Queremos morrer

Casal pediu ajuda para morrer, em carta a jornal.

Escrevi esta reportagem que foi a que mais repercutiu em meus 45 anos de repórter.

Tanta repercussão, que o casal decidiu viver, uma semana depois.

Hoje, marido e mulher estão mortos.

Morreram de causas naturais, num asilo no interior de São Paulo.

Morte e vida, Gustav Klimt.

Morte e vida, Gustav Klimt.

Casal setuagenário procura médico que o mate sem dor, com uma injeção. “Direito de morrer: é o que queremos, eu e minha mulher” – atesta Murillo B. Ferreira, 75 anos, numa carta ao jornal O Estado de S. Paulo. “Queremos morrer de braços dados, juntos como há 53 anos”, ele confirma ao receber num pequeno apartamento “uma segunda pessoa (o repórter) em quatro anos” – a primeira foi e continua sendo a faxineira diária.

  No meio do sofá de uma sala estreita, no mesmo lugar onde passa as tardes sentada, óculos sobre o Caderno 2 todo dia destacado e dobrado para ser lido “depois”, como o próprio banho “há meses” adiado para “amanhã”, Arminda Ferreira, 73 anos, tem seu tique nervoso, um sinal da cruz, e põe a mão sobre a do marido com um doce sorriso: “Não digo sim nem não”, ela comenta sobre o “Assunto”, como se refere à eutanásia. Está com Alzheimer, a doença que levou a americana Janet Atkins a inaugurar a máquina de suicídio do Dr. Jack Kevorkian, conhecido por Dr. Morte nos Estados Unidos.

  Uma pintura a óleo na parede da sala de estar vazia mostra Arminda quando jovem, em 1952. Era tão bonita que levou Murillo a postar-se diante do colégio Caetano de Campos só para vê-la caminhar até o ponto de ônibus na praça da República. Um dia de 1938 conversaram. “Era só papinho, mas foi, foi e foi”, ele agora lembra. Em cinco anos, ela então formada professora, casaram-se. Foram morar em Perdizes, bairro aonde voltaram agora por coincidência, depois de inúmeros endereços abertos dentro e fora de São Paulo por uma vida muito agitada. Noutra parede há um retrato mais atual, pintado pela própria Arminda: uma floresta de árvores desfolhadas, sobre um fundo amarelo. O outono do casal? Não, pelo menos não era essa a intenção.

  Murillo é um homem muito organizado. Faz a lista dos congelados que vai encomendar para o mês, elabora um cardápio para a semana, dá baixa do que retira do freezer e pode acrescentar às vezes algum comentário sobre sabor e preço, tudo na sua portátil Remington 55. Já organizou a própria cremação. E se gaba de anotar tudo desde 1920. “Mas foi quando você nasceu!”, exclama Arminda. “Pois é: todos os acontecimentos estão registrados”, ele confirma. Até a lista do que mais o irrita, deixando-o “a ponto de explodir”, por causa de um “acúmulo tenebroso”, está datilografada, sobre a mesinha diante do sofá.

  Por exemplo: há dois meses deu um cheque de R$ 240 que o banco debitou

R$740. “Isso me apavora: não entendo um erro assim”. Segundo item da lista de “pesadelos” é um remédio antigo de Arminda que passou de repente a ser vendido só com receita médica. “Fui a um pronto-socorro, expus o problema, e um médico então deu a receita… Mas cobrando R$124”. Outro dia Murillo voltou ao banco e ficou hora e meia na fila esperando a reativação da rede de computadores, em pane. “Demais!”, protesta: “O homem já foi à lua e as máquinas aqui na terra ainda não funcionam!” O IPTU recebido sem a via do contribuinte… “É possível isso?” Com uma trombose na perna esquerda ele teve que sair para fazer um xerox.

  “Estou cercado de bombas de efeito retardado”, pressente Murillo. “Não sei onde nem quando vão estourar”. Arminda faz um sinal da cruz.

  O “B” do sobrenome de Murillo não aparecerá por extenso para não identificar os dois filhos do casal. Um é médico, casado com uma médica, mas distante há cinco anos, embora vivendo em São Paulo. “Nem manda mais telegrama no Dia das Mães”. E não sabe que os pais procuram um médico que os mate, esgotados de viver. “Está de bem com a vida e bem de vida”. O outro não dá notícias desde 1982. “Talvez ainda esteja morando em Salvador”. Seguindo um longo rastro de calote em dívidas deixado pelo filho, e que o pai foi pagando com a venda de imóveis, carro e as coleções de 1500 long-plays e de 3 mil livros, os dois enfim se reencontraram numa “favela” em Itaparica, na Bahia. Combinaram uma reunião familiar. “Então, ele aprontou mais uma atrapalhada, e agora nem sei se continua vivo”.

  Murillo é de Recife. Aos 14 anos, perdeu o pai Luiz Mateus Ferreira num sanatório de Davos, na Suíça. Era arquiteto formado na Alemanha e dirigia a Escola de Belas Artes de Pernambuco. A família visitava parentes na Europa quando a morte a desmembrou. A mãe alemã, quando voltaram ao Brasil, o colocou no internato do colégio Anglo-Brasileiro, no Rio de Janeiro. Em seis anos ela também morreria. “Com 20 anos não tinha mais ninguém”. Teve que se aprumar sozinho. “Queria subir na vida, progredir…” Talvez por isso, agora lamenta, “não tenha dado a devida atenção aos filhos”. Não que deixasse lhes faltar algo: “Tinham tudo e estudaram nos melhores colégios de São Paulo”. Mas restava pouca presença paterna.

  O sonho de Murillo era se tornar médico. Mas ele nem tentou realizá-lo porque teve que trabalhar logo que acabou o ginásio. “Eu me fiz”, orgulha-se. Foi publicitário nas agências Lintas e J. Walther Thompson. Deixou a propaganda quando “Chatô” (Assis Chateaubriand, dono da rede Associados de jornal e TV) o convidou para dirigir a área comercial das rádios Difusora e Farroupilha de Porto Alegre. Depois, por 12 anos, foi diretor comercial da TV Paulista e das rádios Excelsior e Nacional de São Paulo. “Hebe Camargo, Sílvio Santos, Golias…tinha contato com todos”. Mudou de ramo em 1969: tornou-se administrador da caderneta de poupança Delfin, empresa de crédito imobiliário. Aposentado em 1976, ele continuou trabalhando. Passou então pelo Diário do Nordeste, em Fortaleza. “O melhor ano de minha vida, esse de 1982”. Mas Arminda não se deu bem. “Desde 1970 ela já dava sinais de depressão”. Viviam bem. Tinham casa no Sumaré, eram sócios do Pinheiros, viajavam, muitos amigos os cercavam.

  “Dramático é chegar na situação em que estamos hoje”, lamenta Murillo. “Para”, pede Arminda. Mas ele continua: “Hoje não encontro uma pessoa conhecida em São Paulo”. E Arminda repete: “Chega”. Mas o marido insiste: “Impressionante! Como se fôssemos de Marte, uns E.Ts.. Restam-nos as lembranças”. Mas mesmo as lembranças são traiçoeiras. Como a viagem de ônibus entre Miami e Califórnia que fizeram em 1955, agora trazida à tona. Ela: “Ah, os sorvetes!” Ele: “Comemoramos o aniversário dela no Grand Canyon”. Ela: “Nova Orleans era tão bonita!” Ele: “Felizmente aprontamos”. E os dois desembocam rapidamente na tristeza do aqui agora.


