeu um tapinha nas costas de um Trump satisfeito, e que declarou: “Discordo do primeiro-ministro (sobre reconhecer a Palestina) … É um nossos poucos desacordos.” Ele acrescentou que os reféns cativos do Hamas devem ser libertados imediatamente: “Não um, não dois ou ‘vamos lhe dar dois amanhã’. Temos que receber os reféns imediatamente. É isso que o povo de Israel quer. E queremos que a guerra acabe, e ela vai acabar”.


Israel distribuiu panfletos no sul do Líbano, na manhã desta quinta-feira (foto acima): “Aviso urgente”, alertou em árabe. “As IDF (Forças de Defesa de Israel) atacarão a infraestrutura militar pertencente ao terroristas Hezbollah em todo o sul do Líbano, para combater suas tentativas proibidas de reconstruir suas atividades”. Num mapa, foram indicados os edifícios que seriam atacados em Kafr Tibnit e Dubna, recomendando a seus moradores a permanecer a uma distância de 500 metros.

Trigo Manchado de Sangue

Na Terra Prometida, testemunho de um momento de paz numa história feita de guerras.

Às 6h30, encobertos por cerca de 5 mil foguetes disparados de Gaza por 20 minutos, centenas dos cerca de 3 mil terroristas do Hamas e da Jihad Islâmica Palestina (PIJ) que invadiram Israel por terra, ar e mar, penetraram no kibutz Tel-Reim. A luz vermelha que daria até 15 segundos para que seus 422 habitantes corressem para os abrigos não acendeu. Tiros e granadas alertaram para o ataque, entre gritos de fugitivos do festival de música Supernova, onde foram assassinados 364 jovens que dançaram a noite toda.

Do trator no deserto do Neguev ao massacre de 1.200 israelenses e a captura de 251 reféns pelo Hamas, em 7 de outubro de 2023, transcorreram 56 anos unidos por uma relação de causa e efeito. Em 1967, na Guerra dos Seis Dias, Israel conquistou Gaza e o deserto do Sinai, do Egito; a Cisjordânia, da Jordânia, com a bíblica Jerusalém, sagrada para o Islã, o Judaísmo e o Cristianismo; e as Colinas do Golã, da Síria, ampliando seu território de 20.720 km2 para 73.635 km2, e assumindo a tutela de 3,1 milhões de palestinos.

Com um radinho de pilha em Tel-Reim, quando meu amigo druso não o levava em nome do socialismo do kibutz, ouvia as notícias, em inglês e francês. O principal assunto eram os territórios conquistados, que deveriam ser trocados por paz.

À espera da paz, os israelenses os invadiam, como turistas., e não eram hostilizados. Que judeu não queria conhecer a terra de seus ancestrais, a Judeia e Samaria, os nomes bíblicos da Cisjordânia, a Terra Prometida? Ou rezar no Muro das Lamentações? — o último vestígio do antigo Templo de Herodes, o segundo local mais sagrado do judaísmo, abaixo das mesquitas de Al Aqsa e Domo da Rocha, o terceiro lugar mais sagrado do islamismo. Gaza logo se tornou a oficina de carros dos israelenses, com preços muito abaixo dos cobrados em Tel-Aviv.

Havia políticos em Israel que propunham correções territoriais antes da devolução de terras, pretendendo mais espaço estratégico para o aeroporto internacional Ben Gurion; e uma unanimidade cobiçava a anexação Jerusalém. Outros sugeriam criar colônias na Cisjordânia, Gaza e Golã, condenadas pela ONU e consideradas “obstáculos para a paz” pelos EUA. No final, só o deserto do Sinai foi devolvido para o Egito, com o acordo assinado em 1978 pelos prêmios Nobel da Paz Anuar Sadat e o primeiro-ministro Menachem Beguin, que dizia que não devolveria um grão de areia do deserto.

Nos 56 anos desde 1967, mais de 700 mil judeus foram viver em 146 colônias plantadas na Cisjordânia, onde deveria brotar a Palestina. O impasse que incentivou a colonização foi cimentado pela Liga Árabe ao adotar os três “nãos” em Cartum, três meses do fim da guerra: “não” ao reconhecimento de Israel, “não” a negociações e “não” à paz.

O Hamas (“Zelo”, em árabe; “Violência”, em hebraico) quer a destruição de Israel — e não um acordo de paz. A sua carta de fundação de 1988 decreta: “A Palestina é uma pátria islâmica que nunca poderá ser entregue a não-muçulmanos”. E um texto extra corânico de Maomé complementa: “O mundo só conhecerá a redenção final e a ressurreição dos mortos quando os muçulmanos conseguirem aniquilar todos os judeus, ou convertê-los ao Islã.”

O Hamas nasceu da Irmandade Muçulmana, fundada em 1928 pelo ideólogo islâmico Hassan al-Banna, que pregava a volta ao mundo muçulmano do século VIII com o extermínio da civilização ocidental, em geral, e a dos Estados Unidos, em particular, por sua “licenciosidade demoníaca e arrogância pecaminosa”. Foi ela que assassinou o presidente Anuar Sadat, do Egito, em 1981, por causa do acordo de paz que ele assinou com Israel. Acusada de tentar um golpe contra o presidente sírio Hafez al-Assad, em 1982, cerca de 500 “irmãos” foram assassinados no massacre de 10 a 25 mil civis sírios em Hama, ao norte de Damasco. Os jornais só publicaram notinhas. É que o simultâneo massacre de palestinos em Sabra e Chatila, em Beirute, dominou as manchetes na imprensa mundial, com 500 a 3.500 mortos. O saldo dos dois massacres é incerto mais de 40 anos depois.

Em Gaza, em 1987, a Irmandade Muçulmana foi rebatizada de “Haraqat al-Muqawame al-Islamiya”, ou HAMAS, o “ramo palestino da Irmandade Muçulmana”. O comando dos palestinos de variadas facções estava unificado na OLP (a Organização de Libertação da Palestina), de Yasser Arafat, um dos fundadores do Fatah, em 1959, que se converteria de inimigo mortal a amigo e parceiro de Israel, em 1988, ao aceitar a solução de dois estados para o conflito israelense-palestino. Com o primeiro-ministro Yitzhak Rabin, que titubeou em lhe dar a mão na Casa Branca, ele assinou os acordos de Oslo, em 1993.

Dirigido pelo xeque tetraplégico e quase cego Ahmed Yassin, o Hamas ganhava cada vez mais popularidade em Gaza por prestar assistência social à população. Opunha-se à OLP e à divisão da Palestina com Israel. Em 1995, um jovem judeu ortodoxo de extrema direita, Yigal Amir, assassinou Rabin, enquanto ele entoava uma canção de paz num comício na Praça dos Reis de Israel, em Tel Aviv. Um ano depois, em 1996, o líder da direita Benjamin Netanyahu era eleito primeiro-ministro, cargo que ocupa hoje pela sexta vez.

Em comum, Amir, Yassin e Netanyahu se opunham à solução de dois estados. Há uma lei no Oriente Médio que dispõe que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Seguindo-a, o governo de Israel começou a usar o Hamas como um contrapeso à OLP, já enfraquecida com a morte de Arafat, em 2004, e por denúncias de corrupção. Em 2005, Gaza foi entregue aos palestinos. Nas eleições de 2006, o Hamas venceu o Fatah e o expulsou para Ramallah, na Cisjordânia, com uma guerra civil. A causa Palestina passou a ter dois interlocutores, um a favor de negociações com Israel, e outro, pela sua destruição.

Eis que a solução de dois estados foi resgatada pelo presidente Joe Biden, em 2023. E como brinde para que fosse aceita ele oferecia a normalização de relações com a Arábia Saudita tão ambicionada por Israel. Netanyahu não teve como rejeitar a iniciativa americana. Mas também não a aceitou.

Os sauditas faziam questão de algum progresso palpável na questão palestina. Só que Israel estava amotinado pela decisão do governo de Netanyahu, formado por uma coligação mais à extrema-direita de todos os tempos, de subordinar as decisões da Suprema Corte de Justiça ao Parlamento, que teria o poder de revogá-las. Para muitos israelenses, tratava-se de um golpe de estado. E a maioria, inclusive reservistas, foi para as ruas protestar, durante dez meses.

Nos túneis de Gaza, o líder do Hamas, Yahya Sinwar, ficou diante do seguinte dilema: a Autoridade Palestina está envolvida nas negociações entre Arábia Saudita e Israel, e ele, o Hamas, não — foi abandonado. E mais: nunca Israel revelou-se tão vulnerável a um ataque, absorto nos protestos opondo seculares e religiosos, direita e esquerda.

O Hamas vinha se mantendo propositadamente tão bem-comportado a ponto de militares israelenses sugerirem premiá-lo com a admissão de mais palestinos de Gaza para trabalhar em Israel. Secretamente, porém, já fazia mais de dois anos que o líder das brigadas palestinas Izz ad-Din al-Qassan, Mohammed Deif, elaborava um plano de invasão às cidades e kibutzim da fronteira a que batizou de “Inundação Al Aqsa” (“Al Aqsa Flood”), em memória à invasão de soldados de Israel à mesquita Al Aqsa, para desalojar jovens entrincheirados com pedras e fogos de artifício, em maio de 2021. Foram 15 dias de pandemônio na Cisjordânia, com bombardeios contra mísseis de Gaza e 250 palestinos mortos.

O comandante Deif, 58, sobreviveu a sete ataques de Israel, perdeu um dos olhos e foi ferido em uma das pernas. A sua esposa, o filho de sete meses e a filha de três anos, morreram em ataque aéreo israelense, em 2014. Em 2023, foi a vez do irmão e de dois familiares, e a casa do pai, destruída. Conheciam-no por “Homem das Sombras”, porque vivia nas sombras, e a única foto dele, além de uma com máscara e outra aos 20 anos, era sua própria sombra projetada numa parede.

O dia para abrir o dique da Inundação Al Aqsa foi escolhido por ser um feriado religioso, Shemini Atseret, o “oitavo dia da convocação” após os sete do Sukot, que comemora a proteção de Deus aos judeus que fugiram da escravidão no Egito. Além de feriado, era Shabat. Milhares de soldados gozavam de licença. De repente, a barragem de 5 mil mísseis, às 6h30, assustou. O sistema de defesa aérea Iron Dome não interceptou tantos mísseis de uma só vez. Mas eles miravam a distração de Israel.

De Gaza, drones voaram para explodir postos de observação já do lado israelense. Destruíram câmeras e sensores sofisticados. Milhares de homens do Hamas detonaram a fronteira, ou a derrubaram com tratores. Muitos tinham a missão de eliminar soldados que guardavam posições destacadas em mapas bem precisos encontrados em bolsos de palestinos mortos.

Por quase duas horas, cerca de 3 mil terroristas do Hamas penetraram, livres, em Israel, em suas picapes brancas, motos, bicicletas, paragliders motorizados, barcos e lanchas — uma invasão por terra, mar e ar.

A Inundação Al Aqsa transbordava de sangue — o ódio represado desde a Nakba, a “Tragédia” de 1948, como a independência de Israel foi traduzida em árabe. Alguns milicianos faziam selfies ao lado dos corpos de quem acabavam de matar para enviar à família e amigos em Gaza. Em vários kibutzim, filhos foram mortos diante dos pais, e mulheres mortas depois de estupradas, bebês queimados, casas saqueadas e incendiadas. Quem conseguiu correr e se trancar nos abrigos antiaéreos também não escapou, as portas arrombadas e granadas atiradas para dentro.

O massacre maior ocorreu no festival de música Supernova, ao lado do kibutz Tel Reim (“A Colina dos Amigos”). A festa atravessou a noite e ia animada, já dia claro. De repente, a barragem de mísseis riscando o céu azul de traços brancos. Todos pararam para ver. E surgiu o inesperado: tiros e granadas, e corpos caindo no descampado — 364, o total de mortos. O estacionamento era uma armadilha: quem corria para lá, morria. Motoristas mortos aos volantes bloquearam as saídas, baleados enquanto tentavam pegar a estrada. Dois rapazes, Geva, 20, e Shaked, 23, que fugiram para o kibutz Tel Reim pulando cadáveres, ligaram para o pai, o chefe de polícia Eyal Aharon. Ele partiu para salvá-los. Pelo caminho encontrou soldados confusos à espera de ônibus que não chegavam, caos e pânico, e as primeiras barreiras militares. Ele fez inúmeras escalas para salvar vítimas de emboscadas do Hamas, ou recolher caronas que queriam combater os invasores.

À medida que chegava à fronteira de Gaza, Aharon foi percebendo a dimensão do que sucedia. Era o mais trágico dia de Israel desde sempre, ou dos judeus desde o holocausto. Em Tel Reim, os filhos estavam encurralados. Soube pelo celular que um deles tinha sido baleado duas vezes numa perna. Quando se preparava para tentar o resgate, alguém o segurou pelo ombro. O comandante de um pelotão que acabava de chegar lhe disse: “Deixe com a gente; vamos pegar seus filhos”. Os filhos sobreviveram, e ele foi honrado como herói pelo socorro prestado na estrada.

