AS DUAS GAZA DE ISRAEL

(Na Faixa de Gaza, os mortos já passam de 50 mil)
(Na rua Gaza, residência de Benjamin Netanyahu, em Jerusalém, aumenta o número de manifestantes que exigem a sua saída.)

Israel está reocupando as ruínas de bairros e cidades de onde havia se retirado em Gaza, durante a frágil trégua de dois meses rompida na última terça-feira. A nova ofensiva matou 673 palestinos, um terço dos quais crianças, elevando para 50.021 o número de mortos em 17 meses de guerra.
Com a ajuda humanitária bloqueada, cortada a energia para a dessalinização da água do mar, e novas ordens de deslocamento aos palestinos que armaram tendas no lugar de suas casas destruídas, Gaza voltou a ser o “inferno” que o presidente Donald Trump propôs transformar em Riviera do Oriente Médio.
Da tarde de sábado até o anoitecer do domingo, mais 41 pessoas foram mortas, entre elas um popular líder do Hamas, Salah al-Bardawill, que rezava com sua esposa em al-Mawasi, em Khan Yunis, neste mês sagrado do Ramadã. Outros altos funcionários civis do Hamas também foram assassinados, numa série de alvos seletivos, entre eles o primeiro-ministro interino Essam Al-Da’alis. A lista de mortos do Ministério de Saúde de Gaza não distingue civis de militares. Israel calcula ter matado cerca de 20 mil combatentes.
O Crescente Vermelho da Palestina comunicou ter perdido contato com uma de suas equipes de paramédicos em Rafah. A Defesa Civil de Gaza partiu para tentar resgatá-la, mas seus socorristas também ficaram retidos.
O Comissário-Geral das Nações Unidas, Phillippe Lazzarini, postou no X a advertência: “Cada dia sem comida aproxima Gaza de uma crise aguda de fome”.
Israel justifica o fim da trégua como forma de pressionar o Hamas a devolver 59 reféns israelenses, dos quais 24 estariam vivos. Mas não há negociações para novo cessar-fogo. O enviado da Casa Branca para o Oriente Médio, Steve Witkoff, disse à Fox News, neste domingo, que foi “enganado” pelo Hamas no início deste mês. Ele achou que sua proposta de estender a trégua até 19 de abril, em troca da libertação de cinco reféns vivos por centenas de prisioneiros palestinos, tivesse sido aceita. Mas não: o Hamas colocou à mesa a entrega de um refém americano-israelense vivo, e mais quatro mortos, numa negociação inédita, direta, entre um funcionário do governo americano e líderes do Hamas, em Doha, no Catar. Israel exigiu 11 reféns libertados em vez de cinco.
“Infelizmente, a guerra se tornou a alternativa”, lamentou Witkoff.
Há outra Gaza, em Israel. É a rua Azza (Gaza, força ou coragem, em hebraico, alusão ao mitológico Sansão, que foi cidadão de Gaza). Na rua Azza, no bairro Rehavia, em Jerusalém, fica a residência oficial do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. E para lá foram muitos dos manifestantes que protestam contra o reinício da guerra em Gaza, pedem prioridade para a libertação dos reféns e estão querendo a prisão de Netanyahu por ter tentado demitir o chefe da espionagem interna israelense, Ronen Bar, na sexta-feira, e, neste domingo, promoveu um voto de desconfiança à procuradora-geral Baharav-Miara, primeiro passo para demiti-la também.
“Um suspeito não demite um investigador” — a palavra de ordem surgiu em cartazes nos protestos de domingo em Jerusalém e Tel-Aviv. Em carta aos ministros que a estão fritando, Baharav-Miara disse que o governo pretende estar “acima da lei”. O primeiro-ministro Netanyahu, réu em três processos de corrupção, pivô de um escândalo de milhares de dólares do Catar enviados aos palestinos e desviados para o Hamas, o Catargate, e acusado por críticos de ter reiniciado a guerra para se manter no poder, enfrenta ameaças de greve geral, a Justiça e manifestações cada vez maiores.