Arminda vestia Clodovil. Encomendou-lhe especialmente o longo em que foi fotografada no casamento do filho. “Há cinco anos usa só duas calças e duas blusas”, conta Murillo. Ela fica mexendo nos botões, calada. No guarda-roupa teria múltiplas escolhas, mas sequer o visita, nem por curiosidade. “Se não a forço a trocar-se, ficaria sempre com a mesma roupa”. Sempre muito organizado, ele bolou uma lista com sugestões para a mulher distribuir o tempo, dividindo-o em blocos de dez dias. “Mas ela só fica sentada, dizendo: amanhã, amanhã… Isso me deixa mais doente”. O casal vive da aposentadoria e de “algumas aplicações”. E se rotula “classe média remediada”.

  Murillo conhece dois sintomas típicos da doença de Alzheimer, que provoca uma progressiva degeneração do cérebro: “Tendência ao suicídio ela não tem”, exclui um. Outro, sim: “Banho ela não toma”. Arminda reclama: “Tomo sim!” E ele rebate: “Já não sei mais quanto tempo faz que não ligo o gás do chuveiro para ela”. Seriam “meses”, garante. “Fico possesso”. Então, chega ao principal item da lista do que mais o irrita: “Alzheimer é irreversível e vai só se agravando”.

  A preocupação maior de Murillo é morrer antes de Arminda. Se só ficar doente já será um grande problema: “Ela não sabe nem mais preencher um cheque”. Ensinou-a o símbolo do Real, juntos rascunharam vários cheques, e passado um dia, esqueceu tudo. Uma vez, ele de cama, os dois morando em Guarujá, ela desceu para comprar pão. Não soube voltar. A um quarteirão de casa, e perdida. “Me desespero: era uma professora, hoje está nesse estado”.

Munch

Munch

Arminda desvia os olhos, não encara o marido. Fica catando alguma coisa na blusa. Ela tem duas irmãs. Murillo procurou uma delas, que “mora num apartamento grande”, filhos casados, e lhe perguntou se poderia recebê-la, mesmo provisoriamente, até que arrumasse vaga numa casa de repouso, caso ele morresse de repente. “Comprometia-me a deixar todas as despesas pagas”. Há quatro anos espera uma resposta. “Aí desisti de procurar a outra irmã”. Então concluiu: “Não temos ninguém”. Pior: “Se me acontecer algo, minha mulher entra em parafuso”.

  O pequeno escritório com a Remington e duas gravuras de Aldemir Martins na parede, “presentes do amigo Caio Alcântara Machado”, é o “inferninho” de Murillo. Gostaria de levá-lo para onde fosse. E aí começam os problemas com asilos e casas de repouso há três anos pesquisados. “Não há espaço para um pouco de independência nem gostam de receber casais”. A preferência por avulsos tem uma lógica comercial: “O casal ocupará um quarto por R$1.200 que renderia mais se dividido entre duas ou três pessoas a R$750 cada”. Ele tentou asilar-se pondo anúncio em quatro jornais. Uma oferta que recebeu prometia uma área verde para longos passeios. Na verdade, era uma praça diante da casa, “um depósito de velhos”. Tentou o interior: “Os telefones não atendem”. Encontrou uma exceção no Lar dos Velhinhos de Piracicaba, “uma cidade com 85 anos”. Mas lá não há vagas.

  Quando Arminda teve que operar o útero, em 1992, o “inferninho” e outras exigências acabaram esquecidos. O casal entrou para “um asilo 5 estrelas” da Sociedade Beneficente Alemã, no Butantã, que incluía assistência médica pós-operatória. Logo ganharam o apelido de “Casal 20”, porque mais novos que todos. “Éramos brotinhos em comparação aos outros; por isso, fomos discriminados”, Murillo lembra, hoje arrependido de ter saído após um ano. Sofria com a perda de independência. Queriam ampará-lo, e ele reagia. “Isso desagrada num asilo, e eu não estava preparado”. Aos poucos, porém, foi se convencendo de que até poderia se ajustar, numa nova temporada. A hipertensão, a trombose na perna esquerda e a hérnia inguinal neutralizaram sua compulsão pela liberdade de fazer o que bem quer.

  De 147 casas de repouso em São Paulo só se salva 1%, garante Murillo: “Entrei em lugares que são verdadeiras baias para cavalos, casos de polícia”. Na carta que enviou ao Estadão ele menciona uma reportagem publicada em fevereiro sobre os filões de produtos e serviços que fazem parte do mercado da Terceira Idade. E pergunta: “Neste filão não há asilos?” Ele mesmo tem a resposta: “Não encontrei”. É então que acrescenta: “Daí optamos, eu e minha mulher, para a eutanásia, o direito de morrer. Pensamos muito. Pensamos durante um longo tempo. Não temos dúvida sobre a nossa decisão”.

  Arminda faz um sinal da cruz: “Nem gosto de ouvir falar”. Murillo procura justificá-la: “Conversamos, mas ela não se fixa muito, esquecendo tudo dois minutos depois”. Ainda bem que “vive com ideias fixas”. Todo dia, quando acorda, ela faz tudo sempre igual. Pega um paninho e o passa nos parcos móveis da sala. Depois senta no lugar de sempre no sofá até o entardecer. Vê um pouco de TV antes de dormir. Adormece em 20 minutos. Se o marido sai, fica aflita. Se demora, vai capengando com muita dificuldade para o hall do 15º andar. Quer sempre a porta aberta para poder ficar ali, diante dos elevadores. Ela própria não sabe por quê. Faz três meses que ela esteve “lá fora”, na rua Cayowaá: foi ao cabeleireiro.

  “Estou desesperado, não aguento mais”, desabafa Murillo. Com carinho, ele chama a atenção de Arminda, o olhar perdido. “Vamos embora os dois juntos, e da melhor maneira possível… Sem dor… Uma injeção”. Como se despertasse, ela diz: “Essa prosa me deixa nervosa”. Ele então ameaça: “Se necessário for, tomo uma medida drástica, coisa que não quero”.

  Suicídio? Murillo garante que “método violento está fora”. Até porque “não teria coragem de matar Arminda”. Na carta ao Estadão ele justifica a opção pela eutanásia: “Somos um casal de setuagenários que já perdeu qualquer visão idílica de uma vida futura saudável, tranquila e segura. Não conseguimos afugentar os fantasmas da velhice. Não conseguimos assimilar as mudanças que ocorreram em nossas vidas. Queremos ter o direito de morrer. Os nossos corações já estão rateando. Os pulmões, tocando os seus foles. A cabeça, já meio louca, coitada, fazendo o que pode. O corpo trasteja, se fere, fratura, desgasta. As pernas, já não mais tão serviçais, estão cansadas, com mais de 70 anos cada uma. Tudo isso como doi! Doi por dentro, doi por fora. Aliás, a dor é o melhor sinal da vida. Só não doi depois da morte. Por tudo isso é que resolvemos deixar de sentir dor…”

  Se um médico aceitar o papel do Dr. Morte, Murillo quer um mês para organizar o fim. A cremação já está arranjada. Os bens, também já decidiu, serão doados ao Hospital do Câncer. A dúvida ainda é Arminda. Se não quiser ir junto, ele terá que encontrar alguém que zele por ela até morrer. “Então morrerei tranquilo”. No sofá, a mulher lhe estende a mão. E sorri solidária. Depois afasta a fumaça do cigarro esquecido pelo marido no cinzeiro. E faz um sinal da cruz.