Às 8h23, duas horas desde a Inundação Al Aqsa, Israel declarou estado de alerta. Mais de 350 mil reservistas começaram a ser mobilizados. A aviação fez sua primeira blitz em Gaza, para onde os terroristas do Hamas voltavam com 251 reféns, alguns feridos e outros mortos, valiosos para troca com prisioneiros palestinos. Uma refém quase nua foi exibida como troféu na boleia de uma picape, sob aplausos de uma multidão. No dia seguinte, Israel declarou estado de guerra. E o Hezbollah, no sul do Líbano, comemorou disparando mísseis contra cidades do norte israelense, obrigando 60 mil de seus moradores a se deslocarem para Sul. E por “solidariedade”, os disparos continuaram, diários.

“Por que Israel, dos 195 países do planeta, está sozinho em ser condicional, como se sua existência dependesse da boa vontade das outras nações do mundo?” — perguntou o escritor israelense David Grossman, em um artigo sobre a invasão do Hamas. Ele, que já perdera o filho, Uri, na guerra do Líbano, em 2006, completou: “Os judeus não chegaram à terra de Israel por conquista, mas buscando segurança; e sua poderosa afinidade com esta terra tem quase 4 mil anos; foi aqui que eles emergiram como uma nação, uma religião, uma cultura e uma língua”. O editor da revista New Yorker, David Remick, conta que ficou chocado ao ouvir israelenses lhe dizerem: “Não somos mais israelenses; somos judeus”.

As referências a Gaza, na Bíblia, parecem atuais: “Por isso meterei fogo aos muros de Gaza, fogo que consumirá os seus castelos” (Amós 1:6-10). “Porque Gaza será desamparada, e Ashkelon ficará deserta” (Sofonias). A primeira menção está no Gênesis, localizando Gaza na fronteira de Canaã e “na direção de Sodoma e Gomorra”. Gaza vem do hebraico Az, forte, e talvez o “forte” aqui tenha sido Sansão, que pediu, traído por Dalila: “‘Deixe-me morrer com os filisteus’. E ele se curvou com toda a sua força; e a casa caiu sobre os senhores, e sobre todo o povo que ali estava…” (Juízes,16:30).

Em árabe, Gaza é “Tesouro”. Muitas de suas ruas têm o mesmo nome, Al Awda — O Retorno. O retorno ao que se tornou Israel, de onde muitos foram expulsos na Guerra da Independência, em 1948. Um palestino me mostrou a chave da casa que tinha em Ashdot e a escritura do tempo do Mandato Britânico. Em outra ocasião, em Nablus, na Cisjordânia, o prefeito Bassam Shakaa, sem as pernas e os braços, amputados num atentado terrorista judeu, pediu que o empurrasse na cadeira de rodas até o quintal de sua casa. E mostrou: “Ali estão enterrados meu pai, avô e tetravô. Esta terra me pertence”. Ao sair, parei na Administração Militar, e cobrei uma resposta. O porta-voz apontou para Hebron à distância: “Lá está enterrado Abraão”.

No dia seguinte à invasão a Israel, o primeiro-ministro Netanyahu advertiu aos não integrantes do Hamas, entre os 2,1 milhões de habitantes de Gaza: “Saíam daí agora. Nós estaremos em toda parte, e com toda a nossa força”. E assim foi, e está sendo. Quase um ano depois, 49 mil palestinos estão mortos, a maioria civis, com mulheres e crianças contando 2/3 das vítimas. Israel inclui nesse total 20 mil combatentes, que não são singularizados pelo Ministério da Saúde do Hamas. Feridos, quase 100 mil. Os deslocados alcançaram 90% da população, ou 1,9 milhões. Entre os israelenses, morreram 340 soldados.

Gaza voltou à sua condição de ruínas, uma das cidades mais conquistadas e destruídas no mundo, desde os tempos bíblicos. No terceiro mês da invasão, em janeiro, um órgão da ONU, com base em imagens de satélite, registrou: 22.131 estruturas arrasadas, 14.066 severamente danificadas e 32.950, moderadamente, num total de 69.147 casas, prédios, escolas, hospitais e instalações do Hamas.

Cada bombardeio israelense com alvo militar preciso, e munição selecionada para evitar vítimas e danos colaterais, causa, no mais das vezes, uma tragédia. O Hamas se esconde por baixo de áreas residenciais, sob mesquitas e hospitais. Os moradores de prédios recebem um telefonema ou mensagem alertando para um ataque iminente, dando-lhes tempo de fugir.

O assassinato do “Homem das Sombras”, Mohammed Deif, custou 90 vidas, em 13 de julho. Ele morreu porque saiu de seu túnel em Khan Yunis para a luz do dia, algo raríssimo. Ao que se soube, teria um encontro. E ele próprio escolheu um local de sua infância, al-Mawasi. Mas alguém avisou Israel. E logo surgiu um caça que despejou nele a bomba que abre cratera no solo. Foi seu oitavo atentado, o último. Junto, morreu Rafaa Salameh, comandante de uma brigada do Hamas, alguns seguranças e dezenas de civis.

Deif virou mártir, herói para os palestinos do Hamas. A sua herança inclui o “metrô de Gaza”, de que seria um dos idealizadores. São 500 quilômetros de túneis, completados ao longo dos anos, ao custo de 10 milhões de dólares. Alguns trechos têm 18 metros de profundidade. Os primeiros abertos, em 2007, serviram para contrabandear armas e material de construção, por baixo dos 17 quilômetros de fronteira com o Egito, conhecida por Corredor Filadélfia, o mesmo do impasse para o acordo de cessar-fogo, pela insistência de Israel em patrulhá-lo com seus soldados.

No “metrô de Gaza”, blindado contra bombardeios aéreos, estaria o cativeiro de cerca de 100 reféns, os restantes dos 251 sequestrados. Formariam um escudo dos líderes do Hamas no QG com computadores, luz elétrica e sistema de ventilação. De suas saídas, as “estações” que são buracos camuflados no deserto, partiram emboscadas contra soldados israelenses. Uma extensão desembocava perto de um kibutz dentro de Israel. Em alguns trechos podiam se concentrar 200 homens armados. Em outros, circulavam caminhões e blindados. Havia arsenais de mísseis. Um atirador punha a ponta do lançador para fora, apertava o gatilho e desaparecia fechando a tampa, da cor do deserto. Os israelenses procuravam o local do disparo, e não o encontravam.

O Hamas construiu o “metrô de Gaza”, mas nenhum abrigo antibomba para a superfície, uma das mais densamente populadas do mundo. Os civis abrigaram-se em hospitais, escolas e mesquitas fugindo dos bombardeios, mas seguiam alvos de bombas, com o Hamas no subsolo. Criaram-se áreas de proteção humanitária. E foi numa delas que o “Homem das Sombras” morreu.

O escritor David Grossman lembrou um ditado do filósofo Gershom Sholem, fundador do estudo moderno da cabala, o misticismo judeu: “Todo sangue flui para a ferida”. E ele agrega: “Assim Israel se sente. O medo, o choque, a fúria, o luto, a humilhação e o desejo de vingança, as energias mentais de uma nação inteira — todas elas não param de fluir para a ferida, o abismo no qual ainda estamos caindo”.

Em Israel, as manifestações contra o premiê Netanyahu viraram rotina. Acusam-no de sabotar os acordos de libertação dos reféns acrescentando itens inaceitáveis para o Hamas. Os protestos crescem com a adesão dos israelenses que denunciam que Netanyahu prolonga a guerra para se manter no poder, imune a dois processos de corrupção e suborno que podem condená-lo, e ainda para se livrar da responsabilidade do grande fracasso de segurança que permitiu a invasão do Hamas — logo ele, eleito como “Mister Segurança”.

Por causa das guerras em Gaza e no Líbano, mesmo que Israel não as tenha iniciado, os judeus da diáspora se sentem acuados. Uma onda de antissemitismo aflorou no mundo. Os campi universitários e ruas de vários países ficaram em favor da Palestina “do rio até o mar”. Nove embaixadores foram embora de Tel Aviv batendo a porta. O Tribunal Penal de Haia julga uma acusação de genocídio em Gaza. E Israel vai se tornando um país pária no mundo, isolado pelos excessos de sua retaliação com milhares de mortos civis, crianças e mulheres. A relação privilegiada com os EUA entrou em declínio.

Véspera do primeiro aniversário, a Inundação Al Aqsa está secando. Em Gaza, 22 dos 24 batalhões do Hamas foram dizimados. Aos sobreviventes, resta a opção de uma guerra de guerrilhas.

No Líbano, o Hezbollah foi decapitado: seu líder há 32 anos, o xeque Hassan Nasrallah, morreu soterrado sob as ruínas de 8 toneladas de bombas, depois da sequência de assassinatos de seus principais comandantes e da explosão de pagers e walkie talkies de suas tropas. Só os Houthis iemenitas, entre os membros do Eixo da Resistência criado pelo Irã, reagiram com um míssil balístico, abatido por Israel.

E no 361º, a guerra chegou à sua origem, o Irã, o patrocinador do Hamas, do Hezbollah, dos Houthis e de milicias no Iraque e na Síria: 181 mísseis balísticos disparados contra Israel. A próxima volta da espiral, com a ponta inicial em Gaza, espera a retaliação israelense. Lembra Beirute arrasada, 1982, Yasser Arafat partindo para o exílio na Tunísia, num navio chamado Atlântida, o continente perdido. A última vez que o encontrei foi em 1994, em Gaza. Ele então dizia que iria plantar uma Singapura no deserto. Era próprio dele: buscar o ideal, perdendo o possível. O meu trigal floresceu. Quando parti de Israel, no final de 1967, as espigas chegavam à minha altura.

Shalom, Sharon

web_f061119ey04-e1388919055587

Ariel Sharon:  1928 – 2014

 

Ariel Sharon e Shimon Peres:

ambos sofreram derrame cerebral

e morreram no mesmo hospital,

Sheba, com a diferença de 2 anos.

 Sharon passou 8 anos em coma.

 

ariel-sharon-the-trent-12

Shimon Peres: 1923 – 2016

“Aharai, aharai!” – era o grito de guerra do jovem capitão Ariel Sharon. “Sigam-me, sigam-me!”, gritava, e partia à frente das mais audaciosas e inesperadas batalhas da história militar israelense. Os soldados iam atrás. Iriam onde quer que fosse, avançando sob fogo cerrado. Só recuariam se perdessem dois terços das tropas.

Se hoje o general Sharon gritasse aharai, Israel ainda o seguiria. Mas ele sofreu um maciço ataque de um inimigo invencível, o próprio corpo de 77 anos, gordo, frágil, comandado por nervos de aço. Sem ele, seu país não será mais o mesmo.

Foi na sua Unidade 101, base lendária do moderno Exército israelense, que Sharon teve seu primeiro encontro com a morte. Era a Guerra da Independência, 1948, e sua brigada lutava para conquistar o convento de Latrun, entre Jerusalém e Tel-Aviv. Uma bala jordaniana perfurou-lhe o estômago. Um soldado o carregou para a vida. Até recentemente os dois se encontravam, amigos. Ordens do capitão Arik (leão em hebraico, o seu apelido): não deixar nenhum ferido em campo de batalha, mesmo à custa de mais feridos, ou mortos.

Arik também viveu a morte em família. Margalit, a primeira mulher, morreu num acidente de carro. A irmã dela, Lily, com quem ele se casou depois, morreria de câncer, deixando-o inconsolado. E Gur, um dos filhos, morreu aos 10 anos mexendo numa das armas antigas do pai.

Aharai, aharai (pronuncia-se arrarai) – e a tropa o seguia. Nascido Ariel Scheinermann em 1928, e criado em Kfar Malal, na Palestina sob mandato britânico, aos 14 anos ele já carregava armas, operando em organizações paramilitares clandestinas que defendiam os colonos judeus. Tinha a fama de rebelde, não cumpria ordens, e geralmente as excedia. Excesso: esta sempre foi a marca de Sharon. Para ele, não era “olho por olho”, e sim “dois olhos por um olho”.Talvez por isso também o chamavam de Trator, Elefante e Rei de Israel. Nada o brecava. Uma vez, em 1956, ele levou seus paraquedistas a saltar atrás das linhas egípcias, no passo de Mitla, no Deserto do Sinai, para um furioso ataque em que perdeu dezenas de soldados. Outra vez, penetrou com um comando em território jordaniano para vingar o assassinato de uma israelense e seus dois filhos por terroristas – a Operação Kibia. Uma tragédia: 42 casas de pedra foram dinamitadas, matando seus ocupantes, ao todo 69 pessoas, entre elas muitas crianças.113553

Aquele capitão era tão rebelde que o general Ezer Weizman, pai da Força Aérea israelense, escreveu em suas memórias: “Na guerra, eu o seguirei no meio do fogo e da tormenta, mas a vida política tem valores diferentes.” Tão rebelde que o fundador de Israel, David Ben Gurion, perguntou-lhe: “Arik, você já parou de mentir?” Tão rebelde, que o primeiro-ministro Menachem Beguin, em seu primeiro governo, lhe recusava a promoção a ministro da Defesa, justificando-se: “Sharon é capaz de cercar com tanques o prédio do governo.”