Israel está reocupando as ruínas de bairros e cidades de onde havia se retirado em Gaza, durante a frágil trégua de dois meses rompida na última terça-feira. A nova ofensiva matou 673 palestinos, um terço dos quais crianças, elevando para 50.021 o número de mortos em 17 meses de guerra.
Com a ajuda humanitária bloqueada, cortada a energia para a dessalinização da água do mar, e novas ordens de deslocamento aos palestinos que armaram tendas no lugar de suas casas destruídas, Gaza voltou a ser o “inferno” que o presidente Donald Trump propôs transformar em Riviera do Oriente Médio.
Da tarde de sábado até o anoitecer do domingo, mais 41 pessoas foram mortas, entre elas um popular líder do Hamas, Salah al-Bardawill, que rezava com sua esposa em al-Mawasi, em Khan Yunis, neste mês sagrado do Ramadã. Outros altos funcionários civis do Hamas também foram assassinados, numa série de alvos seletivos, entre eles o primeiro-ministro interino Essam Al-Da’alis. A lista de mortos do Ministério de Saúde de Gaza não distingue civis de militares. Israel calcula ter matado cerca de 20 mil combatentes.
O Crescente Vermelho da Palestina comunicou ter perdido contato com uma de suas equipes de paramédicos em Rafah. A Defesa Civil de Gaza partiu para tentar resgatá-la, mas seus socorristas também ficaram retidos.
O Comissário-Geral das Nações Unidas, Phillippe Lazzarini, postou no X a advertência: “Cada dia sem comida aproxima Gaza de uma crise aguda de fome”.
Israel justifica o fim da trégua como forma de pressionar o Hamas a devolver 59 reféns israelenses, dos quais 24 estariam vivos. Mas não há negociações para novo cessar-fogo. O enviado da Casa Branca para o Oriente Médio, Steve Witkoff, disse à Fox News, neste domingo, que foi “enganado” pelo Hamas no início deste mês. Ele achou que sua proposta de estender a trégua até 19 de abril, em troca da libertação de cinco reféns vivos por centenas de prisioneiros palestinos, tivesse sido aceita. Mas não: o Hamas colocou à mesa a entrega de um refém americano-israelense vivo, e mais quatro mortos, numa negociação inédita, direta, entre um funcionário do governo americano e líderes do Hamas, em Doha, no Catar. Israel exigiu 11 reféns libertados em vez de cinco.
“Infelizmente, a guerra se tornou a alternativa”, lamentou Witkoff.
Há outra Gaza, em Israel. É a rua Azza (Gaza, força ou coragem, em hebraico, alusão ao mitológico Sansão, que foi cidadão de Gaza). Na rua Azza, no bairro Rehavia, em Jerusalém, fica a residência oficial do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. E para lá foram muitos dos manifestantes que protestam contra o reinício da guerra em Gaza, pedem prioridade para a libertação dos reféns e estão querendo a prisão de Netanyahu por ter tentado demitir o chefe da espionagem interna israelense, Ronen Bar, na sexta-feira, e, neste domingo, promoveu um voto de desconfiança à procuradora-geral Baharav-Miara, primeiro passo para demiti-la também.
“Um suspeito não demite um investigador” — a palavra de ordem surgiu em cartazes nos protestos de domingo em Jerusalém e Tel-Aviv. Em carta aos ministros que a estão fritando, Baharav-Miara disse que o governo pretende estar “acima da lei”. O primeiro-ministro Netanyahu, réu em três processos de corrupção, pivô de um escândalo de milhares de dólares do Catar enviados aos palestinos e desviados para o Hamas, o Catargate, e acusado por críticos de ter reiniciado a guerra para se manter no poder, enfrenta ameaças de greve geral, a Justiça e manifestações cada vez maiores.

Israel à beira da guerra civil

A iminente guerra civil em Israel, anunciada pelo jornal francês Libération deste sábado, ganhou uma trégua até 10 de abril, decretada pela Suprema Corte de Justiça, que congelou o seu último estopim: a demissão do chefe do Shin Bet, a espionagem interna israelense, Ronen Bar, pelo governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.