  A despedida já foi escrita. É o final da carta ao Estadão: “Geramos filhos para que perpetuassem, bem ou mal – no nosso caso foi mais para o mal do que para o bem – a nossa passagem, com um nome, memórias, amor ou indiferenças e saudades ou esquecimentos. Tudo absolutamente ilusório. Já fomos fanáticos por ciclos de vitórias e derrotas, de alegrias e prantos, de lutas que começam num grito de choro e terminam num suspiro. O temido último suspiro. Não o tememos mais… A gente vive um sonho de carne e osso, que acaba no acordar que é a morte. Queremos acordar…”

 

Leia também Queremos Viver.  (Houve uma terceira reportagem, com Murillo e Arminda se instalando no asilo que queriam morar, em Piracicaba.)

Leia também Queremos Viver.
(Houve uma terceira reportagem, com Murillo e Arminda se instalando no asilo que queriam morar, em Piracicaba.)

Lagoa do Barro liga a TV

Foto de Clóvis Ferreira, Estadão Conteúdo, 19/11/1933.
Foto de Clóvis Ferreira, Estadão, 19/11/1983.

Faz 21 anos, em 19 de novembro, que a energia solar chegou a Lagoa do Barro, cidade do Piauí então acessível apenas a carro à gás, com bujão extra para a volta. Quem imaginar que houve corrida, enfim, às geladeiras, pois até aqui tudo apodrecia sob o calor do sertão, está enganado. O povo se reuniu diante da janela da Prefeitura para ver aquilo que muitos já tinham ouvido falar, mas nunca tiveram chance de ver:  a TV.

Hoje, quando texto e foto chegam a um blog na internet, a 510 milhões de quilômetros da Terra e a mais de dez anos de viagem, o robô Philae transmite as primeiras análises da superfície e as fotos de um cometa que pode explicar a origem do universo. 

A caixa preta foi se iluminando de cores até formar imagens e soltar um som que hipnotizaram a plateia de pé ou em lombo de burros. Pronto: acaba de chegar a TV em Lagoa do Barro, uma cidade com 48 anos e 4.819 habitantes isolada a 530 quilômetros ao Sul de Teresina, no Piauí.

  Olhos arregalados diante dos adultos vestidos de crianças do programa “Chaves”, no SBT, o roceiro Joaquim Dias, 50 anos, entra na idade da TV com um desafio: “Agora vamos ver se há mesmo roubalheira em Brasília, como já vieram me contar”. Até agora, explica, só “assistia o rádio, que pega mal”. Para o filho, Toninho, é uma estreia na vida. E ele nem parece perturbado: “Tenho medo, não” – avisa aos amigos. Mas atrapalha-se, talvez nervoso, quando lhe perguntam quantos anos tem. “Nenhum”, responde. O pai o socorre, enquanto o televisor vai sendo ajeitado numa janela da escola José Magalhães Ribeiro, na praça principal, em obras: “Deve estar com 16 anos, porque já pode votar”.

  No ar, a TV em Lagoa do Barro. Mas onde estará Toninho? Sumiu, e ninguém o encontrará mais nesta histórica sexta-feira, 18 de novembro de 1993. Até choveu por meia hora quando não chovia desde março, molhando superficialmente uma das maiores secas do século no Piauí.

  ***

  Foi um verdadeiro programa ao vivo de pré-estreia à magia da TV. O céu amanheceu bem coberto, mas o vento levava embora as nuvens e as esperanças de chuva, como nos últimos dias. Um cenário desolador: açudes secos, cacimbas com resto de água salobra e esverdeada, aguadores em seus jegues pela estradinha poeirenta de 107 quilômetros até São João do Piauí, o gado esquelético vagando em busca do verde, a mata só galhos, crianças só pele e osso, e camaleões disparando pelas paredes de barro vermelho. Então, choveu. Um alívio marcado por cheiro de terra e alegria em Lagoa do Barro. A confusão com um cachaceiro levado à delegacia dissipou-se logo aos primeiros pingos.

  “Cacau está caindo” – comentou Ursino Ribeiro Coelho dentro da drogaria Rainha dos Anjos, a padroeira da cidade. “Tá bonito”, completou Lucinha, por trás do balcão. No Hotel da Neguinha já se avaliava a chuva: “Vinte dessas é que resolvem”. No bar Sertanejo de Cecílio já se previa: “Amanhã vai ter rosa-de-jericó”, uma erva que se abre com a primeira chuva, e que sobrevive à seca enrolada como uma bolinha. Uma poça foi logo promovida a rio. Ela se formou no cruzamento das duas ruas principais. “Todo mundo empacado no rio” – gozou Andralino Martins Rodrigues, ex-operário de uma empreiteira em São Paulo, rindo de quem encharcava os pés ao tentar saltá-la. A enxurrada dos telhados enchia panelas no chão. “Parecia fina, mas deu tanta água”, constatou Abílio Marques da Silva, 79 anos, um pioneiro da cidade. Ele se lembra dos anos em que choveu: “Em 1924 foi bom. Em 1926, ótimo. Depois, só em 1940 e 44. As últimas duas foram em 1960 e 85”. E agradece a Deus pela “chuva que anima”.

  É Abílio quem sabe explicar a origem do nome Lagoa do Barro do Piauí. “Simples”, conta: perto da cidade brotando na caatinga, em 1945, o rio Gameleira fazia uma curva, aproveitada por olarias para o fabrico de telha e tijolo. Mas alguns habitantes folclorizam, a partir do nome de duas vizinhas – a Lagoa de Areia e a Lagoa de Baixo: “Tudo para ver se nasce alguma lagoa de verdade”.

  A primeira casa do povoado foi fincada debaixo de um juazeiro, quase em frente ao bar Sertanejo do Cecílio. Ao se emancipar, em 29 de abril de 1992, já eram mais de 150 casas. “Eu morava há um quilometro, e fui atropelado pelas construções”, lembra Abílio, encerrando a história de Lagoa do Barro. A chuva de hoje, para ele “vasqueira”, rara, será “de grande utilidade para o criatório” – as cabras e bodes que se alimentam da rosa-de-jericó. Já a TV, o outro grande acontecimento do dia, ele compara à uma escola. “Facilitará o aprendizado das crianças. Todo uso dela é uma educação”.

  ***

  As noites de Lagoa do Barro nunca mais serão as mesmas desde que o forasteiro Nelson de Oliveira Jorge chegou com uma filmadora, confundida com binóculo, e trouxe a luz solar para a TV e dez postes de rua, há 15 dias.

  “Luz é uma maravilha; a gente passeia mais favorável”, reconhece Abílio, o pioneiro da cidade que começa agora a ser iluminada. O breu só era defendido mesmo por alguns namorados. A TV foi prioritária, e não a geladeira para guardar vacinas no posto de saúde, ou mais postes, por decisão popular. Mas a prefeita Hildete Oliveira Coelho tem outros “projetos luminosos” para Lagoa do Barro já negociados com Nelson, diretor da Heliodinâmica. A luz deverá chegar, por exemplo, às salas de aula.

  “Vou sair no binóculo?”, pergunta um bêbado. Nelson nem responde porque surgem na rua duas senhoras conhecidas por “Marcianas”, e ele entra em ação com a filmadora. Hoje elas também são chamadas de “Canarinhas” porque se vestiram de amarelo brilhante. Sempre se vestem com as mesmas roupas e cores, e passeiam de mãos dadas. Correm de medo da câmera. Chamadas, devolvem um recado: “Já temos namorados”. Um assessor da Prefeitura tenta convencê-las a entrar no “binóculo”, mas volta comentando: “Cortaram as asas das Canarinhas… Estão bravas”.