Mas Sharon se tornou ministro da Defesa de Beguin por um único motivo: só ele, então o “rei da colonização” na Cisjordânia e Gaza, ocupados por Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967, seria capaz de retirar os colonos fixados em Yamit, no Sinai devolvido ao Egito em troca do primeiro acordo de paz com um vizinho árabe. Assim como só ele, outra vez, conseguiu retirar, em setembro de 2005, os colonos de Gaza. Ambos os lados o respeitavam e o temiam.

Aharai! A rebeldia de Sharon deu-lhe a completa confiança de seus soldados. Ele os comandou na contraofensiva da guerra de 1973, lançada pelo Egito quando os israelenses se recolhiam ao seu dia religioso mais trágico, o Yom Kippur, o Dia do Perdão. Cumpria sua própria agenda, e não ordens superiores. De repente, lá estava ele, no outro lado do Canal de Suez, cercando todo o 3º Exército egípcio. Negou-lhe água e comida, estrangulando-o enquanto o mundo inteiro protestava. Mas o mundo nunca lhe importou. O mundo, ele dizia, nada fez enquanto Israel era atacado de surpresa, por todos os lados, e sua população estava jejuando e rezando nas sinagogas.

“Quem não é meu amigo, é meu inimigo” – ele não fazia concessões. Ao estourar a guerra no Líbano, em 1982, a marca do excesso de Sharon brilhou. O porta-voz militar israelense deixou de falar com os jornalistas locais ou estrangeiros. Os ministros do núcleo duro do governo Beguin se diziam por fora do que acontecia, desinformados, não consultados. Prevista para chegar só até a 45 km da fronteira Norte de Israel, a invasão do Líbano excedeu, entrando em Beirute e envolvendo a Síria. Sharon perseguiu seu arqui-inimigo Yasser Arafat casa a casa, pulverizando edifícios em que ele passava a noite, até expulsá-lo para a Argélia. E, 20 anos depois, ironia do destino, o primeiro-ministro Sharon e o presidente da Autoridade Palestina, Arafat, se reencontraram para transformar a Cisjordânia numa nova Beirute.

Este slideshow necessita de JavaScript.

Beguin e Sharon queriam impor uma nova ordem no Líbano. Com tanques e soldados, elegeram o cristão maronita Bashir Gemayel, soterrado em seu QG por uma poderosa bomba às vésperas da posse. As forças cristãs tomaram as ruas para uma vingança, quando Israel era senhor absoluto em Beirute. As milícias falangistas cristãs penetraram nos campos palestinos de Sabra e Chatila e perpetraram um massacre, matando cerca de 800 homens, mulheres e crianças em três dias. Uma comissão de inquérito israelense responsabilizou Sharon “indiretamente” por nada ter feito para impedir ou interromper o massacre. E ele caiu do Ministério da Defesa.

Eu vivi um dos excessos de Sharon. Estava em Beirute quando o cessar-fogo foi obtido pelo diplomata americano Philip Habib, no verão de 1984. Os sinos das igrejas repicavam. Tiros eram disparados para o ar por libaneses eufóricos. Mas… o que vinham fazer naquele momento os aviões israelenses sobre Beirute? Eles cruzaram 220 vezes os céus da cidade. Despejaram 44 mil bombas. O presidente Ronald Reagan chamou Beguin ao telefone e transformou a saudação israelense, shalom (paz), numa ordem.

Esse era Sharon. O general Moshe Dayan só não o levou certa vez à Corte Marcial porque não ficaria bem julgar um oficial por ter feito mais do que o mandado. Normalmente, julgam-se militares que nada fizeram, acovardaram-se, ou fizeram de menos. Fora do governo, só lembrado nas ruas como o “buldôzer”, ele mudou de vida. Tentou ser recebido na Casa Branca. Ignoraram-no. Costurou um acordo secreto com o Líbano. Invalidaram-no imediatamente. Organizou excursões turísticas e políticas às colônias da Cisjordânia e Gaza, quando os EUA as denunciaram como “obstáculos para a paz”. Repudiaram-no. Mas ele voltou. E precisou apenas passear provocativamente pela esplanada do Templo, onde hoje estão as mesquitas de Omar e Al-Aqsa, para provocar uma nova intifada palestina que o reconduziu ao poder, há cinco anos.

2014151223_ariel-sharon020114Os israelenses o elegeram como antídoto ao terrorismo crescente e aos distúrbios permanentes na Cisjordânia e Gaza. Só ele, Arik, para enfrentá-los. Aharai! Dominante, durão, Sharon reduziu a sua própria oposição a fragmentos no Parlamento. Com a estratégia militar de surpreender a todos, mas agora em guerra política, ele abandonou o partido nacionalista de direita Likud, que fundou à revelia de Beguin, e criou o Kadima, ou “Pra Frente”, mais ao centro. Causou um terremoto em Israel. Agora, ele admitia a ideia de desterrar algumas das colônias da Cisjordânia de que tanto antes se orgulhara e defendera. O herói de guerra passou a ser visto também como um herói da paz. E um traidor.

Aharai! O Kadima já era o favorito das eleições de março. Mas o Kadima era Sharon. E Sharon retirou-se para o seu rancho no dia 4 de janeiro de 2006, onde se preparava para uma míni cirurgia no coração na manhã seguinte, quando foi surpreendido pelo seu último e imbatível inimigo, o próprio corpo. Um acidente vascular cerebral (AVC) o derrubou ao chão. Levaram-no de picape para o hospital. Se fosse de helicóptero, lamentaram médicos na época, haveria mais chances de salvá-lo. O general resistiu oito anos até render-se: seus órgãos o abandonaram, um a um.

Um âncora da TV israelense, Yair Lapid, perguntou-lhe numa entrevista pouco antes de sua última batalha chegando agora ao fim: “O que o povo ainda não conhece a seu respeito?” Ele sorriu timidamente, e revelou: “Eu adoro filmes românticos.”

images

Os aiatolás do Peru

A novidade é a notícia, antiga, ser publicada neste domingo, 31 de julho, pela agência do Estado Islâmico (EI), Amaq. A notícia reproduz uma reportagem do jornal pan-árabe Asharq Al-Awsat sobre o avanço do xiismo iraniano no Peru e, de lá, para outros países sul-americanos. Enfim, os aiatolás estão chegando. Numa breve passagem pela Argentina, em 1994, deixaram um saldo de 84 mortosO Irã político e religioso chegou ao Peru, de onde quer se espalhar para outros países da América do Sul.

 

hezbollah-755x380

http://notihoy.com/libanes-detenido-en-peru-reconocio-ser-miembro-de-hezbollah/

O Irã político e religioso chegou ao Peru, de onde quer se espalhar para outros países da América do Sul.

A informação é de Asharq Al-Awsat, 1º jornal pan-árabe impresso em 4 continentes. A reportagem sobre o Peru iranizado foi reproduzida pela agência de notícias do Estado Islâmico, EI.

Por que esta notícia, requentada, foi publicada hoje? pe

Muitos peruanos já se converteram ao xiismo e fundaram uma entidade a que batizaram de Hezbollah Branch in Peru, cópia do libanês. O objetivo declarado é o de importar a revolução iraniana.

A maioria dos convertidos peruanos é da região montanhosa de Abancay. É dali que 20 homens foram levados à Teerã para serem doutrinados em xiismo.

O programa de TV Punto Final, do Peru, mostrou um grupo de jovens peruanos com um sheik xiita reivindicando o direito de propagar o xiismo da mesma forma como é permitido ao cristianismo.

A polícia peruana deteve alguns suspeitos ligados ao Hezbollah libanês quando entravam no Peru. Um especialista em influência iraniana na América Latina, Joseph Humire, diz, citado na reportagem, que o Irã financia o Hezbollah do Peru “com dinheiro de contrabando”.

1iraO “aiatolá” de Caracas, Nicolás Maduro, dá apoio integral à implantação do Hezbollah na América do Sul. O falecido coronel Chávez e o então líder iraniano Ahmanidejah tiveram uma relação intensa, boa parte da qual misteriosa. O Irã é acusado de ter participado diretamente do atentado contra a Associación Mutual Israelita Argentina (AMIA), em 1994, que deixou um total de 85 mortos.

Os dias em que não morri

Israel_Lebanon_Border

Foto Creative Commons

Por duas vezes, na guerra do Líbano, vivi a morte bem de perto. Mas sobrevivi e estou aqui, agora, relembrando. Nada heroico. Apenas o dia a dia de um correspondente.

Moussa-al-Sadr

Moussa Sadr

 

Saí correndo de Beirute atrás de um telex ao norte de Israel. Estava sem contato com a redação do jornal, em SP, desde que uma bomba destruíra, três horas antes, o gerador do hotel Commodore, onde ficávamos os repórteres que cobriam a guerra no Líbano. Sabotagem ou coincidência, sempre que o noticiário do dia era desfavorável à OLP, buuuum!, acabava a luz — e adeus transmissão de filmes, fotos e textos.

Peguei a estrada do litoral, deformada pelas sapatas dos tanques no asfalto amolecido pelo sol. Os correspondentes de tevês iam até Damasco, mais perto. Mas eu, barbudo, com carro com placa israelense e nome judeu, não seria bem recebido pelos sírios. Perto da veneranda cidade de Tyre, fundada em 2750 a.C., entrei num desvio sem mais asfalto, uma reta poeirenta com poucas casas do lado direito. Avistei uma multidão em passeata. Era muita gente, segurando cartazes e gritando.

E aí? Que fazer? Dar meia-volta, fugir? Isto já faria de mim uma presa, ou alvo de tiros. Ficar? Prisão certa, ou linchamento imediato. Não poderia acelerar contra a multidão… Então, travei portas e vidros automáticos, à espera.

Aaichiye_IDF_military_base_sounth_lebanon_1991

Israel no sul do Líbano, foto Creative Commons

A turba vinha furiosa. Reconheci a foto que muitos brandiam. Era o imã Moussa Sadr, líder xiita do sul do Líbano, nascido na cidade sagrada de Qom, no Irã.

A multidão engolfou meu carro, que balançou, balançou, mas ninguém tentou abrir a porta. Cegos de ódio, nem me notaram. Eu tremia. De repente, vi a frente livre. Saí devagar, depois acelerei fundo. Alguns quilômetros adiante, no asfalto de novo, parei para comprar água e saber o que estava acontecendo. Ouvi: Moussa Sadr havia desaparecido desde que seu avião fez escala em Trípoli, na Líbia, a caminho de Roma. Certos de que ele fora assassinado, seus súditos exigiam a cabeça do coronel Muamar Kadafi. O mistério não foi desfeito até hoje.

No mesmo Citroën esportivo branco, com placa do país invasor, me perdi uma noite em Beirute. Não existiam GPS, Waze e nem celular. Um sinal indicara que tinha entrado na “terra de ninguém”, uma zona neutra separando os inimigos. Como sair dali? E, dependendo da saída, quem encontraria?

Rodei a 20 km/h até ler uma placa em francês, Café du Brésil. Só podia ser um sinal para mim. O problema era um monte de terra, talvez uma trincheira abandonada, bloqueando o caminho. Mas fui! Acelerei, saltei ao bater na barreira, e pousei diante de alguns soldados que apontavam os fuzis para mim. Talvez não tenham atirado por causa da placa israelense. Ou deveriam, por isso mesmo: poderia ser um camicase com carro roubado. Pegaram meus papéis e foram checar com o serviço de imprensa, em Jerusalém, se eu era mesmo repórter credenciado. E a guerra continuou por mais cinco meses.