A guerra externa de Israel, porém, cresceu neste sábado, depois de uma primeira chuva de foguetes do Líbano desde dezembro. Foram seis foguetes — três interceptados e três que não cruzaram a fronteira sul-libanesa. Houve também um míssil balístico disparado pelos Houtis, no Iêmen, que se revelou um fiasco: caiu na Arábia Saudita, sem ligar as sirenes de alarme israelenses.

Os seis foguetes libaneses são um mistério: não têm dono até agora, anoitecendo no Oriente Médio. O Hezbollah, o principal suspeito, disse que não foi ele. “Reiteramos nosso compromisso com o cessar-fogo e apoiamos o Líbano na reação a essa perigosa escalada sionista”. As forças israelenses responderam com fogo de artilharia e a aviação, nas colinas Hamames e na cidade de Khiam, em Nabatieh. Foram cerca de 200 ataques, incluindo os de sexta-feira contra bases aéreas do antigo regime sírio de Bashar al-Assad, a T4 e a de Palmyra, na região central da Síria.

O maior dano causado pelos foguetes anônimos do Líbano foi o de reavivar o temor dos moradores de que permanecem inseguros em suas cidades fronteiriças, principalmente em Metula e Kiryat Shmona. Cerca de 60 mil habitantes fugiram dos foguetes do Hezbollah, diários, a partir de 8 de outubro de 2023, um dia depois da invasão do Hamas que matou 1.200 israelenses, e muitos ainda não voltaram, esperando a estabilização do cessar-fogo. Prefeitos da região questionaram o general Ori Gordin, do Comando Norte, que declarou, faz poucos dias, que não via por que os refugiados não retornavam às suas casas. “Você ainda acha isso?” — quiseram saber.

O prefeito de Metula, David Azulay, declarou que não vai permitir “a normalização dessa situação”, a de cessar-fogo interrompido por foguetes. “Isso é um fracasso, é a política de contenção que existia antes de 7 de outubro”. Mas não só os israelenses protestaram. O primeiro-ministro libanês Nawaf Salam não gostou dos disparos dos foguetes, que podem “arrastar o Líbano à uma nova guerra”. Afinal, o Líbano tem agora um governo livre da pressão e opressão do Irã e da Síria, exercidas pelo Hezbollah.

“Todas as medidas de segurança e militares devem ser tomadas para mostrar que o Líbano decide sobre questões de guerra e da paz”, disse Salam. O exército libanês informou ter encontrado e desmantelado as rampas de lançamento dos seis foguetes.

Fim do Shabat, ao anoitecer do sábado, as ruas de Israel foram tomadas por manifestantes protestando contra a demissão do chefe do Shin Bet, Ronen Bar, barrado por liminar da Suprema Corte, e do próximo ameaçado de demissão pelo primeiro-ministro Netanyahu, talvez neste domingo, a procuradora-geral Gali Baharav-Miara.

Muitos manifestantes conclamaram uma greve geral, apoiados pelo líder do partido Os Democratas e pelo chefe da oposição, os dois Yair — um Golan e outro Lapid. O Fórum das Famílias dos Reféns e Desaparecidos exigem a libertação dos 25 reféns vivos ainda com o Hamas, em Gaza. E todos querem novas eleições.

O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu resiste. Tentou afastar na sexta-feira, e não o conseguiu, ainda, o chefe do Shin Bet, Ronen Bar, que está investigando um escândalo no coração do governo, o Catargate, já com dois funcionários do alto escalão já presos. Ele quer submeter a Justiça ao poder executivo — logo ele, que responde por três processos de corrupção em andamento. Desafia a Lei como se fosse o presidente Donald Trump. Também vetou uma comissão de inquérito independente sobre a falha que permitiu a invasão do Hamas em 7 de outubro, e que, certamente, o indiciará como seu principal responsável. E retornou à guerra em Gaza, que lhe garante a sobrevivência política, ao trazer para a coligação os votos dos extremistas e ultranacionalistas do partido Poder Judeu, do ministro Itamar Ben-Gvir, que renunciou na trégua de janeiro e agora foi reinstalado no governo, irregularmente.