  Outras duas senhoras famosas em Lagoa do Barro são as solteiras e octogenárias irmãs Valentina. A mais velha, Mundinha, 84 anos, não se aposentava para não ter que entrar num carro e ir até São João do Piauí para fazer a papelada. Acabou cedendo, na semana passada, tentada por um salário mínimo, mas não revela nenhuma remota pista do que sentiu. Ela pouco fala, atualmente. Olegária, com 80 anos, é mais “moderna”: viu TV uma única vez, em 1978, quando ficou num hospital em tratamento. “E avião, só de muito longe”. As duas passaram a vida na roça em Gameleira de Cima, há 12 quilômetros, e vieram à cidade só para enterrar o irmão, Constantino Aprígio, 78 anos, que “começou a morrer com diarreia e acabou de velhice”. Vão ficar até o dia dos Reis, em 6 de janeiro. Rostos marcados como a terra seca, enrugados, elas sorriem quando se fala em casamento: “Na idade em que estamos não se casa mais”, concordam.

  ***

  Lagoa do Barro não tem cinema. Um padre a visita a cada três meses. Um médico, uma vez por semana. “Aqui se morre de desnutrição”, diz o jovem Dr. Rosemildo de Souza Figueiredo. Os doentes partem da consulta de receita na mão atrás de Lucília, filha de 20 anos da prefeita Hildete e já tesoureira da Prefeitura, com o curso completo de segundo grau. “Ajudamos porque ninguém tem dinheiro para os remédios”, ela explica. Lucinha, na drogaria Rainha dos Anjos, vende mais vitaminas e analgésicos, porque “a maioria das receitas é aviada fora”. A feira vem às sextas de Olicuri, na Bahia, há 60 quilômetros. A porta para o resto do Brasil, São João do Piauí, abre-se para um ônibus semanal, ou carona em peruas movidas ao gás, em duas horas e meia de pé e buracos. Um único telefone serve a todos. Liga-se para o número (086) 487-1377, o posto telefônico na (futura) praça Tancredo Neves, e um funcionário da Prefeitura irá pessoalmente buscar em casa quem estiver sendo chamado. A única diversão era o jogo “Caipira” nas duas mesas de dados na rua principal. Mas agora chegou a TV.

  A TV e a luz dos dez postes são ligadas às 6 da tarde. Os telespectadores apertam-se num corredor diante da janela com o televisor de 23 polegadas. Pelos lados vão estacionando burros e ciclistas como automóveis num cinema ao ar livre. O Aqui Agora e o TJ Brasil, do SBT, reinam na primeira hora. O Jornal Nacional e Fera Ferida, da Globo, encerram a programação de três horas diárias, às 9 da noite, no horário local, um a menos do que em Brasília. A sessão poderá ser prolongada se Lagoa do Barro instalar mais baterias de energia solar, ampliando o sistema que custou Cr$ 1,5 milhão, e inclui uma parabólica que capta 8 canais.

  A estreia da TV, depois da chuva e da feira, na sexta-feira à tarde, atraiu uma multidão. A telespectadora Ana Silva recuperou com as primeiras imagens o tempo em que morava na favela Jardim Silvina, em São Bernardo do Campo. “Até já me vi em televisão falando do desabamento do meu barraco depois de dois dias de dilúvio”, ela conta. Era uma exceção: flagelada da chuva entre flagelados da seca, esnobou o programa Chaves, que “tanto já tinha assistido”. Mas os outros não desgrudavam os olhos da caixa preta iluminada. Alguns meninos na primeira fila chupavam dedos, distraídos e maravilhados.

  A mãe de Ana, também Ana Silva, 48 anos, assistia de camarote a sessão vespertina de TV: estava montada num jumento. Mais tarde andaria 18 quilômetros até o sítio do Magalhães, onde mora. E prometia: “Vou vir sempre ver TV”. Outra telespectadora-montada, Maria do Socorro Dias, estacionou o burro equipado com uma garrafa de cerveja, ao lado de um bebedouro de animais. Chapéu de couro de cangaceiro, Joaquim Dias espremeu-se entre os meninos na fileira da frente, e nem piscou, os olhos arregalados. Estava só, sem o filho Toninho, que escapou à primeira televisão da vida. Emissários que o procuraram voltaram ao “Chaves” derrotados.

  Joaquim será “freguês” dos noticiários. “Quero acompanhar as traquinadas de Brasília”. Com “Marcianas”, “Valentinas” e outros personagens na cidade, muitos dispensam a dose diária de novela. O vice-prefeito Hermínio Ribeiro concorda: “A gente agora vai se informar”. O homem da luz solar, Nelson, alimenta um curioso projeto pessoal de consequências imprevisíveis: mostrar aos habitantes de Lagoa do Barro como eles reagiram à chegada da TV. Está tudo gravado em sua filmadora. Para quem só agora descobre a televisão deve ser espantoso passar direto ao vídeo, e ver-se na tela. “Em Lajes do Piauí, um distrito de Coronel José Dias, já nos receberam como se fôssemos deuses ou ETs”, ele conta. “Ali sequer conheciam o gelo até outubro”.

  O filme de Nelson só não foi rodado na estreia da TV por falta de vídeo. E a câmera quase ficou despedaçada, por pouco não reduzindo a pó as cenas da chegada da TV em Lagoa do Barro, durante uma tomada arriscada em que filmava, deixada no chão, uma perua de faróis acesos se aproximando até cobri-la e derruba-la. A última imagem é a de um grande diferencial à frente, mais baixo do que se esperava, e o inevitável choque.

  O Brasil sem luz

  Mais de 30 milhões de brasileiros vivem como os 4.819 habitantes de Lagoa do Barro, sem luz, distantes da rede elétrica e do que acontece no Brasil. Os eleitores que elegeram o deputado João Alves (PPR-BA) no interior de Presidente Jânio Quadros, no Sul da Bahia, sabem “só por ouvir dizer” que uma CPI da corrupção poderá cassá-lo. Em todo o mundo, por um cálculo da ONU, são 2 bilhões que ainda não chegaram a idade da eletricidade.

  A solução que iluminou Lagoa do Barro estava no que existe de mais abundante e inesgotável no Nordeste: o sol. Ele pode brilhar à noite se durante o dia for captado e armazenado em painéis solares. A “fotossíntese elétrica” é feita por “módulos fotovoltaicos”, compostos por células de silício que produzem eletricidade quando expostas à luz, mesmo em dias nublados. Quanto mais módulos, mais energia. Cada um sistema de 40 watts custa cerca de US$ 500. Mais de 20 mil sistemas já foram instalados no Brasil pela Heliodinâmica, a única empresa nacional que produz células solares.

  A energia solar está nos barcos do navegador Amyr Klink, nas baterias que recarregam os aviões da Taba em aeroportos da Amazônia, na telefonia celular rural, em bombas de água de cacimbas do Nordeste, na iluminação pública do Palácio do Planalto, em cercas eletrificadas de fazendas e até num protótipo de carro solar brasileiro, o The Banana Enterprise. O diretor financeiro da Heliodinâmica, Nelson de Oliveira Jorge, iluminou uma caverna na Serra do Capivari, em São Raimundo Nonato, depois de inaugurar a TV de Lagoa do Barro. Ele próprio enfrenta a escuridão com um novo sistema de energia solar, portátil, já vendido para o exército brasileiro.