 

Censura e guerra: XXXXXXXXXXX

Meu texto, no telex, de repente truncava. Repetia, truncava de novo. Ia tentando até que um teletipista da Reuters/Tel-Aviv avisou que me chamavam ao telefone. Era o censor militar. Não podia transmitir meu artigo. Surpresa: nele apenas dizia que, como o tempo tinha melhorado, Israel poderia atacar o Líbano a qualquer momento. Nada mais. Fui ao Censor Militar, ali perto, e combinei que era preciso avisar o jornal que faltaria, porque me esperavam com espaço aberto. Concordaram, desde que me ativesse a um breve aviso. Respeitei, só que acrescentei, no final do recado, que passaria a noite lendo Camões, cujos poemas, nessa época, entravam no que era censurado no Estadão. A invasão ao Líbano tinha começado enquanto tentei transmitir meu artigo. “Nosso correspondente censurado em Israel”, publicou o jornal em sua primeira página.

download

Robert Capa/Magnum

 

“Na guerra, a verdade é a primeira vitima” — disseram Ésquilo, o dramaturgo grego, e oBqnoKJJCYAAk48E senador norte-americano Hiram Johnson, em 1917, entre outros a que se atribuem a mesmíssima repetida frase. Para alguns correspondentes de guerra reunidos em Jerusalém, a primeira vítima, porém, tem sido a liberdade de imprensa.

No seminário que examinou os meios de comunicação e as guerras no Líbano, no Iraque e Iran e no Atlântico Sul (Malvinas), promovido pela Universidade Hebraica de Jerusalém, falaram (em 4/3/1983), três correspondentes de três diferentes guerras para um auditório de outros veteranos de guerras, cientistas sociais, políticos, diplomatas, estudantes de jornalismo e até encarregados pela censura militar em Israel.

David Shipler, do The New York Times, concentrou-se na guerra do Líbano com a experiência de quem cobriu a guerra no Vietnã, entre 1973-75. Entre 1975-79 foi correspondente em Moscou, e desde 1979 está em Jerusalém.

“Nenhuma guerra é simples”, afirmou Shipler abrindo o seu depoimento, “e a do Líbano excedeu… Em complexidade: aqui temos OLP, sírios, xiitas ao sul, sunitas ao norte, maronitas, drusos libaneses, drusos israelenses, judeus, árabes da Cisjordânia, árabes de Israel, cristãos poderosos, palestinos pobres…e cada um com sua preocupação específica. É uma imensa tarefa, que pode ter três grandes divisões – militar, política e humana”.

Depois de detalhar, em termos profissionais, as três principais áreas de trabalho, Shipler explicou porque, desde Israel, decidiu cobrir a guerra da perspectiva política, deixando a militar para a sucursal de Beirute:

-Simples; eu tinha censor militar, e o Times, outro correspondente em Beirute. Era melhor que uma reportagem tivesse origem onde não existisse censura.

Shípler, como vários outros correspondentes estrangeiros em Israel, tentava alcançar os locais em que se desenvolviam as ações militares, mas ficou imobilizado a primeira semana inteira da guerra. E revelou o seu mais estranho problema com a censura que todos sofríamos, e o denunciávamos na abertura de nossos artigos:

-Liguei para Timor Goksel, porta-voz das forças de paz da ONU, no sul do Líbano, e ele me passou um retrato completo de quanto armamento e tropas Israel estava concentrando para a invasão. O censor de Israel cortou. Foi a primeira vez que vi censurarem as Nações Unidas, e falando de um outro país. A censura foi muito rigorosa no começo, mas a partir da segunda semana, relaxou. As informações que obtínhamos em Jerusalém, de fontes militares, estavam atrasadas 24 a 36 horas em relação às divulgadas pelas rádios libanesas.

Quando entrou no Líbano, foi com escolta:censorship

-Gente interessante era escalada para escoltar a imprensa. Não me sentia vigiado, nem sentia meus entrevistados libaneses intimidados. Não podia ir aonde quisesse. Campos de refugiados, por exemplo. A explicação era a de que “terroristas estavam ainda operando lá”, e mesmo que me responsabilizasse pela minha vida, não me conduziam.

-Nem sempre foi assim: tivemos muito mais liberdade de ação no front israelense – discordou um freelancer norte-americano, Josué Muravchik, que desfiou uma lista de vinte minutos de “erros da grande imprensa no tratamento da guerra no Líbano”. Borns cobriu a guerra de 1973 em Israel, e a de Chipre, em 1974. Trabalha para a televisão belga, e tentou cobrir a guerra entre Iraque e Irã, cujos números dos comunicados iniciais esgotavam a quantidade de aviões, de tanques e de soldados que ambos os lados alegavam possuir.

-Foi a experiência mais frustrante que já tive. Fui antes para Amã, na Jordânia, e depois para Bagdá. Levei dois dias para convencer um diplomata belga a me hospedar, livrando-me assim da perseguição da censura oficial. Mas me encontraram. Disseram-me: todos os jornalistas estão naquele hotel, e você tem que reunir-se a eles.

No hotel da imprensa, na primeira noite, ele tentou ir à rua, dar uma volta. “Onde você vai? – perguntou-me um soldado iraquiano. “Por aí…”. Senti-me humilhado. O soldado dizia: dentro do hotel você tem seus amigos, teletipos, bar, restaurantes…não está bom? Toda manhã, aparecia um oficial, e todos brigavam para conseguir um passe de ida ao front, ao campo de batalha. Parecia um paxá escolhendo suas escravas. Um dia, levou-me, com outros dois jornalistas. Chegamos a Basra, e ele ordenou: “Vocês têm dez minutos”. E esta foi minha experiência na guerra Iraque-Irã. Voltei para Amã. Voei para Bruxelas. Tinha um filme com barulhos de tiros, e alguns navios, em Basra.

Já Michael Nicholson, da Itn inglesa, veterano de 14 guerras, foi patriota para o navio de guerra inglês Hermes, em direção às Falkland/Malvinas.

“Claro que apoiava a partida da Marinha Real Britânica. Mas meu apoio não me impediu que me tornasse um crítico feroz de como a guerra foi manipulada”.

Nicholson contou que, “para entrar a bordo, recebi um livrinho, este (e o mostrou)… Diz aqui: regulamentos para correspondentes acompanhando uma força operacional. Data: 1958. O livreto tinha sido impresso depois da campanha do Suez. Seus dois princípios básicos e contraditórios: 1 – a essência do sucesso na guerra é o segredo, 2 -a essência do sucesso em jornalismo é a publicidade. E tentava conciliar o irreconciliável, recomendando “cooperação mútua”. É isto: o governo tinha certeza do papel que deveríamos desempenhar”.

524e8b249f8ceap_239_vietnam-real-war-web_webp__1280×932_

Nick Ut/AP, Vietnã, prêmio Pulitzer de 1973

O resultado, para Nicholson, é que “a guerra das Falkland foi a pior para repórteres desde a guerra da Crimeia”. Mas acrescenta: em termos de televisão. Em 1854, um correspondente numa expedição inglesa levou 20 dias para despachar seu material. Em 1982, “foram necessários 23 dias para ser transmitido meu vídeo sobre o cessar-fogo em Port Stanley”.

Nicholson explica: “Estávamos a três milhas da primeira estacão de satélite. E cobriam esta distância, diariamente, vários barcos de suprimentos. Havia ainda satélites militares e um americano, que a ABC, NBS e NBC, as cadeias americanas, tentaram nos passar, via Pentágono, mas o governo inglês não aceitou. Meu editor foi reclamar oficialmente. Sabem o que ele disse a primeiro-ministro?

-Os filmes de Nicholson têm relevância histórica. Como os pergaminhos do Mar Morto…

Os filmes dos correspondentes no Atlântico Sul não sofriam censura imediata, nem os seus comentários, mas também não chegavam a Londres. A tevê “parecia um filtro nacional. Vermelho, cor de sangue, tinha que ser evitado, e era o que se derramava cruelmente nesta guerra”. Nicholson fala que o governo inglês sentia “a síndrome da guerra do Vietnã, tolhendo a imprensa das informações, no momento em que ocorriam. Esqueceu-se, porém, de que o problema era o Vietcongue, e não a tevê CBS…”

Para Nicholson, a guerra foi reduzida a transmissões de sua voz, ilustrada por artistas em Londres, já que imagens não chegavam. “As ilustrações não eram ruins. Mas estamos na idade eletrônica, dos satélites, e me senti impotente”.

O líder do Partido Trabalhista, Shimon Peres, num almoço que interrompeu o debate sobre os três depoimentos de três situações de guerras em partes diferentes do mundo, defendeu a liberdade de imprensa, prometendo transformá-la, se formar um governo, num quarto poder institucional. Criticou “alguma limitação” na imprensa israelense. E aí começaram protestos. E também um outro debate, porém interno, e de Israel.

eddie adams_large

Eddie Adams/AP, 1968, Saigon

Fala o censor (sem censura)

O chefe do serviço de censura militar de Israel, general Yitzhak Shani, acha “essencial” a imprensa, em tempo de guerra.

Dita por um censor, a declaração parece contraditória. Mas o general Shani parece inclinado a desafios quando se reúne com jornalistas para uma conversa como essa, no seminário sobre a imprensa e as guerras, em Jerusalém.

Zeev Hefetz, ex-diretor dos serviços de imprensa do governo israelense, apresentou-o como “o mal”, e o general Shani sorriu, mexendo em volumoso bigode. “Mal necessário”? – perguntou aos correspondentes de guerra reunidos no hotel Hilton. E falou da censura “normal” dos regimes totalitários. Falou da censura por intimidação – jornalistas ameaçados de morte, ou assassinados, no Oriente Médio, nas Américas latina e central. E da censura por restrição ao acesso repórteres impedidos de acompanhar a rebelião em Meca, ou as batalhas do Afeganistão, no Iran, no Iraque, nas Malvinas. Nesta lista, Zeev omitiu o Líbano. Para ele, aqui só houve restrição nos 15 primeiros dias da guerra.

-Exceto no Vietnã, houve censura nas duas grandes guerras mundiais, na da Argélia, em todas as guerras de Israel.

E concluiu: “é um mal necessário”. Antes de passar a palavra ao general Shani, o chefe da censura, lembrou: “a censura é anacrônica, em Israel, em tempos de paz”.

O general Shani provavelmente considera também “essencial” a imprensa, em tempos de paz. Mas não o disse. Seu tema era a guerra. E a censura, neste contexto, é uma arma. Uma arma que surpreendeu o exército da Síria.

Sem censura, as declarações do general Shani:

-Na minha opinião (ele chamou-se rindo de “o rei do mal”, completando a apresentação de Zeev Hefetz), a proeza da censura, nesta ultima guerra, foi a de surpreender os sírios. Primeiro, porque evitamos que fossem publicadas as notícias da mobilização de nossos reservistas, dias antes de a guerra começar.

(Olhando para os correspondentes, Shani prosseguiu)

-A maioria de vocês sabia. A maioria submeteu artigos. Não os aprovamos. Segundo: o intenso movimento da nossa artilharia e blindados para o norte, pela rodovia da costa. Qualquer criança via o que se passava. Novamente, vocês sabiam, vocês tentaram enviar noticias, e não puderam. Terceiro: quais eram as intenções do exército e que decisões de guerra tinha adotado o governo? Não sei, agora, se todos vocês sabiam. Quem soube, nada pode mandar. E quarto: depois da formal proclamação de guerra, vetamos a publicação da real dimensão da operação, de detalhes de planos e do avanço das tropas. Isto surpreendeu os sírios.

O general Shani sublinhou: “não interferimos em nenhum momento no debate pró ou contra a guerra. Nem somos contra jornalistas…E queremos ser leves: trabalhamos no horário da imprensa. Achamos também que o público tem o direito de saber. Só interferimos com as informações que poderão alcançar o serviço de inteligência do inimigo, ou que prejudicarão a segurança do estado”.

O general Shani tem outra frase contraditória. Diz: “ser uma real democracia, como o é Israel, e ter censura, parece conflitante, difícil de entender”. Ele explica que a base legal da censura em Israel vem de regulações de emergência do tempo britânico na Palestina. E prevê a proibição de “matérias que poderão prejudicar a defesa de Israel, a segurança publica, ou a ordem publica”. Por um acordo entre as forças armadas e os editores dos jornais israelenses, o único objetivo do censor é o de evitar a publicação de informações sobre segurança que podem ser úteis ao inimigo.

Não há censor político – acrescenta o “rei do mal”. E mesmo a censura militar pode ser contestada. Desde 1949, há 180 casos de contestação legal – da imprensa contra a censura, e vice-versa.

Um outro general também falou na reunião que encerrou o seminário da imprensa e a guerra, realizado no pais das guerras, por promoção da universidade hebraica de Jerusalém. O general Yacoov Even é o chefe dos porta-vozes militares. Quer dizer: ele é a voz, divulgada e amplificada por vários assessores. Um outro “rei do mal”.

-Mal como um rifle, ou uma penicilina. Tudo depende do uso que se faz. Em tese, sou o inimigo do censor. Eu tenho um maravilhoso exército para mostrar, mas ele… ele quer esconde-lo. Mas sou eu o responsável pela falta de acesso tão crítica nesta guerra. Injustamente criticada.

O general Even lembrou que o maior inimigo desta guerra, o líder da OLP, Yasser Arafat, que chamou apenas de Arafat, recebia informações através de rádio e jornais, em seu QG de Beirute.