Os jornais online israelenses mostravam na noite de sábado impressionantes multidões em vários pontos de Israel. E publicavam os discursos de reféns libertados, de familiares de reféns cativos e de líderes políticos. A manchete do jornal Libération está correta: Israel está à beira de uma guerra civil.

Trigo Manchado de Sangue

Na Terra Prometida, testemunho de um momento de paz numa história feita de guerras.

Às 6h30, encobertos por cerca de 5 mil foguetes disparados de Gaza por 20 minutos, centenas dos cerca de 3 mil terroristas do Hamas e da Jihad Islâmica Palestina (PIJ) que invadiram Israel por terra, ar e mar, penetraram no kibutz Tel-Reim. A luz vermelha que daria até 15 segundos para que seus 422 habitantes corressem para os abrigos não acendeu. Tiros e granadas alertaram para o ataque, entre gritos de fugitivos do festival de música Supernova, onde foram assassinados 364 jovens que dançaram a noite toda.

Do trator no deserto do Neguev ao massacre de 1.200 israelenses e a captura de 251 reféns pelo Hamas, em 7 de outubro de 2023, transcorreram 56 anos unidos por uma relação de causa e efeito. Em 1967, na Guerra dos Seis Dias, Israel conquistou Gaza e o deserto do Sinai, do Egito; a Cisjordânia, da Jordânia, com a bíblica Jerusalém, sagrada para o Islã, o Judaísmo e o Cristianismo; e as Colinas do Golã, da Síria, ampliando seu território de 20.720 km2 para 73.635 km2, e assumindo a tutela de 3,1 milhões de palestinos.

Com um radinho de pilha em Tel-Reim, quando meu amigo druso não o levava em nome do socialismo do kibutz, ouvia as notícias, em inglês e francês. O principal assunto eram os territórios conquistados, que deveriam ser trocados por paz.

À espera da paz, os israelenses os invadiam, como turistas., e não eram hostilizados. Que judeu não queria conhecer a terra de seus ancestrais, a Judeia e Samaria, os nomes bíblicos da Cisjordânia, a Terra Prometida? Ou rezar no Muro das Lamentações? — o último vestígio do antigo Templo de Herodes, o segundo local mais sagrado do judaísmo, abaixo das mesquitas de Al Aqsa e Domo da Rocha, o terceiro lugar mais sagrado do islamismo. Gaza logo se tornou a oficina de carros dos israelenses, com preços muito abaixo dos cobrados em Tel-Aviv.

Havia políticos em Israel que propunham correções territoriais antes da devolução de terras, pretendendo mais espaço estratégico para o aeroporto internacional Ben Gurion; e uma unanimidade cobiçava a anexação Jerusalém. Outros sugeriam criar colônias na Cisjordânia, Gaza e Golã, condenadas pela ONU e consideradas “obstáculos para a paz” pelos EUA. No final, só o deserto do Sinai foi devolvido para o Egito, com o acordo assinado em 1978 pelos prêmios Nobel da Paz Anuar Sadat e o primeiro-ministro Menachem Beguin, que dizia que não devolveria um grão de areia do deserto.

Nos 56 anos desde 1967, mais de 700 mil judeus foram viver em 146 colônias plantadas na Cisjordânia, onde deveria brotar a Palestina. O impasse que incentivou a colonização foi cimentado pela Liga Árabe ao adotar os três “nãos” em Cartum, três meses do fim da guerra: “não” ao reconhecimento de Israel, “não” a negociações e “não” à paz.

O Hamas (“Zelo”, em árabe; “Violência”, em hebraico) quer a destruição de Israel — e não um acordo de paz. A sua carta de fundação de 1988 decreta: “A Palestina é uma pátria islâmica que nunca poderá ser entregue a não-muçulmanos”. E um texto extra corânico de Maomé complementa: “O mundo só conhecerá a redenção final e a ressurreição dos mortos quando os muçulmanos conseguirem aniquilar todos os judeus, ou convertê-los ao Islã.”