Ah, Jerusalém!

Foto: Jerusalem.com

Foto: Jerusalem.com

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As pedras da fundação do mundo brilham douradas sob o sol, e prateadas ao luar. Dão cor e identidade a Jerusalém. Testemunharam a criação do primeiro homem, a morte e a ressurreição de Jesus, a vida de cidadãos ilustres como Abraão, Isaac e David, e a cavalgada de Maomé aos céus. Ê o que contam a Bíblia, o Talmude e o Alcorão, os guias oficiais da Terra Santa.

Pedras três vezes consagradas. Os judeus as veneram no Muro das Lamentações. Os muçulmanos cultuam o rochedo rachado pelo impulso da ascensão de Maomé, na Mesquita de Omar. E os católicos as seguem pela Via Dolorosa. Na paisagem bíblica, surgem empilhadas, equilibradas, formando cercas. Os arqueólogos as reviram. Judeus ortodoxos e palestinos as atiram, como armas. Turistas as visitam. São muralhas, minaretes, sinagogas, igrejas e mesquitas.
Pedras de calcário dolomita que reergueram 25 jerusaléns destruídas em 25 séculos de guerras entre judeus, gregos, romanos, cristãos e muçulmanos. Pedras da discórdia ainda hoje. Yerushalaim, em hebraico, É a “Cidade da Paz” – e tanto ódio provoca! Em árabe, Al Kuds, “A Santa” – e sempre tão cruel. A Bíblia (Zacarias, 8:3) chama Jerusalém de a “Cidade da Verdade” – ela que está minada por contradições Étnicas e religiosas. Cidade do “Verbo” – não do diálogo. Cidade dos Espelhos” do escritor israelense Amos Elon – “espelhos que são metáforas que a verdade de cada religião atribui a cidade que reflete seu passado e seu presente”.

Dez medidas de beleza foram
  conferidas ao mundo; nove
  foram tomadas por Jerusalém,
  e uma pelo resto do mundo.
  (Talmude)

A alma de Jerusalém está cercada por 4,5 quilômetros de muralhas reconstruídas em 1537 pelo sultão Suleiman, o Magnífico, no traçado romano original do século II. Pode-se dar a volta por cima delas em quatro horas. Dentro, apenas um quilômetro quadrado. Ê o bastante para conter séculos de história das três grandes religiões monoteístas. O judaísmo imperou de 1003 a.C. até o ano 70 d.C., e depois se intercalaram o cristianismo (de 300 a 638 e de 1099 a 1187) e o islamismo (de 638 a 1099 e de 1187 a 1917). Hoje convivem Alá, Jeová e Jesus. E o ar “É saturado com orações e sonhos” como o ar poluído sobre as cidades industriais. “Difícil respirar” – comenta o poeta israelense Yehuda Amichai.
A alma de Jerusalém tem oito portas. As quatro principais se abrem como uma rosa-dos-ventos. A imponente Porta de Jafa era a saída para o porto, à Oeste. Ê a mais movimentada. A Porta de Damasco abre-se para a cidade de à e para a Síria, ao Norte. Por ela entra-se no bairro muçulmano. A Porta dos Leões aponta para o Leste, para Jericó. E a Porta de Sião está na direção de Hebron, ao Sul. Uma porta ainda se tornará a mais importante do mundo, se nela for mesmo bater o Messias tão esperado pelos judeus. Os árabes a fecharam há séculos para impedir a visita. Chama-se Porta Dourada, ou “Porta da Compaixão”. A Porta Nova foi furada em 1887 para dar acesso direto ao bairro cristão. Por uma “porta de serviço”, a Porta do Esterco, penetra-se no monte Moriah, que muitos consideram o local mais carregado de energia espiritual do planeta.

Aqui, segundo o Gêneses, Deus criou o primeiro homem. E Abraão sacrificaria o filho Isaac, não fosse a intervenção de um anjo. Ainda aqui o rei Salomão construiu o Templo de um império que se estendia do Eufrates ao Egito, em 1043 a.C., e do qual resta só a muralha ocidental, conhecida como Muro das Lamentações. As frestas entre as pedras adoradas estão cimentadas de papeizinhos com pedidos de fiéis. Também já É possível enviar por fax uma mensagem para Deus, graças a um novo serviço inaugurado pela companhia de telecomunicações israelense. A ligação para Deus, em Jerusalém, “É local”. A mesquita dourada de Omar, com o rochedo de Maomé, e a de Al Aksa, que marcou a visita histórica do presidente egípcio Anuar Sadat a Israel, estão praticamente por cima do muro. Não apenas uma cidade dentro da outra, mas uma sobre as outras, como mostram as escavações ali ao lado, na cidadela de David. Os muçulmanos deram o terceiro lugar religioso do Islão para Al Kuds, “A Santa”, depois de Meca e Medina, na Arábia Saudita. Atrás do monte Moriah, logo À esquerda, está o Santo Sepulcro, repartido entre seis diferentes seitas cristãs. A soma das três religiões, num espaço tão pequeno, cria uma espiritualidade quase palpável.
Judeus de quipás balançam-se fervorosamente diante do Muro, muçulmanos de kafias e descalços curvam-se na direção de Meca, e cristãos tocam a terra que enterrou Jesus, ao som do chofar, do canto do muezim nas minaretes e dos sinos no Santo Sepulcro, num cenário de Velho Testamento. Ver Jerusalém, e enlouquecer: muitos peregrinos acabam internados como mais um João Batista, outro Messias. Em cinco dias ganham alta, e voltam À realidade.

Se eu me esquecer de ti, oh Jerusalém,
  esqueça-se a minha dextra da sua destreza.
  Apegue-se a minha língua ao paladar,
  se não me lembrar de ti,
  se não preferir Jerusalém à minha maior alegria.
  (Salmos)

Nem todas as pessoas passeiam nas ruas da Cidade Velha de Jerusalém dialogando com Deus, como diz o escritor Amos Elon. Há muitas que se concentram no shekel, a moeda dos tempos bíblicos que circula ainda hoje em Israel. O shuk, o mercado árabe, vive engarrafado de gente. A multidão é um caleidoscópio. Passam rabinos com seus grandes chapéus e trancinhas, os árabes de kafia e gelabiah, turistas com mochilas e filmadoras, franciscanos, coptas, drusos e armênios, e soldados com metralhadoras. Os mercadores ficam À porta de suas lojas convidando quem passe pelas ruelas para um negócio, que às vezes acaba numa disputada barganha. Vendem tapetes feitos à mão, vestidos beduínos, bijuterias, jogos de café típicos, caixinhas de madrepérola e bugigangas. Alguns sentam-se em tamboretes, contemplativos, chupando o narguilé, a máquina de fumar, e permanecem assim durante horas.