-Não era, por exemplo, como um país, a Inglaterra, que tem redes de espionagem, sofisticados radares, aviões… Então, espalhei uma certa neblina. Estratégica neblina, não estúpida. Por cinco dias, não explicamos o que se passava. E atingimos totalmente o nosso objetivo militar contra a OLP. Isso não quer dizer que a informação não era dada. Em Israel, sabia-se quase tudo. Câmeras estavam com as tropas. Depois, abri as fronteiras aos repórteres, no quinto dia.     Centenas entraram inicialmente; depois, milhares.

O general Even não quis entrar na discussão dos números de mortos que começou logo no primeiro cessar-fogo da guerra. “Era o irmão do Arafat quem dava os números do outro lado. Eles eram fascinantes, de um ponto de vista jornalístico. Fornecemos os números que tínhamos, e nossa preocupação, sempre, foi a de não perder a credibilidade com a imprensa. Mas ele frustrou-se: o acesso dado à imprensa, no Líbano, foi um bumerangue. “Atacavam-nos com artigos distorcidos, mentiras, inocência, fotografias selecionadas…”

4587-1Even tem “três sonhos”: o de que não haverá uma nova guerra; e se houver outra, que o exercito de Israel esteja muito bem preparado e equipado; e, por fim, que a imprensa seja “decente” na cobertura.

Um correspondente de guerra inglês fez o elogio da censura, durante uns 20 minutos. Achou-a necessária, para a democracia da Inglaterra. Um colombiano, observador no seminário, falou de raptos de jornalistas, a imprensa pressionada pelo governo, pela oposição, pela guerrilha, e quis saber, de censores, especialistas em comunicação, e outros jornalistas: “o que fazer?” a professora Dina Goren, do curso de comunicações da universidade de Tel-Aviv, disse-lhe francamente: “não tenho uma resposta”, e o tema não foi elaborado, por outros, porque o tempo se esgotava, dando apenas para novas duas perguntas. Um repórter perguntou:

-Mas se há censura militar, por que se proíbe o acesso?

Resposta do general Shani:

-Porque Israel não pode confiar no autocontrole ou na integridade de dezenas de repórteres estrangeiros. O jornalista estrangeiro é estrangeiro. Sua obrigação é para com seus leitores. Então, basta que ele pegue um avião, vá a Chipre e de lá envie seu artigo para o seu jornal.

A última pergunta foi sobre se os telefones dos correspondentes são escutados, como há pouco tempo revelado.

– O censor interfere na ligação se estiver sendo transmitida uma informação militar não submetida antes à censura. Mas isto não é novo para você…- respondeu o general Shani, provocando risos.

– Certamente não é respondeu o repórter. – Mas perguntava-lhe sobre ligações locais…

– Não há censura em ligações locais – insistiu o general Shani.

– Não perguntei se censuram, perguntei se vocês escutam…

-Não.

 

 

 

 

ETERNAS POLACAS

Belle

A rosa não se compara

A essa judia rara 

Criada no meu país

Rosa de amor sem espinhos

Diz que são meus seus carinhos

E eu sou um homem feliz

moreira

“JUDIA RARA”, DE MOREIRA DA SILVA, QUE VIVEU COM UMA POLACA.

um

As polacas estão ressuscitando. Párias em vida, abandonadas por 30 anos no gueto em que se enterraram judias, em Cubatão, elas começam a renascer dos túmulos restaurados até junho pela Sociedade Cemitério Israelita de São Paulo, já personagens de quatro livros; estrelas de três projetos teatrais; tema de monografia, tese e conferências; e fantasmas atormentando a comunidade judaica brasileira, dividida entre apenas reconhecê-las, ou enfim aceitá-las, ou enterrá-las para sempre.

As polacas do “povo da Bíblia” estavam confinadas ao Deuteronômio: “Não haverá dentre as filhas de Israel quem se prostitua no serviço do templo, nem dentre os filhos de Israel haverá quem o faça” (23:17). Elas agora parecem ressurgir em outro momento bíblico: “Toma a harpa, rodeia a cidade, ó prostituta, entregue ao esquecimento; toca bem, canta muitos cânticos, para que haja memória de ti” (Isaías 23:16).
Certidão – Um “aluvião de Messalinas” invadiu o Rio de Janeiro em 1872. “A horda de judias russas, alemãs e austríacas começou a aparecer na roda cortesã, nos teatros de última classe, nas ruas mais concorridas, mulheres de ademanes desembaraçados, rostos formosos, trajando com luxo e levando presa no olhar a atenção dos transeuntes que as observavam”, como registrou Os Cáftens, um folheto de Clímaco dos Reis, considerado pelo diretor do Museu Histórico em 1955, Gustavo Barroso, “a certidão de nascimento” da prostituição de porta aberta inaugurada pelas “famosas polacas”.

tresElas “paravam nas esquinas, nos corredores e jardins dos teatros, em toda parte e, com uma desenvoltura até então desconhecida, distribuíam bilhetes com seus nomes e moradias…” O Estado de 25 de julho de 1879, então A Província de São Paulo, publicou a notícia de que “duas alegres raparigas deliberaram dar algumas voltas na cidade em um elegante carrinho particular de passeio, tirado por um cavallo, e guiado por uma dellas, de nacionalidade russa, ao que ouvimos contar, e entendida naquellas façanhas hyppicas”.
Uma verdadeira “scena”, como acrescentou: “Assim fizeram, percorrendo galhardamente algumas ruas da cidade com grande espanto dos basbaques em geral, e dos urbanos em particular.” Nas ruas da Liberdade (“ironias do acaso!”), as duas foram presas e levadas ao chefe da polícia, que as libertou “provando que aqui no Brazil, como na Rússia, é permitido à mulher guiar um carro particular”.

OITO

Foto de Sílvio Luiz    

Os “biombos-alcouces” e “casinhas-bordéis” proliferaram rapidamente no começo do século no Rio e em São Paulo. “Neles, há um só quarto, uma só prostituta e um pequeno pátio, onde os homens que esperam formam fila”, descreveu o jornalista Robert Neumann, autor de um livro de investigação sobre o tráfico de brancas, 23 Mulheres, publicado no Brasil em 1941.

penteado

Foto: www.scoopnest.com/

“Abre-se a porta e aparece a mulher, vestindo camisa de cores berrantes”, ele continua. “O freguês que foi despachado passa sem lhe dizer palavra; e o próximo entra, a porta se fecha.” Atônito, conclui: “Tão incrível é o número de fregueses recebidos num único dia que, antes de o revelar, necessário se faz dizer que ele foi confirmado pelas autoridades, pela sociedade judaica de socorros Ezras Noshim e pelos investigadores da Liga das Nações.” Historiadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Margareth Rago “morreu de medo” ao penetrar no mundo misterioso das polacas e de seus rufiões para o livro Os Prazeres da Noite: Prostituição e Códigos da Sexualidade Feminina em São Paulo, 1890-1930(Paz e Terra, 1991). “Fui assustada por gente da comunidade judaica que não queria desenterrar o assunto.” Perguntavam-lhe:
“Mas por que você quer mexer com isso?” Ao saber agora das obras de restauro no cemitério de Cubatão, ela se mostra curiosa e irônica: “Redenção?” Rago foi muito além da “geografia do prazer” no submundo de São Paulo. Seguindo o rastro deixado há 50 anos no livro Le Chemin (O Caminho) de Buenos Aires, pelo poeta e famoso repórter Albert Londres, queimado como um arquivo num suspeito incêndio de um navio em 1932, ela identifica no Brasil os tentáculos dos poderosos “maquereaux”, os gigolôs franceses, e dos “polaks”, traficantes de judias das aldeias pobres do Leste Europeu.

jacob-do-bandolim

Jacob do Bandolim: filho da polaca Taquel Pick

Máfias – Quando perseguidos na Argentina, os rufiones refugiavam-se nas filiais paulista ou carioca, onde mantinham até “escolas de prostituição”. As máfias francesa e polaca importariam para a América do Sul cerca de 1.200 mulheres por ano, embarcadas nos portos de Gênova, Marselha, Anvers e Hamburgo.
Mas “é praticamente impossível estimar a quantidade de prostitutas que vieram traficadas da Europa”, conclui Rago. Como “também dificilmente saberemos quantas vieram por vontade própria, ou iludidas com promessas de casamento e perspectivas estimulantes de enriquecimento”. Nos bordéis distinguiam-se as estrangeiras, “embora as raras estatísticas disponíveis registrem uma porcentagem superior de brasileiras”. Madame O, de 80 anos, testemunhou a belle époque paulista como costureira francesa. E nunca encontrava brasileiras nos bordéis.

chevra kadisha
“Por quê?”, perguntou-lhe Rago, numa entrevista em 1989. “Porque elas não eram disso no meu tempo”, respondeu. “Quando cheguei ao Brasil, não havia mulheres (brasileiras) não… tudo francesas e polacas, muitas.” Na música de João Bosco e Aldir Blanc, O Mestre-Sala dos Mares, de 1974, as mulatas já se tornam majoritárias:
…Foi saudado no porto Pelas mocinhas francesas Jovens polacas E por batalhões de mulatas. Está no Gênese (38:24): “Passados quase três meses, disseram a Judá: ‘Tamar, tua nora, se prostituiu e eis que está grávida da sua prostituição. Então disse Judá: ‘Tirai-a para fora, e seja ela queimada.” Está em Levítico (21:9): “E se a filha dum sacerdote se profanar, tornando-se prostituta, profana a seu pai; no fogo será queimada.” Os judeus brasileiros não queimaram as “curves” (prostitutas, em iídiche) de Santos, do Rio e de São Paulo. Mas lhes reservaram, “impuras”, o mesmo chão dos suicidas que ousam findar a vida dada, e então só tirada por Deus: junto aos muros dos cemitérios. “Die linke”, esquerdistas, marginalizadas, ou “as outras”, na tradução do jornalista Alberto Dines, as “curves” abriram seus próprios cemitérios, rezaram em sinagogas próprias e congregaram-se em sociedades de assistência mútua. Viveram e morreram judias. Mais do que esquecidas, expiaram. Abolidas, perpetuaram-se. Eternas polacas.

19970525-37839-nac-0033-ger-a30-not-aeexewp

19970525-37839-nac-0034-ger-a31-not-ghexewp

DESTA SEGUNDA PÁGINA, NÃO TENHO O TEXTO. MAS ESPERO QUE, CLICANDO NELA, DÊ PARA AMPLIAR E LER.

 

 

 

 

A aldeia brasileira no Líbano

by Celkadri - Licensed under Public Domain via Wikipedia

by Celkadri – Licensed under Public Domain via Wikipedia

Al Bireh, Líbano central (12/07/1982) — A paisagem que se avista desta aldeia escondida num dos picos de uma cordilheira é tão impressionante quanto perigosa: abaixo, o verde vale de Bekaa, com seus caminhos minados, plantações de cerejas, tanques movendo-se camuflados e um céu muito claro, sem nuvens – os trovões esporádicos são disparos de canhões.

Surpreendente, nesta aldeia que esteve ao centro de uma das maiores batalhas aéreas do mundo, envolvendo mais de cem aviões sírios e israelenses, em 9/6/1982, é a informação de um de seus 1.300 habitantes:

-Aqui, todos falamos português e “arabês”.

Cinco mil habitantes de Al Bireh vivem hoje no Brasil. E 300 brasileiros estão aqui, no fogo cruzado de uma guerra que não entendem.

-Somos gente da roça, sabe? – explica um deles.

No dia “daquela chuva de bombas” morreu um brasileiro, o Sr. Ali Bacha, que viveu 22 anos entre o Paraná e São Paulo. Uma de suas filhas, Fátima, lembra:

-Meu pai tinha bronquite. E o ar daqui faria muito bem a ele, aconselhou um médico de São Paulo. Lá, ele vivia sufocando de ataques… Então, viemos. Como passou a não sentir mais nada, reuniu a família, resolvendo: vamos ficar aqui…

No dia “daquela chuva de bombas”, quando Israel atacou as baterias de mísseis soviéticos Sam-6 instaladas no vale de Bekaa, o Sr. Ali Bacha foi respirar na varanda de sua casa. Seu filho, Mohamed, e uma prima, Kessem, australiana, sentaram-se ao lado. Na varanda, sobre o penhasco, um privilegiado mirante, caiu uma bomba.

Mohamed, 20 anos, brasileiro, foi ferido na perna direita, “o osso saindo para fora”. Estilhaços queimaram vários pontos do corpo de Kessem. E o Sr. Ali Bacha morreu.

Os brasileiros de Al Bireh não entendem a guerra:

-Só pode entender isto quem tem “cabeça grande” – diz um deles.

Não a entende, também, o aiatolá da aldeia, oficialmente conhecido como o Sheik de Ipanema. Na verdade, ele pouco fala, apenas sorri, com seus 110 anos – “o ar daqui é milagroso”, comenta Fátima apontando para o líder muçulmano, a barba comprida e branca. “Se você o chamar de velho, ele sai brigando”.