O Hamas nasceu da Irmandade Muçulmana, fundada em 1928 pelo ideólogo islâmico Hassan al-Banna, que pregava a volta ao mundo muçulmano do século VIII com o extermínio da civilização ocidental, em geral, e a dos Estados Unidos, em particular, por sua “licenciosidade demoníaca e arrogância pecaminosa”. Foi ela que assassinou o presidente Anuar Sadat, do Egito, em 1981, por causa do acordo de paz que ele assinou com Israel. Acusada de tentar um golpe contra o presidente sírio Hafez al-Assad, em 1982, cerca de 500 “irmãos” foram assassinados no massacre de 10 a 25 mil civis sírios em Hama, ao norte de Damasco. Os jornais só publicaram notinhas. É que o simultâneo massacre de palestinos em Sabra e Chatila, em Beirute, dominou as manchetes na imprensa mundial, com 500 a 3.500 mortos. O saldo dos dois massacres é incerto mais de 40 anos depois.

Em Gaza, em 1987, a Irmandade Muçulmana foi rebatizada de “Haraqat al-Muqawame al-Islamiya”, ou HAMAS, o “ramo palestino da Irmandade Muçulmana”. O comando dos palestinos de variadas facções estava unificado na OLP (a Organização de Libertação da Palestina), de Yasser Arafat, um dos fundadores do Fatah, em 1959, que se converteria de inimigo mortal a amigo e parceiro de Israel, em 1988, ao aceitar a solução de dois estados para o conflito israelense-palestino. Com o primeiro-ministro Yitzhak Rabin, que titubeou em lhe dar a mão na Casa Branca, ele assinou os acordos de Oslo, em 1993.

Dirigido pelo xeque tetraplégico e quase cego Ahmed Yassin, o Hamas ganhava cada vez mais popularidade em Gaza por prestar assistência social à população. Opunha-se à OLP e à divisão da Palestina com Israel. Em 1995, um jovem judeu ortodoxo de extrema direita, Yigal Amir, assassinou Rabin, enquanto ele entoava uma canção de paz num comício na Praça dos Reis de Israel, em Tel Aviv. Um ano depois, em 1996, o líder da direita Benjamin Netanyahu era eleito primeiro-ministro, cargo que ocupa hoje pela sexta vez.

Em comum, Amir, Yassin e Netanyahu se opunham à solução de dois estados. Há uma lei no Oriente Médio que dispõe que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Seguindo-a, o governo de Israel começou a usar o Hamas como um contrapeso à OLP, já enfraquecida com a morte de Arafat, em 2004, e por denúncias de corrupção. Em 2005, Gaza foi entregue aos palestinos. Nas eleições de 2006, o Hamas venceu o Fatah e o expulsou para Ramallah, na Cisjordânia, com uma guerra civil. A causa Palestina passou a ter dois interlocutores, um a favor de negociações com Israel, e outro, pela sua destruição.

Eis que a solução de dois estados foi resgatada pelo presidente Joe Biden, em 2023. E como brinde para que fosse aceita ele oferecia a normalização de relações com a Arábia Saudita tão ambicionada por Israel. Netanyahu não teve como rejeitar a iniciativa americana. Mas também não a aceitou.

Os sauditas faziam questão de algum progresso palpável na questão palestina. Só que Israel estava amotinado pela decisão do governo de Netanyahu, formado por uma coligação mais à extrema-direita de todos os tempos, de subordinar as decisões da Suprema Corte de Justiça ao Parlamento, que teria o poder de revogá-las. Para muitos israelenses, tratava-se de um golpe de estado. E a maioria, inclusive reservistas, foi para as ruas protestar, durante dez meses.

Nos túneis de Gaza, o líder do Hamas, Yahya Sinwar, ficou diante do seguinte dilema: a Autoridade Palestina está envolvida nas negociações entre Arábia Saudita e Israel, e ele, o Hamas, não — foi abandonado. E mais: nunca Israel revelou-se tão vulnerável a um ataque, absorto nos protestos opondo seculares e religiosos, direita e esquerda.