E folgarei em Jerusalém,
  e exultarei no meu povo;
  e nunca mais se ouvirá nela 
                                       voz de choro nem voz de clamor                                 .   
Reconstrução da antiga Jerusalem. (Foto:  commons.wikimedia.org)

Reconstrução da antiga Jerusalem. (Foto:
commons.wikimedia.org)

  E edificarão casas, e as habitarão;
  e plantarão vinhas
  e comerão o seu fruto.    
  (Isaías)

Fora das muralhas, Jerusalém espalha-se pelos montes Herzl, Scopus e das Oliveiras. Uma cidade contrastante, moderna, construída com a mesma pedra dourada. O antigo e o novo foram reunificados com a Guerra dos Seis Dias, em 1967, depois de 20 anos divididos por uma linha de cessar-fogo com a Jordânia, estabelecida pelas Nações Unidas. O Muro das Lamentações e o museu dos mártires do holocausto nazista, Yad Vashem, marcos do judaísmo, integraram-se na capital contestada de Israel. Os palestinos querem Al Kuds, a Cidade Velha, como a capital de uma futura Palestina. O Vaticano propõe torna-la um patrimônio sagrado comum às três grandes religiões monoteístas. E os judeus de todo o mundo repetem nas festas de Pessach, a Páscoa, que coincide com a primavera: “No ano que vem em Yerushalaim”. A unificação tornou-se lei constitucional, aprovada pela Knesset, o Parlamento, em 30 de julho de 1980. Mas um novo destino para Jerusalém foi selado com o aperto de mãos entre o primeiro-ministro Yitzhak Rabin e o líder da OLP, Yasser Arafat.

Lembranças da União Soviética

Marx, Engels, Lenin, Stalin.

Marx, Engels, Lenin, Stalin.

Ia sequestrar um avião na antiga União Soviética, em 1970; foi preso antes e condenado à morte por “alta traição”; a sentença caiu para 15 anos de prisão ante protestos mundiais;  trocado por dois espiões da KGB presos nos EUA, o dissidente Edward Kuznetsov voou para Israel. Aí o entrevistei.

Kuznetsov

Kuznetsov

 Эдуард Кузнецов

Os rebeldes prisioneiros políticos soviéticos gravam numa das mãos o seu protesto ao risco de mais oito a 15 anos extras de prisão. Por sua tatuagem, um pequeno círculo azul, reconheci Edward Kuznetsov num lotado restaurante de Tel-Aviv: ex-condenado à morte, frágil, magro, doente e careca, ele estava mudado, dois anos depois de sua inesperada libertação, obtida pelos Estados Unidos em troca de dois espiões da KGB.

Estado: – Você está quase irreconhecível!
Kuznetsov: – Pois é, fui “conservado” durante 16 anos…
Estado: – E como anda se sentindo, tirado da “conserva”?
Kuznetsov: – Cada noite eu escapo da prisão. As pessoas que encontro durante o dia comumente reaparecem nos meus pesadelos. Talvez eu o veja, de madrugada… Serei assim, até morrer.
Estado: – E seu tratamento hipnótico não o ajuda?
Kuznetsov: – Sim, mas minhas experiências foram muito traumatizantes. Ainda repercutem.
Estado: – Mas você parece estar ótimo, fisicamente…
Kuznetsov: – Nem tanto. Tenho alguns sérios problemas com meu  estômag. Isto é normal: 90% dos prisioneiros soviéticos são assim.

Estado: – Por quê?

Kuznetsov: – A primeira palavra no vocabulário dos “prisioneiros de ideias” da União Soviética é “pão”. A fome é a mais letal de todas as armas, se usada com método e eficiência. Seu efeito, horrível. Durante a segunda guerra mundial, os prisioneiros dos campos de concentração nazistas recebiam 2.500 calorias por dia. Na Rússia de hoje, um prisioneiro de campo de trabalhos forçados recebe, por lei, somente 2.050. No final, a quantia é muito menor.
Edward Kuznetsov, 42 anos (em 1981, quando nos encontramos), não quis almoçar. Pediu café com leite, que bebia devagar, um gole a cada novo cigarro Kent. Seu primeiro “sintoma” de revolta contra o regime soviético ocorreu-lhe aos 12 anos: “aconteceu-me de pensar alto e diferente dos outros alunos, na escola. Castigaram-me. Desde então fui confrontado a duas possibilidades: a de me tornar um leal delator, ou a de me envolver, até o fim, na oposição”.
Aos 17 anos, em 1956, durante a rebelião Húngara, Edward Kuznetsov passou a criticar abertamente a União Soviética. No seu primeiro encontro com a KGB, um oficial lhe perguntou: “Você não sabe que o nosso país está rodeado de inimigos?” Depois, ameaçou: “Se você não se contiver, acabará na prisão”.
Ao entrar para a universidade, Kuznetsov foi logo convocado para o exército. Puseram-no na “primeira divisão”, o departamento de espionagem, encarregado de ler as cartas enviadas aos soldados na Ucrânia. Recusou a missão. Então, foi transferido para uma área remota, que cuidava de pavimentação de estradas.
De volta ao curso de Filosofia, na universidade, formou um pequeno grupo que comparava a teoria marxista-leninista com a sua realização na vida prática, “encontrando pouca semelhança”. E daí surgiram inúmeros adeptos. E isto já era um movimento”.
Kuznetsov começou a ser constantemente vigiado, chamado para interrogatórios, ou detido: “A perseguição se tornou parte inseparável da minha vida, típica a qualquer um que não estivesse OK com o regime”. Aos sábados e domingos ele ia à praça Mayakovsky organizar manifestações que consistiam de leitura de poemas. “No dia 15 de outubro de 1961, a KGB veio ao meu apartamento e me levou para o presídio de Lubyanka. Eu não seria solto senão em 1968”. Mas por pouco tempo.
Estado: – Aonde você estava?
Kuznetsov: – Estados Unidos e Canadá, fazendo conferências sobre a União Soviética, movimentos dissidentes, movimentos internacionais de direitos humanos, a questão judaica. Falava de diferentes coisas.
Estado: – Nestes últimos dois anos, você falou e escreveu muito, encantado por estar livre. Lembro-me que comparou a liberdade ao ar: “o homem só se torna verdadeiramente consciente de quanto ele é indispensável, perdendo-o por alguns instantes”. Ou, ainda, que “liberdade é a consciência de que existem direitos humanos, de que se está protegido do abuso e da violência”.
Kuznetsov: – Estou criando um movimento, aqui em Israel, para lidar com problemas de imigração e integração de imigrantes. É a isto que me dedico, principalmente.
Estado: – Um partido de imigrantes?
Kuznetsov: – Mais ou menos… Estes problemas não são levados ao Parlamento. Então, sinto que tenho algo a fazer. Não pretendo tornar-me um político profissional, mas, apenas, evitar uma futura catástrofe.
Estado: – Quantos vocês já são?
Kuznetsov: – Uns 200 mil, contando somente os que imigraram da União Soviética. A maioria, consultada, dispôs-se a formar uma lista independente.
Estado: “Deputado Kuznetsov!” Com 200 mil, vocês poderão eleger mais de um representante no Knesset (o parlamento israelense)
Kuznetsov: – Sim, pelo menos uns três.
Estado: – E você será um deles?
Kuznetsov: – Não sei ainda. No momento final, vamos decidir. Talvez, se ninguém se dispuser, aí, então, eu vou. Mas, por princípio, não quero. Sou um franco-atirador, e quero continuar assim, livre, sem compromissos de estar todos os dias num escritório. Liberdade: você sabe o quanto isto é importante para mim.
Estado: – Você pensa em se filiar a algum partido? Aqui, em Israel, existe o partido comunista, o Rakah.
Kuznetsov, depois de uma gargalhada: Não, não. É impossível encontrar comunistas mesmo na Rússia. Eles estão no Ocidente. Você não acredita? Olha, em 1970 houve a festa do centenário de Lenine. Houve muito barulho por isso, em Moscou. Lançou-se um luxuoso livro oficial, reunindo declarações atribuídas a ele, mas muitas delas, porém, por um grande engano, eram de um dos seus mais famosos inimigos. Ninguém lê Lenine, a não ser nos Estados Unidos. Foi um grande escândalo. Toda a edição do livro foi destruída. A maioria dos imigrantes russos é radicalmente anticomunista. Aqui, nosso movimento tem recebido certa ajuda do “Rafi” (o partido criado pelo fundador de Israel, David Ben Gurion, ao afastar-se dos trabalhistas). Estamos juntos com ele para as eleições na Histadruth (a central sindical israelense). Queremos conquistar alguns cargos. Depois, veremos: ou nos juntamos de novo ao “Rafi”, ou concorremos independentes por algumas cadeiras no Parlamento. Já temos dinheiro, estamos unificados e fortes: resta-nos decidir qual a direção final.
Estado: E fora a campanha politica?
Kuznetsov: Eu trabalho como um louco pelos meus amigos que ainda estão na prisão. Você sabe: 12 de nós fomos sentenciados no “processo de Leningrado”. E três continuam presos. Eles não são judeus. Assim, estão numa verdadeira perigosa situação. Por quê? Por que ao libertarem Mendelevich, há pouco tempo, o último judeu envolvido na tentativa de sequestro de um avião, criaram a situação propícia para este tipo de propaganda: “vejam o que dá estar com os judeus”. Eles serão punidos exemplarmente. E o antissemitismo crescerá.