Na noite “daquela chuva de bombas”, um tenente sírio surgiu, também ferido, ao pé da montanha de Al Bireh. Entrou num carro, o de um primo de Mohamed. Os brasileiros, querendo tratar de seus feridos, pediram socorro aos israelenses, já dominando grande parte do vale de Bekaa

Mas o sírio, vendo os israelenses próximos, abandonou o carro, e tentou alcançar uma casa, exatamente a casa para onde tinha sido levado Mohamed, à espera de uma ambulância.

-Ele não conseguia mais andar, e aí deitou na frente da casa. Pegaram ele; estava uniformizado. Aí falamos para os israelenses: tem mais um ferido lá dentro.

Era Mohamed, levado então para o mesmo helicóptero em que seria transportado o tenente sírio, e os dois foram deixados, como agora se diz em Al Bireh, “no hospital policial”.

Três semanas depois, Kessem, a tia ferida de Mohamed, dava notícias, recuperando-se num hospital de Jerusalém, Hadassah. E o primeiro-ministro de Israel, Menachem Beguin, dava outras notícias, no parlamento: entre os prisioneiros de guerra, “há um brasileiro”.

Era Mohamed, preso com o tenente sírio.

-Mohamed, prisioneiro de guerra? – Perguntava a “gente da roça” de Al Bireh.

Muitas casas foram abandonadas. (Celkadri. Licensed under Public Domain via Wikipedia -

Muitas casas foram abandonadas. (Celkadri. Licensed under Public Domain via Wikipedia –

-Não, ele é dono de loja – diz sua irmã, Fátima, enquanto sua mãe, Bacha, balança a cabeça, confirmando-o:

-Ele nem conhecia o sírio…

Do lado israelense, a confusão cresceria quando um primo de Mohamed, ferido nos olhos, surgiria no mesmo “hospital policial”, portador, e com certo orgulho, de um documento provando ser ele um trabalhador – só que trabalhara no Iraque, outro país em guerra com Israel.

-Trabalhava no Iraque em “interpretação” de brasileiro para o árabe — explica um irmão de Mohamed.

-Como assim? – Pergunto.

-Sim, tem uma carteirinha que diz que ele é da “agência”, no Iraque.

-Mas que “agência” é esta?

-Chama Mendes Júnior, de Belo Horizonte.

Para brasileiros de Al Bireh, nada mais natural. Mas para israelenses, um brasileiro ferido com um sírio e que tem um primo vindo da “agência”, no Iraque, no meio de uma guerra, nada mais duvidoso. A embaixada do Brasil não pode obter nenhuma informação oficial do misterioso prisioneiro de guerra brasileiro, durante um mês. Mas ontem, sinal de que exaustivas investigações começam a esclarecer o que ocorreu, já será possível visitá-lo, como anunciou um funcionário do Ministério das Relações Exteriores, em Jerusalém.

Mohamed transformou-se no “herói” da guerra, em Al Bireh.

— Você viu ele? – pergunta-se a quem chega de Israel, como se fosse natural saber dele, entre os nove mil prisioneiros de guerra.

-Acho que ele vai chegar hoje – diz uma de suas irmãs, esperançosa.

Quando cheguei a Al Bireh, no domingo, e perguntei por brasileiros, já falava com um deles. E sendo também brasileiro, uma multidão me cercou, todos falando ao mesmo tempo, oferecendo café, chá, doces, almoço, e pedindo noticias dele, Mohamed. Quando um começava a se lembrar da guerra, a roda de crianças, homens e mulheres acrescentava detalhes, o Sheik de Ipanema sempre sorrindo, calado.

A guerra foi “aquela chuva de bombas: tanques, aviões, metralhadoras, todas as armas…”

-Enquanto “chovia”, o que vocês faziam?

-Íamos todos para o esconderijo.

-Que esconderijo?

-Junto com as vacas.

O estábulo fica embaixo da casa de pedras do Sr. Ali Bacha, que morreu na varanda. É um porão, com entrada independente, na descida do penhasco.

-Ontem (sábado) fomos para lá de novo – diz Fátima, sorridente.

Por que?

-Virgem Maria: ontem houve mais tiroteio. Caiu uma bombona aqui perto. Estávamos ouvindo a tia Kessem contar como foi tratada no hospital de Israel, e veio a bomba. A gente saiu correndo pro esconderijo. Minha tia queria voltar para o hospital. Dizia: não aguento mais…

-Quem atirava?

-Num sabemos…

-O que vocês acham dessa guerra?

-Ai, credo! Deveria ter um entendimento entre eles, pois tá morrendo muita gente que não tem nada que ver…

-Aqui, quantos morreram?

-Oito, e tivemos quatro “ferimentos”.

-Onde caiu a “bombona” de ontem? Ela veio de avião?

Um rapaz responde – o que trabalhava na “agência” do Iraque:

-De avião caíram as luminosas, aquelas que clareiam tudo. A bombona caiu aqui perto, e acho que foi de canhão.

-E quem disparou?

-Os sírios – e ao ouvir esta resposta, a viúva Bacha faz “pssssss”: — Não acuse ninguém, é perigoso”.

-Se eu soubesse que tinha mais guerra, não voltava para cá – comenta Kessem, o braço engessado, as duas pernas enfaixadas, exibindo um diploma de cidadania australiana.

-Você vai voltar para a Austrália?

-Não, se puder, vou para Israel.

Neste momento, ao mesmo tempo, muitos perguntam como é possível viajar para Israel.

Mohamed, o “prisioneiro de guerra”, contam em Al Bireh, já queria voltar para o Brasil desde que escutou as primeiras bombas, “muito tempo atrás”. Aqui, ele tinha uma loja de roupas feitas, sem nome, e que incendiou, atingida por uma bomba.

-Queimaram 20 mil dólares de roupas – conta o primo da “agência do Iraque”.

Depois, ele pergunta: – Mohamed vai receber indenização?

-De quem?

-Num sei… Israel não paga?

-E por que não os sírios?

-Não tem nada que os sírios não levaram daqui do Líbano. Ninguém podia ter um Mercedes ou Peugeot, que eles queriam. Levaram um Volvo de três mil dólares… Levaram uma geladeira.

Fátima acrescenta: -levaram minha máquina de costura.

E um outro completa:

-Olha, eles são “trombadinhas”.

-E os palestinos… Eles andavam por aqui?

A casa ao lado da família Bacha era o quartel-general da OLP em Al Bireh – mais um motivo para as suspeitas contra Mohamed.

-Eles entravam e saíam dela armados. Às vezes, pegavam alguém, davam “um pau”, e soltavam mais tarde. Se um outro apanhou, não vou fazer a mesma coisa, e apanhar também.

-Mas por que batiam?

-Não queriam pagar o aluguel da casa que tomaram na marra. Depois, mexiam com as moças. Eu não deixava minha irmã sair, porque se mexessem com ela, eu não aguentaria e iria tirar satisfações, e então me batiam.

-E os israelenses?

-Não conhecemos ainda. Chegaram agora. Quando subiram a montanha, pusemos bandeiras brancas em nossas casas. E cumprimentamos todos. Estão nos dando água, mas queremos que restabeleçam a luz… Não pudemos ver a copa do mundo: é verdade que o Brasil perdeu? Vai nos faltar comida, em mais dez dias. Precisamos do telefone para avisar nossa colônia no Brasil para nos mandar ajuda. E pedir que o banco de Shtoura abra de novo, para que possamos tirar dinheiro.

Trovões em Al Bireh. Vai chover?

-Não, estão em exercício — responde um oficial israelense.

Lá embaixo, na direção de Beirute, um caminhão com crianças saltaria sobre uma mina antitanque síria. Seis mortos. O grupo ia colher cerejas no vale de Bekaa, que do chão mostra outra paisagem: dezenas de tanques sírios destruídos, casas derrubadas, movimentação de tropas, “aquela chuva de bombas” que pode recomeçar a qualquer momento. Al Bireh está a três quilômetros da frente de combates.

Tiro em Londres. Guerra total no Líbano.

Inimigos mortais, depois parceiros em busca da paz (Foto: CBS)
Inimigos mortais, depois parceiros em busca da paz. (Foto: CBS 

Shlomo Argov

Shlomo Argov

O embaixador israelense em Londres,

Shlomo Argov, é baleado na cabeça por

terroristas palestinos. Era o que o general Ariel

Sharon esperava para caçar Arafat

e expulsá-lo do Líbano.

Vieram pelo mar Mediterrâneo, envolvendo-se de ar térmico contra mísseis infravermelhos, e lançaram o ataque mais devastador sofrido por Beirute desde o último bombardeio de 24 de julho do ano passado (1981). Em sete ondas sucessivas, das 15h15 às 18h15, os aviões israelenses despejaram bombas sobre objetivos pré-selecionados da OLP, atingindo-os com impactos diretos, e provocando incêndios, grandes explosões – “um pânico indescritível”, como narraram as rádios libanesas. A represália de Israel ao atentado contra o seu embaixador em Londres prosseguia ainda de noite, com a artilharia de longo alcance disparando contra baterias de foguetes Katiushas, no sul do Líbano.

“Não há mais cessar-fogo”, explicou o porta-voz do primeiro-ministro Menachem Béguin. “Aqui, não cairá mais Katiushas”, prometia o ministro Yacoov Meridor, na alta Galileia, confortando a população dentro dos abrigos antiaéreos, depois que uma salva de 20 foguetes matou um homem ao volante de seu carro, ferindo outras quatro pessoas, no começo da noite.

— O exército cumprirá esta promessa – ainda acrescentou o ministro Meridor. Outras fontes do governo, durante o dia, falavam em “exterminar a OLP”, ou em “dar o golpe final contra os terroristas no Líbano”. E se assim for, o cálculo de 30 mortos e de 120 feridos, provisório, na noite de ontem, pode ser apenas um trágico começo de uma guerra total, o ministro da Defesa anunciando que “não vamos entrar numa nova guerra de desgaste”.

Através de seus próprios serviços de informações, Israel já tinha concluído, pela manhã de ontem, que seu embaixador em Londres fora atacado, durante a madrugada, por terroristas árabes. Shlomo Argov, há três anos na Inglaterra, foi baleado, na cabeça, com uma pistola de nove milímetros, polonesa, quando se retirava de um jantar diplomático, no hotel Dorchester, em Park Lane, e encontra-se em estado crítico, no Hospital Nacional.

Para algumas fontes israelenses, Londres teria sido escolhida para o atentado “por parecer um terreno propício, depois da divulgação, sistemática, pelo governo britânico, de que Israel vinha fornecendo armamento à Argentina, clandestinamente” (era o início da Guerra das Malvinas). Haveria, na Inglaterra, assim, um clima anti-israelense, e por isso lá ocorreu o atentado, e não na Itália ou na Alemanha Federal, como era antecipado em Israel, com agentes infiltrados no mundo da guerrilha palestina na Europa.

Prevendo um atentado que marcaria os 15 anos da Guerra dos Seis Dias, exatamente hoje, diversas fontes israelenses passaram as duas últimas semanas advertindo publicamente a OLP: “o cessar fogo”, rompido duas vezes desde julho do ano passado, “envolve também todas as instituições judaicas no exterior, e não apenas a fronteira, no sul do Líbano”.

Após o atentado da madrugada de ontem, nenhum membro do governo de Israel repetiu qualquer ameaça. Este silêncio, raro, provocou o alerta máximo para a OLP, em todo o Líbano. Nas ruas, os israelenses, escutando “o céu carregado”, bombardeiros rompendo a barreira do som, previam, de uma forma geral:

— Vai ser um terrível golpe…

Caças israelenses a caminho do Líbano. photo credit: Thibaud Saintin via photopin cc

Caças israelenses a caminho do Líbano. photo credit: Thibaud Saintin via photopin cc

Antes que Londres revelasse a nacionalidade dos passaportes dos suspeitos presos, entre eles dois jordanianos, um iraniano e um sírio, o porta-voz do Ministério do Exterior, Avi Pazner, já anunciava:

— Não há dúvida de que terroristas árabes são os responsáveis.

Pazner acrescentaria, também, que “todas as organizações terroristas árabes tem seus QGs no Líbano”, indicando o objetivo de uma iminente represália israelense, e ainda revelaria, concluindo, que todas as representações israelenses no exterior já haviam recebido ordens para redobrar a segurança contra “uma nova onda de atentados”. Há dois meses, o segundo secretário da embaixada de Israel em Paris, Yacoov Bar-Simantov, foi assassinado, com um tiro na cabeça. Há dois anos, no mesmo centro londrino, em Park Lane, morreu uma aeromoça da El-Al, num ataque ao ônibus que transportava a tripulação israelense. Em 17/04/1971, o cônsul de Israel em Istambul, Ephraim El-Rom, apareceu morto, após ser sequestrado. Em 13/11/79, o embaixador em Lisboa, Ephraim Elder, foi baleado na perna. Recentemente, dois escritórios israelenses, um em Roma e outro em Paris, também foram atacados.