O Hamas vinha se mantendo propositadamente tão bem-comportado a ponto de militares israelenses sugerirem premiá-lo com a admissão de mais palestinos de Gaza para trabalhar em Israel. Secretamente, porém, já fazia mais de dois anos que o líder das brigadas palestinas Izz ad-Din al-Qassan, Mohammed Deif, elaborava um plano de invasão às cidades e kibutzim da fronteira a que batizou de “Inundação Al Aqsa” (“Al Aqsa Flood”), em memória à invasão de soldados de Israel à mesquita Al Aqsa, para desalojar jovens entrincheirados com pedras e fogos de artifício, em maio de 2021. Foram 15 dias de pandemônio na Cisjordânia, com bombardeios contra mísseis de Gaza e 250 palestinos mortos.

O comandante Deif, 58, sobreviveu a sete ataques de Israel, perdeu um dos olhos e foi ferido em uma das pernas. A sua esposa, o filho de sete meses e a filha de três anos, morreram em ataque aéreo israelense, em 2014. Em 2023, foi a vez do irmão e de dois familiares, e a casa do pai, destruída. Conheciam-no por “Homem das Sombras”, porque vivia nas sombras, e a única foto dele, além de uma com máscara e outra aos 20 anos, era sua própria sombra projetada numa parede.

O dia para abrir o dique da Inundação Al Aqsa foi escolhido por ser um feriado religioso, Shemini Atseret, o “oitavo dia da convocação” após os sete do Sukot, que comemora a proteção de Deus aos judeus que fugiram da escravidão no Egito. Além de feriado, era Shabat. Milhares de soldados gozavam de licença. De repente, a barragem de 5 mil mísseis, às 6h30, assustou. O sistema de defesa aérea Iron Dome não interceptou tantos mísseis de uma só vez. Mas eles miravam a distração de Israel.

De Gaza, drones voaram para explodir postos de observação já do lado israelense. Destruíram câmeras e sensores sofisticados. Milhares de homens do Hamas detonaram a fronteira, ou a derrubaram com tratores. Muitos tinham a missão de eliminar soldados que guardavam posições destacadas em mapas bem precisos encontrados em bolsos de palestinos mortos.

Por quase duas horas, cerca de 3 mil terroristas do Hamas penetraram, livres, em Israel, em suas picapes brancas, motos, bicicletas, paragliders motorizados, barcos e lanchas — uma invasão por terra, mar e ar.

A Inundação Al Aqsa transbordava de sangue — o ódio represado desde a Nakba, a “Tragédia” de 1948, como a independência de Israel foi traduzida em árabe. Alguns milicianos faziam selfies ao lado dos corpos de quem acabavam de matar para enviar à família e amigos em Gaza. Em vários kibutzim, filhos foram mortos diante dos pais, e mulheres mortas depois de estupradas, bebês queimados, casas saqueadas e incendiadas. Quem conseguiu correr e se trancar nos abrigos antiaéreos também não escapou, as portas arrombadas e granadas atiradas para dentro.

O massacre maior ocorreu no festival de música Supernova, ao lado do kibutz Tel Reim (“A Colina dos Amigos”). A festa atravessou a noite e ia animada, já dia claro. De repente, a barragem de mísseis riscando o céu azul de traços brancos. Todos pararam para ver. E surgiu o inesperado: tiros e granadas, e corpos caindo no descampado — 364, o total de mortos. O estacionamento era uma armadilha: quem corria para lá, morria. Motoristas mortos aos volantes bloquearam as saídas, baleados enquanto tentavam pegar a estrada. Dois rapazes, Geva, 20, e Shaked, 23, que fugiram para o kibutz Tel Reim pulando cadáveres, ligaram para o pai, o chefe de polícia Eyal Aharon. Ele partiu para salvá-los. Pelo caminho encontrou soldados confusos à espera de ônibus que não chegavam, caos e pânico, e as primeiras barreiras militares. Ele fez inúmeras escalas para salvar vítimas de emboscadas do Hamas, ou recolher caronas que queriam combater os invasores.