Bandeira União Soviética

Deixando a prisão, em 1968, Edward Kuznetsov começou a trabalhar como motorista de caminhão. “Meu pai era judeu, mais minha mãe, não. E como ele morreu quando eu tinha dois anos, eu nada aprendi da religião e cultura judaicas. Fui aprender nos campos de trabalhos forçados por onde passei”. O que o atraiu ao judaísmo, porém, foi a sua decepção com os movimentos de liberação. “Cheguei à conclusão de que a Rússia é um país destinado pela história a viver sob regimes totalitários, desde Ivan, o terrível, a Brejnev. Democracia e Rússia não combinam. Não há forças capazes de democratizar a União Soviética. Opositores intelectuais nada podem alterar. O sionismo me pareceu a única solução para escapar. Como judeu, seria um afortunado: teria esperanças de chegar um dia a Israel”. A abertura das fronteiras, para os judeus, significaria alguma chance de liberdade também para os outros.

Estado: – Você já se tornou judeu?
Kuznetsov: – Sempre fui, desde que nasci…
Estado: – Acho que você não entendeu a pergunta (pela lei judaica, judeu é todo aquele nascido de mãe judia).
Kuznetsov: – Sim, eu sei, desculpe.
Estado: – Você iniciou um processo de conversão, ao chegar a Israel… e para que, então?
Kuznetsov: – Comecei minha atividade na Rússia como democrata. Só quando estive no campo de trabalhos forçados, de 61 a 68, é que decidi que minha posição deveria ser judaica. A maioria dos judeus soviéticos começa a entender que são judeus não por um impulso interior, mas por causa dos vizinhos, que lhes gritam: “morte aos judeus”. O judaísmo se alimenta da hostilidade. Por isso, os judeus que escapam da União Soviética vão, na verdade, para os Estados Unidos, ao desembarcarem no aeroporto de Viena. Sua segunda fuga é do judaísmo.
Edward Kuznetsov conseguiu um emprego de estatístico no hospital psiquiátrico de Riga, Látvia. E aí liderou um grupo que se propunha a sequestrar um avião para Finlândia, mas que acabou preso antes do embarque, no aeroporto.
Estado: – Como a KGB os descobriu antes?
Kuznetsov: – Na Rússia é quase impossível fazer qualquer coisa secreta. Todos somos vigiados. E nosso grupo contava com 16 pessoas, o que é muito. Se o objetivo for o de escapar, será preciso agir só, ou com uma outra pessoa, no máximo. Mais: eu, o Yuri Fioderov e o Alexei Murzhenko éramos, já nesta época, bastante controlados pela KGB, como ex-prisioneiros políticos.
Estado: – Sabiam, então, que seriam presos?
Kuznetsov: – Exatamente. Víamos os agentes nos seguindo o tempo todo. A nossa preocupação não era a de fugir da União Soviética, que o considerávamos impossível, mas a de promover uma ação escandalosa que denunciasse o problema de imigração na União Soviética. Greve de fome? Não, tinha que ser algo bem maior. E eu, pelo menos, estava consciente de que voltaria para a prisão, sem alcançar o Ocidente.
Estado: – Vocês conseguiram até um piloto, Mark Dymshitz.
Kuznetsov: – Sim, tínhamos preparado tudo. Mas eu adverti o grupo: acabaremos presos só porque nos reunimos. Então, que nos prendam no aeroporto e não em nossas casas. Apenas seis atingimos o aeroporto. Ninguém soube dos outros, também presos, mas de nós, sim. A KGB nos expôs como bandidos. Assim entramos no jogo da détente.
Estado: – Para onde vocês foram levados?
Kuznetsov: Para a central da KGB, em Leningrado. Ali permanecemos incomunicáveis durante seis meses, submetidos a interrogatórios diários. A acusação? Traição, agitação antissoviética, propaganda e uso indevido de grande propriedade pública — ou seja, o avião.
Estado: – Condenaram-no à morte. Por que não executaram a sentença?
Kuznetsov: – Uma situação muito estranha. (O ex-presidente) Nixon chamou Brejnev pelo telefone direto. Depois dele, 17 países ocidentais iniciaram uma grande campanha pela nossa libertação. Até Franco, por causa de três bascos sentenciados à morte, interveio. E a soma de tudo isso, desses importantes apelos, nos ajudou. Eu fui condenado à morte por sete dias. Minha pena foi comutada para 15 anos em campos de trabalhos forçados.
Depois do “Processo de Leningrado”, para ele “uma comédia”, Edward Kuznetsov foi levado para Mordóvia, a 500 quilômetros de Moscou, entre tártaros e bashkirs, e posto numa cela de 3×5 metros, junto a outros 15 prisioneiros. Por muitas vezes o confinaram em solitárias, punindo-o por greves de fome, ou por “atividades antissoviéticas”. Preso, escreveu seu primeiro livro, “Diário de um Condenado à Morte”, enviado para o Ocidente em pequenas folhas de papel higiênico, ou nos maços de cigarro que podia receber.
Estado: – Como você conseguiu contrabandear os originais do seu livro?
Kuznetsov: – Talvez eu registre uma patente, e só então o revele. Mas é claro que não o farei: há outros usando o mesmo sistema. A KGB nunca pensou que fosse possível escrever livros e enviá-los para fora do país. Por isso, sempre declaram que “o texto é da CIA”. Todos os dias me revistavam, sem esquecer nenhum dos orifícios do corpo. Depois, repetiam: “é impossível”. Mas eu fiz. E até alcancei, por isso, um status especial. Eu lhes dizia francamente: continuarei escrevendo, aconteça o que acontecer. Mas se vocês me revistarem com mais brutalidade, escreverei o dobro. Eles sabiam que cumpriria a ameaça. Nos últimos três anos deixaram-me vivendo mais facilmente. O meu segundo livro apareceu em Israel, há pouco tempo. E já comecei o terceiro.
Estado: – O que representou o Processo de Leningrado para o movimento de imigração na União Soviética?
Kuznetsov: – De 1948 ate 1970, antes do nosso julgamento, apenas sete mil pessoas tinham deixado a Rússia. Depois, 300 mil. A KGB nos odeia por isso. Um coronel me disse, abertamente, em 1973: “Se soubéssemos que acabaria assim, teríamos lhe dado permissão para imigrar”.
Estado: – Você se refere ao fracassado sequestro?
Kuznetsov: – Sim, sim. Eles podiam conhecer os planos, mas não imaginavam suas consequências. Cometeram dois erros: um, minimizando a reação dos judeus nos Estados Unidos, e outro, concluindo que a nossa prisão aterrorizaria os judeus da Rússia. No entanto, ocorreu o contrário.
Estado: – Você disse, há pouco, que “entramos no jogo da detende”, ao serem presos. Como?