Saindo de uma reunião do governo de que nada filtrou, o chanceler Shamir apenas diria, “chocado”:

— Árabes terroristas…

Os aviões partiram, mesmo que o Shabat estivesse para começar. A última vez que atacaram em Beirute, em julho do ano passado, deixaram o trágico saldo de 180 mortos. As primeiras bombas caíram perto da concorrida rua Jaloul, visando a tribuna do estádio de futebol transformada em depósito de armas e munição da OLP. Depois, sucessivamente, em ondas que se repetiam a cada meia hora, bombardearam um centro de treinamento do El-Fath, ou “o Relâmpago”, de Yasser Arafat; a base da “Força 17”, que é um grupo especial dentro da OLP; e a entrada que leva ao aeroporto internacional, guardada por palestinos e por soldados sírios da “força de dissuasão árabe”. Segundo o porta-voz militar, em Jerusalém, os aviões “encontraram pouco fogo antiaéreo” – mas ele não revelou que aparelhos estavam sendo usados na operação. A aviação Síria não apareceu sob os céus de Beirute, como nos últimos dois raids aéreos israelenses.

Os campos de Sabra e Chatila também foram acertados – e, pela primeira vez, também a casa de Yasser Arafat, em Bahane, ao sul da cidade, mas ele estava na Arábia Saudita, tentando uma mediação para uma outra guerra, a do Iraque – Iran.

A OLP desmentiu qualquer responsabilidade no atentado em Londres, condenando-o, mas para Israel “a OLP não tem credibilidade, nem para desmentidos”. Só duas horas depois de iniciado o ataque, o porta-voz militar, em Jerusalém, o confirmou, publicando um comunicado oficial:

“Após o ataque criminoso contra o embaixador de Israel em Londres, Shlomo Argov, e após múltiplas violações do cessar-fogo de julho de 1981, o governo deu ordens ao exército de atacar objetivos terroristas no Líbano”.

Um ministro, Yitzhak Modai, explicando então o ataque, declarou: “O preço da nossa moderação tornou-se muito alto. Isto não podia continuar…”.

Beirute em chamas (photo credit: JiPs☆STiCk via photopin cc)

Beirute em chamas (photo credit: JiPs☆STiCk via photopin cc)

O secretário de Estado norte-americano, Alexander Haig, defendeu a represália israelense, dizendo que “Israel mostra ao mundo que ataques terroristas não ficarão impunes”. Mas o Departamento de Estado, em Washington, expressava “uma profunda preocupação com a nova onda de violência”, à véspera da quinta visita de seu diplomata Philip Habib, que obteve o último cessar-fogo, agora inexistente. Ele chega na segunda-feira, a Beirute, enviado pelo presidente Ronald Reagan. Os Estados Unidos consideram que “o cessar-fogo ainda é valido, embora frágil”. A Inglaterra e a ONU foram os primeiros a enviar notas de condenação ao atentado em Londres ao primeiro-ministro Menachem Béguin.

Reagindo ao ataque à Beirute, as baterias de foguetes Katiushas, no sul do Líbano, abriram fogo contra aldeias israelenses da alta Galileia. Os aviões reapareceram, bombardeando uma área entre o porto de Sidon e Nabatyie, ao mesmo tempo em que entrava em ação a artilharia de longo alcance.

O duelo, na fronteira, prosseguia na noite de ontem, toda a população da Galileia dentro dos abrigos antiaéreos. Um diplomata via um grande perigo neste duelo, “embora a represália israelense já tenha sido desproporcional ao atentado”. Lembrava-se que as tropas de Israel estão reforçadas na fronteira, ao norte, desde a anexação do Golan Sírio, “e elas podem avançar, invadindo o Líbano para destruir as rampas de lançamento de foguetes”.

Passeio pelo sul do Líbano

2015-01-02 21.15.54

O repórter e a escolta obrigatória (Foto Rina Castelnuovo, New York Times).

Vestir o colete à prova de balas, e estar protegido por uma escolta armada com fuzis M-16. É obrigatório, como apertar o cinto e desligar o celular, nos aviões. Estamos nos aproximando do Líbano, via Metula, em Israel.

Adiante, o “portão número um”. Antes de cruzar a fronteira, paramos num grande pátio, ao lado de uma fila de carretas carregadas com tanques cobertos com panos finos e manchados de marrom e verde, camuflagem transparente, e vários caminhões brancos da ONU com soldados explicitamente nórdicos, louros e já vermelhos do tímido sol de primavera.

Do comboio da imprensa, surge o gordo e simpático arquiteto de Beersheba, no deserto do Negev que, por 40 dias cada ano, assume seu posto de oficial do exército israelense, cumprindo o “Miluim” — o serviço militar compulsório. Ele sai do primeiro dos três carros, todos alugados com seguros especiais para regiões em guerra, e some num barracão de madeira. Vai obter o nosso “visto de entrada” final.

Ônibus com turistas param perto, onde há uma paisagem perfeita para álbuns de recordação: arame farpado, trincheira, a cerca eletrificada que se perde de vista, o chão de areia fina e constantemente varrida que grava as pegadas dos guerrilheiros que conseguirem a raridade de uma infiltração, enganando os sistemas de defesa, e a placa que indica” Perigo: fronteira”. Tem até tenda que vende envelopes com selos libaneses, e como são válidos para remessa dali mesmo, muitos turistas trocam a máquina fotográfica por canetas, então descrevendo suas experiências de guerra. Os soldados alimentam a ficção, posando com suas armas. Este lugar já foi conhecido como Fatahland, por causa dos guerrilheiros do Fatah, e como Haddadland, agora, quando o major rebelde libanês Saad Haddad o proclamou “Líbano livre”. (Cá entre nós, é mais uma Disneylândia do Oriente Médio, graças ao turismo de guerra.

— Israel está querendo retirar-se do Líbano, ou na verdade vai é invadi-lo outra vez? — pergunto aos dois soldados da escolta, enquanto instalam um potente rádio de campanha no meu carro. Não respondem. Aponto para a caravana das carretas com tanques camuflados. Aí um deles explica

— Ah, isto é normal, trocas no front…

Quando não estão mobilizados, em “miluim”, trabalham como carpinteiros, em Holon, ao sul de Tel-Aviv. Hoje farão a última viagem dos 40 dias de serviço obrigatório. “Maspik”, ou “basta”, diz um deles. Vai embora daqui a pouco para casa, onde o esperam mulher e filhos. Volta o oficial e arquiteto de Beersheba, papeis à mão, gritando “Yala, Yala” , “Vamos, vamos”, coletes fechadoa, fuzis ao alcance prontos.  Abre-se o portão número um: entramos no Líbano.

Atire-se um libanês

Ao mar, e ele voltará,

Com um peixe na boca.

Os buracos de tiros de todos os calibres já foram rebocados, na maioria das casas. Como feridas, cicatrizaram, mas deixaram marcas. Ainda se encontram montes de ruinas, aqui e ali. Quando um telhado está quase inteiro no chão é porque desabou implodido por uma granada lançada para dentro pela janela. Mas quando restam apenas pedras, não há dúvida; bombardeio aéreo, ou impacto direto de obus de grosso calibre.

Os sul-libaneses, emergindo depois da guerra de Israel contra a OLP, em meio à guerra civil destruindo o Líbano desde abril de 1975, confirmam o provérbio. Seus peixes tomam a forma de um número impressionante de novas obras. Alguns projetos revelam outra característica do libanês, a sua capacidade de recomeçar do zero, ou o gosto pelo risco: do contrário, como entender o grande hotel sendo levantado vizinho ao portão número um, na fronteira com Israel? Ou o cassino anunciado por uma placa, em frente a uma obra já adiantada?

Será que os sul-libaneses esperam que os israelenses virão lotar o hotel, e apostarão no cassino? E como é que viriam? Uniformizados e armados, como sempre? Ou com passaportes, turistas? Será que estão acreditando numa eventual e distante paz entre Israel e o Líbano, que então abriria a rodovia Jerusalém-Beirute?

O Chateau Beaufort, de onde a OLP disparava contra o Norte de Israel.

O Chateau Beaufort, de onde a OLP disparava contra o Norte de Israel. Thibaud Saintin via photopin cc

Os libaneses não são ingênuos: se voltam com um peixe na boca, depois de jogados ao mar, é porque tem “shatara”, malandragem, no melhor dos sentidos, uma mistura de astúcia e malícia, como me explica um libanês. Alem disso, são ambiciosos: muitas das casas que projetam enormes, luxuosas mansões, ficam inacabadas. Isto se vê por todo o país. Beirute está repleta de sobrados interrompidos no primeiro andar, com as colunas do segundo apenas iniciadas, abertas para o céu como esperando um milagre.

Observe-se bem as casas em construção no sul do Líbano: elas não têm fundações. E o que isto revela não pode ser chamado de otimismo. Os libaneses acreditam tão pouco no futuro imediato que nem raízes fixam. A explosão de um bujão de gás derruba um edifício libanês, como aconteceu no porto de Tiro, onde os israelenses tinham instalado a sede de um comando regional. Ali 62 pessoas morreram.

Mesmo como um castelo de cartas, o sul do Líbano está sendo reconstruído, os buracos de balas tampados, as estradas reabertas, os serviços públicos funcionando. E apesar de todo o dinamismo que se supõe olhando a paisagem, o que mais se vê são homenzarrões jogando bolinha de gude, admirados pelas crianças.

Outra obra impressionante tomando forma no sul do Líbano tem a marca israelense, e está em fase de fundação: é a que recebeu, em hebraico, a abreviatura de “Zadal”, significando “Zva Drom Levanon”, ou Exército do Sul do Líbano.

Os libaneses dizem: “Quem recebemos em casa são nossos primos”. Isto vale para os israelenses? Afinal, esses “brimos” não foram exatamente convidados, impuseram-se. Resta-lhes sempre um argumento decisivo: a força, e se em algumas casas são recebidos com toda a pompa de uma cerimônia de café, em muitos locais caem vitimas de emboscadas, seus jipes de patrulha voam em minas plantadas durante a noite nas estradas, e bombas acionadas por controle remoto explodem à passagem de ônibus de transporte de tropas.

Não é à toa que os soldados da escolta, no meu carro, pedem para aumentar o volume do rádio, quando começa a tocar uma canção popular que diz: “Quero voltar para casa”, e se ela nada tinha que ver com a guerra no Líbano, para muitos soldados servindo em território libanês agora soa como um hino.

Primos? Os israelenses eram heróis, no começo da guerra, para cristãos e muçulmanos do sul do Líbano, cansados da ocupação palestina. Os tanques avançavam rumo a Beirute, arrasadores, e aqui eles eram recebidos sob chuva de flores, e os soldados, presenteados. Os israelenses aprenderam rápido a palavra que resume a grande generosidade do libanês: “tfadale”, “é seu”, ou “leva para você, por favor”, que ouviam quando gostavam de alguma coisa. Nos restaurantes, não lhes cobravam as contas. E no trânsito davam-lhes passagem. Hoje, hoje não aceitam mais nem mesmo o dinheiro de Israel. O israelense passou a ser visto como ocupante, mesmo pelos seus antigos aliados, os cristãos.

“Quero voltar para casa”, cantarola um dos soldados, olhando o pico do monte Hermon coberto de neve. Mas se está incômodo ficar, muito mais será sair — “muito difícil mesmo”, assegura o arquiteto que comanda o comboio da imprensa pelo sul do Líbano, quando nos aproximamos do quartel do “Zadal” em Marjayoun, famoso bastião das forças do major Saad Haddad, que morreu no começo de 1984.

Aquele que permanece sentado

É uma pedra. E o que

se move, um pássaro.

Os israelenses são como os pássaros do provérbio libanês. Estão ensaiando uma nova direção política no Líbano. Com a morte o comandante do Exército do Líbano Livre, o major Haddad, e o cancelamento do acordo de maio do ano passado, para a retirada das forças estrangeiras, com o governo do presidente Amin Gemayel, uma nova situação foi criada. E o capitão Malihi Menachem que o diga.

O capitão Menachem está trabalhando na criação do novo exército, “Zadal”. É israelense, como a bandeira que tremula no pátio do quartel. Mais que isso: recebe tratamento de comandante, de fato, já que oficialmente ninguém foi apontado para substituir o major Haddad. Assim, novos recrutas e veteranos o recebem nos bloqueios militares nas estradas, e os civis o saúdam respeitosamente. Todos os problemas da região acabam sobre sua mesa.

— Subentende-se que é Israel que comanda o novo exército do sul do Líbano. E será assim até quando? — Pergunto.