À medida que chegava à fronteira de Gaza, Aharon foi percebendo a dimensão do que sucedia. Era o mais trágico dia de Israel desde sempre, ou dos judeus desde o holocausto. Em Tel Reim, os filhos estavam encurralados. Soube pelo celular que um deles tinha sido baleado duas vezes numa perna. Quando se preparava para tentar o resgate, alguém o segurou pelo ombro. O comandante de um pelotão que acabava de chegar lhe disse: “Deixe com a gente; vamos pegar seus filhos”. Os filhos sobreviveram, e ele foi honrado como herói pelo socorro prestado na estrada.

Às 8h23, duas horas desde a Inundação Al Aqsa, Israel declarou estado de alerta. Mais de 350 mil reservistas começaram a ser mobilizados. A aviação fez sua primeira blitz em Gaza, para onde os terroristas do Hamas voltavam com 251 reféns, alguns feridos e outros mortos, valiosos para troca com prisioneiros palestinos. Uma refém quase nua foi exibida como troféu na boleia de uma picape, sob aplausos de uma multidão. No dia seguinte, Israel declarou estado de guerra. E o Hezbollah, no sul do Líbano, comemorou disparando mísseis contra cidades do norte israelense, obrigando 60 mil de seus moradores a se deslocarem para Sul. E por “solidariedade”, os disparos continuaram, diários.

“Por que Israel, dos 195 países do planeta, está sozinho em ser condicional, como se sua existência dependesse da boa vontade das outras nações do mundo?” — perguntou o escritor israelense David Grossman, em um artigo sobre a invasão do Hamas. Ele, que já perdera o filho, Uri, na guerra do Líbano, em 2006, completou: “Os judeus não chegaram à terra de Israel por conquista, mas buscando segurança; e sua poderosa afinidade com esta terra tem quase 4 mil anos; foi aqui que eles emergiram como uma nação, uma religião, uma cultura e uma língua”. O editor da revista New Yorker, David Remick, conta que ficou chocado ao ouvir israelenses lhe dizerem: “Não somos mais israelenses; somos judeus”.

As referências a Gaza, na Bíblia, parecem atuais: “Por isso meterei fogo aos muros de Gaza, fogo que consumirá os seus castelos” (Amós 1:6-10). “Porque Gaza será desamparada, e Ashkelon ficará deserta” (Sofonias). A primeira menção está no Gênesis, localizando Gaza na fronteira de Canaã e “na direção de Sodoma e Gomorra”. Gaza vem do hebraico Az, forte, e talvez o “forte” aqui tenha sido Sansão, que pediu, traído por Dalila: “‘Deixe-me morrer com os filisteus’. E ele se curvou com toda a sua força; e a casa caiu sobre os senhores, e sobre todo o povo que ali estava…” (Juízes,16:30).

Em árabe, Gaza é “Tesouro”. Muitas de suas ruas têm o mesmo nome, Al Awda — O Retorno. O retorno ao que se tornou Israel, de onde muitos foram expulsos na Guerra da Independência, em 1948. Um palestino me mostrou a chave da casa que tinha em Ashdot e a escritura do tempo do Mandato Britânico. Em outra ocasião, em Nablus, na Cisjordânia, o prefeito Bassam Shakaa, sem as pernas e os braços, amputados num atentado terrorista judeu, pediu que o empurrasse na cadeira de rodas até o quintal de sua casa. E mostrou: “Ali estão enterrados meu pai, avô e tetravô. Esta terra me pertence”. Ao sair, parei na Administração Militar, e cobrei uma resposta. O porta-voz apontou para Hebron à distância: “Lá está enterrado Abraão”.