Kuznetsov: – Tornamo-nos um tipo de moeda. Basta olhar as estatísticas. (em 1971, 13 mil judeus deixaram a União Soviética. Com a assinatura dos acordos Salt (Strategic Arms Limitation Talks – Acordo de Limitação de Armamentos Estratégicos, em 1972), este número cresceu para 32 mil, depois para 35 mil, em 1973. Aí veio a emenda Jackson-Vanik, proibindo o comércio com a União Soviética a menos que os judeus pudessem imigrar livremente. O fluxo declinou para 21 mil em 1974, 13 mil em 1975, 14 mil em 1976 e 17 mil em 1977. Com os progressos do Salt II, a imigração atingiu 29 mil em 1978, chegando ao recorde de 51 mil em 1979). Coincidência?
Estado: – Então, o Processo de Leningrado foi uma bênção para os judeus. Mas apenas para eles?
Kuznetsov: – Não. Depois, 15 mil alemães receberam vistos de saída. Êxodo secreto, sem escândalo. Nos últimos cinco meses deixaram a União Soviética mais armênios do que judeus. Também silenciosamente. É muito conveniente às autoridades russas expor apenas o problema da imigração judaica, supostamente apolítica, nacionalista.
Estado: – Você disse, numa entrevista, que os prisioneiros políticos soviéticos têm uma crença: a de que “o Kremlin nos prende, mas o ocidente nos libera”. Como você acha que isto pode ser feito?
Kuznetsov: – Não é uma simples questão e não há uma simples resposta. A ajuda do Ocidente não é apenas muito valiosa, mas única. Não existe outra esperança. Seria melhor se ela fosse mais forte. Se você analisa o comportamento das autoridades soviéticas, verá que apreciam as atitudes de força. A Rússia respeita apenas quem se mostra durão.
Estado: – Então o presidente Reagan veio a calhar?
Kuznetsov: – Já o percebemos pelas reações de Moscou. Pedem a ele um encontro, mas ele não está nada apressado. A posição de força, isoladamente, não se constitui um ideal, para mim. Acredito em compromissos. No contexto soviético, no entanto, pode se tornar a única linguagem compreensível. Depois da administração Carter, fraca, chegou o tempo de se tratar duramente a União Soviética.
Estado: – O que ocorrerá com a Polônia?
Kuznetsov: – Entenda: não há limites morais para a Rússia. O que conta, agora, para o Kremlin, é a reação do Ocidente. São absolutamente pragmáticos. Se imaginam uma reação violenta, talvez hesitem. Os soviéticos não baseiam sua política no vácuo. Estou seguro de que os russos invadirão a Polônia. O mundo reagirá durante dois meses, e pronto.
Estado: – Você está desiludido com o Ocidente?
Kuznetsov: – Antes um pouco de ser solto, um oficial da KGB me disse: “fique quieto o máximo possível, lembrando-se que algumas vezes os inimigos da União Soviética morrem lá fora”. Mas está é uma outra história. Na verdade, eu não tinha nenhuma ilusão sobre o mundo em geral, e sobre Israel, em particular. Aqui, neste país, eu encontrei o que eu esperava. Afinal, o que se pode esperar de tantos judeus reunidos num só pais?
Estado: – Como israelense, agora, qual a sua posição sobre problema palestino?
Kuznetsov: – Ah-ah… Ok: eu penso que é muito complicado, mas não tão difícil de resolver como o problema telefônico, em Israel. Quem sabe a solução encontrada por outros povos sirva também para nós? Durante a guerra com o Japão, todos os japoneses que viviam nos Estados Unidos foram postos em campos de concentração. Quem acredita nisso hoje? O Québec francês, no Canadá, quer separar-se. Isto não representa perigo algum para a segurança, por lá. Os bascos não são uma questão de segurança para a Espanha. Por que, aqui, todo mundo se mete?
Estado: – Esta é uma região muito delicada.
Kuznetsov: – Ah, ninguém gostará mais de Israel se dermos possibilidade aos palestinos de iniciarem uma guerra contra nós, num estado vizinho, satélite da Rússia. Devemos ser justos com os nossos maiores inimigos. Estou certo de que o problema seria menor se a União Soviética não estivesse tão implicada… Para ela, melhor mesmo é esta situação sem paz. Só na instabilidade é que poderá ampliar a sua influência aqui, no Oriente Médio.
Estado: – Você visitaria a União Soviética, se convidado?
Kuznetsov: – Não usaria esta possibilidade. Talvez me prendessem de novo. Difícil saber: minha situação jurídica está complicada porque porque minha pena não foi comutada. Deprivaram-me da nacionalidade russa, e foi tudo.
Estado: – Como você soube que seria solto?
Kuznetsov: – No avião, antes de voar para Nova Iorque. Soube que não iria para a China porque, antes da decolagem, dois emissários da embaixada americana em Moscou vieram explicara tudo. Mesmo assim, temi: “talvez eles não sejam americanos, mas agentes da KGB”. Só nos Estados Unidos é que soube ter sido trocado por dois espiões soviéticos condenados a 50 anos de prisão. E mais recentemente, em Madrid, deram-me mais um detalhe: alguns computadores entraram também no negócio.
Com Edward Kuznetsov foram libertados também Mark Dymshitz (que seria o piloto do sequestro); Valentyn Moroz, símbolo da resistência Ucraniana; Georgi Vins, líder batista; e o escritor Alexander Ginzburg que, durante seu julgamento, ao lhe perguntarem qual era sua naturalidade, respondeu simplesmente: “prisioneiro”. Encontraram-se no aeroporto Sheremetyevo, de Moscou, para o voo da liberdade, o de número 315 da Aeroflot.
Estado: – Além de careca, sua roupa chamava a atenção.
Kuznetsov: – Era um terno de inverno polonês, camisa checa, sapatos búlgaros. Em pleno verão. Foi mais um engano da KGB…
Estado: – E o que você fez com esta roupa?
Kuznetsov: – Guardei. Usei-a num filme feito em Israel… e vou usá-la ainda mais, pois recebi convites para outros filmes, um americano e outro, alemão.
Estado: – Seus amigos de prisão souberam que você foi libertado?
Kuznetsov: – Oficialmente, até hoje, ninguém sabe na Rússia. Os jornais de lá não deram uma linha sequer. Mas as rádios estrangeiras, sim. Agora, está difícil capta-las, por causa da situação polonesa. Conta-se que um agente da KGB perguntou a suspeito:
– Você ouviu as rádios estrangeiras hoje?
– Sim – ele respondeu.
– E você contou a seus amigos o que ouviu?
– Sim.
– E o que foi que você contou?
– zzzzzzzzzzzzzzz
Estado: – O que você vai fazer agora?
Kuznetsov: – Vou ate Nazaré falar a 600 russos em nome do nosso movimento. Antes, passarei um filme sobre o Processo de Leningrado, com Geraldine Chaplin. Depois, vou me reunir a Sylva, minha mulher, e a minha filha.