— Nós… nós não: eles… O major Haddad… Quando ele estava vivo, e ao saber que iria morrer de câncer, daí a sete meses, nomeou cinco prováveis sucessores. Um deles foi Elias Khalil, oficial do exército libanês. Era o mais indicado mesmo, entre todos. Mas ele não compareceu à cerimônia de sua própria posse. “Vocês me mataram antes que eu chegasse”, ele reclamou. Com o seu nome publicado pelos jornais, e sendo cristão, ele passou a receber ameaças de morte. E não assumiu…

— E o capitão Sharbal Barakat, o vice de Haddad?

— Não, muito jovem…ele está descartado. Dentro de mais duas semanas, no máximo três, teremos aqui um novo comandante.

— Cristão? Xiita? Druso? Quem?

— Por favor: não posso responder agora…Temos problemas. Nem tudo que Israel quer é possível, aqui e agora.

A preocupação do capitão Menachem é a de apagar a imagem de força cristã que ainda marca o novo exército do sul do Líbano. “A era Haddad acabou”, ele repete. E mostra alguns números:

— Os cristãos são agora 63% da brigada em formação. Os xiitas, 17%; os drusos, 13%; e os sunitas, 7%. Já contamos com dois mil homens.

— E eles se dão bem juntos? — pergunta-se à lembrança de que em Beirute os grupos étnicos estão muito distantes de formar um exército unido, reconciliados. Como Israel conseguiria o que os próprios libaneses ainda não conquistaram, mesmo após duas conferências de cúpula na Suíça?

Menachem olha para o vice-comandante de uma unidade mista, um libanês que não pode dar o nome por ter família em Beirute exposta a represálias. Ele explica: “Nós temos um interesse comum, só um objetivo — proteger nossas casas e aldeias com nosso próprio exército, enquanto tudo desmorona em Beirute…”

Outro motivo específico ao sul do Líbano: os seus 965 mil habitantes parecem ter concluído, à custa de toque de recolher como punição a atentados, ou fechamento das pontes sobre o rio Awali, ou por causa do excesso de violência que já experimentaram, que não há alternativa senão cooperar com Israel. “Ein brerá”, “não tem jeito”, dizem os israelenses, como consolação. Depois, ainda há o dinheiro: cada recruta, de 18 a 60 anos, com contrato que pode ser renovado a cada ano, recebe mensalmente o salário de cerca de 1.700 libras libanesas, equivalente a 300/350 dólares. Mas mesmo que nada ganhassem antes, muitos soldados já chegam ao quartel com seus Mercedes, pois o Líbano é um país sem impostos de importação.

Os uniformes causam certa confusão, iguais aos dos israelenses. As caixas de munição estão marcadas em hebraico. Mas a arma padrão é o fuzil Kalachnikov, capturado em grandes quantidades dos arsenais da OLP. A cor dos antigos Sherman e T-54, os tanques em operação no “Zadal”, é cinza claro.

Há soldados do exército do sul do Líbano que foram membros das milícias Amal (Esperança), xiitas, e da Saika, o grupo palestino apoiado pela Síria. Não estariam eles, na verdade, infiltrando-se, para sabotagens, muito mais do que voluntariando-se para uma luta em favor de Israel? Não acontecerá igual desastre ao ocorrido com o exército libanês, no momento da batalha decisiva, quando a maioria preferiu desertar?

O capitão Menachem assegura que “até agora, o novo exército mostrou eficiência e fidelidade”.

— São melhores que os soldados israelenses, em algumas coisas – ele acrescenta. “Primeiro, porque são da região, porque servem numa área em que conhecem praticamente a todos, sendo então capazes de distinguir os forasteiros. Digo-lhe: eles descobrem, só olhando, quem chegou para tumultuar, ou quem esconde alguma arma. Já aconteceu várias vezes, em bloqueios de estradas. Segundo, porque estão defendendo suas famílias. E terceiro: eles se comportam agora como um exército. Esta é a grande mudança, eles podem ser enviados em missão, a qualquer parte.

— Quer dizer: os cristãos são enviados para áreas cristãs, e os xiitas, para as xiitas?

Não, diz o capitão Menachem. — O objetivo é a integração. E se há alguma divisão ela não será nunca étnica, mas de acordo com a atividade.

O grupo que mais procura o novo exército, para alistar-se, é o cristão. Mas a recusa tem sido sistemática. Mesmo aqueles que desertaram o exército regular libanês foram reenviados para o norte, em navios que partiram do porto de Sidon.

— Só ficamos com cem deles — diz Menachem. — E por uma única razão: não queremos que o novo exército seja predominantemente cristão.

Durante a operação Litani, em 1978, Israel invadiu uma área cristã do Líbano. Estando agora na linha do rio Awali, mais para norte, a situação mudou completamente. A região sob controle israelense inclui 520 mil xiitas, 200 mil cristãos, 110 mil sunitas, 55 mil drusos e 80 mil palestinos. Por isso, o capitão Menachem conclui:

— Desencorajamos cristãos, e aceitamos os xiitas. Assim decidimos que tem que ser…

Uri Lubrani, o coordenador das atividades de Israel no Líbano, está levando em conta o pró-khomeinismo xiita, mas explica:

— Sou um otimista, apesar das más notícias. Sem otimismo, melhor ficar em casa, ler os matutinos, tomar a dose diária de frustração, e continuar. Aqui, estamos trabalhando duro para evitar que as coisas ruins aconteçam. A pressão pública em Israel para que nos retiremos do Líbano só agrava a situação. Tanto os xiitas como os sunitas nos perguntam: “Mas vocês estão saindo, ou ficando? Se estamos nos retirando, eles dizem que não querem conversa com a gente. Por isso, tenho insistido em não marcar datas de retirada, em comprar tempo… a nossa vantagem é a divisão entre os xiitas.

A luta interna vai crescendo dentro do Amal. Os pró-khomeinistas (os extremistas que estão prontos a morrer em nome de Alá) não passam de uma minoria, e a maioria os considera um grande perigo.

Os israelenses estão certos, depois que ouviram centenas de depoimentos de sul-libaneses de várias tendências, que os guerrilheiros da OLP não são mais bem-vindos na região. Em Beirute mesmo, os drusos eliminaram, recentemente, as milícias pró-nasseristas e pró-líbias, os mourabitun, porque seu líder, Koleilath, estava convidando os rebeldes do Fatah a penetrar em Beirute. A situação se repetiu no Shouf. E também ao sul de Beirute, evitando uma penetração para as linhas ocupadas por Israel.

— Uma consciência cresceu aqui pelo sul do Líbano, fruto de um desejo de viver. O povo está descobrindo que uma forma de viver uma existência normal é a de evitar ataques contra Israel.

Cada ataque palestino em Israel, antes da guerra de junho de 1982, significava represálias aéreas israelenses que atingiam a toda a população, direta e indiretamente. E depois, a ocupação palestina no sul do Líbano foi sinônimo de muita violência, assassinatos, estupro de mulheres e lutas intercomunais. O prefeito em El-khiam, Kamel Zawi, é um caso comum, típico. Sua aldeia foi talvez a que mais sofreu durante o império da OLP, abrigando cerca de cinco mil guerrilheiros. Os israelenses a bombardearam constantemente. A maioria da população fugiu para o norte, de onde fugiu de novo para o sul, há 18 meses. Agora que reconstruíram quase tudo, voltando do naufrágio com um peixe na boca, Zawi e alguns amigos fazem campanha para que os jovens juntem-se ao exército do sul do Líbano, desde que possa ser evitada qualquer publicidade: “Temos família em Beirute…”

Pergunto ao capitão Menachem quando é que Israel vai se retirar do Líbano. Ele parece surpreso: “Vamos ficar aqui 20, 30 anos…Esta é a realidade. Se sairmos, tibum: tudo desaba. Não se fala mais em retirada…Falamos em reduzir o máximo o número de soldados israelenses dentro do sul do Líbano. Claro: acontecendo algo sério, sempre temos condições de voltar.

— Se a integração entre xiitas, cristãos e sunitas funcionar aqui no sul poderá servir de modelo ao norte, para Beirute?

— De jeito nenhum – garante o capitão Menachem.Se o cão do sultão morre, uma multidão vai ao enterro. Mas ao enterro do próprio sultão, quase ninguém.

Pouco depois da morte do presidente Anuar Sadat, fui a El Arish, no deserto do Sinai, onde vi a população recebê-lo em delírio, pela sua iniciativa de paz. Procurei quem tinha entrevistado antes. Era uma maneira de avaliar o impacto do assassinato. Mas, então, ouvia: “Não é mais Sadat. Agora, é Mubarak…” Tanto provoquei, um senhor me disse: “Escuta aqui, Sadat está morto”, e me ensinou um novo provérbio árabe, que embora não seja libanês aplica-se ao Líbano de hoje. Em Bint Jubayl acompanhei uma patrulha xiita numa ronda. Fui conversando com um soldado que todos chamavam de “Ringo”, xiita nascido em Burj Al Barajne, na região do aeroporto internacional de Beirute.

— Sou da metrópole, mas vim para cá faz seis anos – diz “Ringo” com orgulho. O que ele está fazendo aqui, num exército apoiado por Israel. “Yea, yea…Este é um bom exército…”

— E seus irmãos do norte?

— Você está falando de Nabi Berri (líder xiita do Amal, “Esperança”)? Ele não é um homem de bem. Ele não é um bom xiita.

— E por que?

— Porque ele está em contato com a Síria e com os palestinos.

— E você, com Israel…

— Eu quero paz. Israel é um bom país. Gostaria que Israel fosse de novo até Beirute. Dar uma surra no Berri.

— E como são suas relações com os cristãos?

Ringo dá uma gargalhada: — Meu coração está com os cristãos.

Outro xiita, Mustapha Nedji, que não está no exército do sul do Líbano, diz claramente:

— Se um xiita me pergunta se eu gosto de Khomeini, eu lhe digo: “Mas claro”. Só que eu não gosto.

— Você quer que o exército israelense vá embora daqui?

— Sim, se houver paz entre Líbano e Israel.

No alto, com um estrondo supersônico, surgem os aviões israelenses. Sobre a cidade, disparam vários mini-foguetes antimísseis, alaranjados. Estão treinando. Na rua central, nada se altera. Na sede do comando, à porta, oficiais do exército do sul do Líbano, entre eles um druso israelense, tomam cafezinho. Dois oficiais da ONU, um norte-americano e um canadense, tentam comprar vasos que transformarão em lustres, mas não sabem árabe, e ninguém os ajuda. A rua se enche de estudantes saindo das escolas. O capitão Menachem conta, como se fosse um segredo:

— Esta cidade é perigosíssima. Há um grupo khomemista muito influente. Se Israel se retirar, os extremistas tomam o poder.

Quis saber do capitão Menachem o que acontecerá se o Partido Trabalhista vencer as próximas eleições em Israel. Afinal, o líder Shimon Peres está prometendo retirar as tropas em três meses.

— Política… Yitzhak Rabin (ex-primeiro-ministro e ex-chefe do Estado Maior do exército, futuro ministro da Defesa, num governo Peres) esteve aqui, comigo, na semana passada. E ele é completamente favorável a nossa atual política…

— Quer dizer: com os trabalhistas no poder, nada mudará aqui?

— Nada, porque governo e oposição concordam com os mesmos objetivos, embora adotando caminhos diferentes para atingi-los.

Um pneu do comboio fura na estrada, perto de um bloqueio militar de muçulmanos xiitas, sem uniformes. Dois carros, com quatro soldados israelenses, e um xiita que usa revólver como em filmes de faroeste, são escalados para encontrar um borracheiro. Toda saída dos caminhos normais, dentro do Líbano, implica em perigo. E na medida em que fomos penetrando para os subúrbios de Bint Jubayl, grupos ficavam no meio da rua, colocando-se diante dos carros. Mas a visão dos soldados armados parecia dissuasiva.

Num posto de gasolina, quando um israelense mostrou o pneu furado, nada aconteceu. Foi preciso que o xiita á paisana fosse buscar o borracheiro. Os imans e os mullahs da região estão proclamando ser pecado usar um copo que um israelense tocou. Melhor será quebrá-lo. O que dizer então de consertar um pneu?

O dono do posto de gasolina, um xiita que acabou de chegar da Costa do Marfim, veio ver os israelenses, ao saber que apareceram para consertar um pneu. Sendo pró-Israel, não quis inclusive cobrar, e ainda ofereceu cafezinhos. Perguntei se não estava comprando um problema com seus empregados, e os religiosos da cidade. E ele suspirou, e disse:

— Estamos sobre um vulcão.

No caminho de volta, entardecendo, surgem novas carretas com tanques, cobertos de camuflagem. Um soldado da escolta lembra: “Não disse? Estão trocando tanques…tudo normal…”

Publicado em 1984