No dia seguinte à invasão a Israel, o primeiro-ministro Netanyahu advertiu aos não integrantes do Hamas, entre os 2,1 milhões de habitantes de Gaza: “Saíam daí agora. Nós estaremos em toda parte, e com toda a nossa força”. E assim foi, e está sendo. Quase um ano depois, 49 mil palestinos estão mortos, a maioria civis, com mulheres e crianças contando 2/3 das vítimas. Israel inclui nesse total 20 mil combatentes, que não são singularizados pelo Ministério da Saúde do Hamas. Feridos, quase 100 mil. Os deslocados alcançaram 90% da população, ou 1,9 milhões. Entre os israelenses, morreram 340 soldados.

Gaza voltou à sua condição de ruínas, uma das cidades mais conquistadas e destruídas no mundo, desde os tempos bíblicos. No terceiro mês da invasão, em janeiro, um órgão da ONU, com base em imagens de satélite, registrou: 22.131 estruturas arrasadas, 14.066 severamente danificadas e 32.950, moderadamente, num total de 69.147 casas, prédios, escolas, hospitais e instalações do Hamas.

Cada bombardeio israelense com alvo militar preciso, e munição selecionada para evitar vítimas e danos colaterais, causa, no mais das vezes, uma tragédia. O Hamas se esconde por baixo de áreas residenciais, sob mesquitas e hospitais. Os moradores de prédios recebem um telefonema ou mensagem alertando para um ataque iminente, dando-lhes tempo de fugir.

O assassinato do “Homem das Sombras”, Mohammed Deif, custou 90 vidas, em 13 de julho. Ele morreu porque saiu de seu túnel em Khan Yunis para a luz do dia, algo raríssimo. Ao que se soube, teria um encontro. E ele próprio escolheu um local de sua infância, al-Mawasi. Mas alguém avisou Israel. E logo surgiu um caça que despejou nele a bomba que abre cratera no solo. Foi seu oitavo atentado, o último. Junto, morreu Rafaa Salameh, comandante de uma brigada do Hamas, alguns seguranças e dezenas de civis.

Deif virou mártir, herói para os palestinos do Hamas. A sua herança inclui o “metrô de Gaza”, de que seria um dos idealizadores. São 500 quilômetros de túneis, completados ao longo dos anos, ao custo de 10 milhões de dólares. Alguns trechos têm 18 metros de profundidade. Os primeiros abertos, em 2007, serviram para contrabandear armas e material de construção, por baixo dos 17 quilômetros de fronteira com o Egito, conhecida por Corredor Filadélfia, o mesmo do impasse para o acordo de cessar-fogo, pela insistência de Israel em patrulhá-lo com seus soldados.

No “metrô de Gaza”, blindado contra bombardeios aéreos, estaria o cativeiro de cerca de 100 reféns, os restantes dos 251 sequestrados. Formariam um escudo dos líderes do Hamas no QG com computadores, luz elétrica e sistema de ventilação. De suas saídas, as “estações” que são buracos camuflados no deserto, partiram emboscadas contra soldados israelenses. Uma extensão desembocava perto de um kibutz dentro de Israel. Em alguns trechos podiam se concentrar 200 homens armados. Em outros, circulavam caminhões e blindados. Havia arsenais de mísseis. Um atirador punha a ponta do lançador para fora, apertava o gatilho e desaparecia fechando a tampa, da cor do deserto. Os israelenses procuravam o local do disparo, e não o encontravam.

O Hamas construiu o “metrô de Gaza”, mas nenhum abrigo antibomba para a superfície, uma das mais densamente populadas do mundo. Os civis abrigaram-se em hospitais, escolas e mesquitas fugindo dos bombardeios, mas seguiam alvos de bombas, com o Hamas no subsolo. Criaram-se áreas de proteção humanitária. E foi numa delas que o “Homem das Sombras” morreu.

O escritor David Grossman lembrou um ditado do filósofo Gershom Sholem, fundador do estudo moderno da cabala, o misticismo judeu: “Todo sangue flui para a ferida”. E ele agrega: “Assim Israel se sente. O medo, o choque, a fúria, o luto, a humilhação e o desejo de vingança, as energias mentais de uma nação inteira — todas elas não param de fluir para a ferida, o abismo no qual ainda estamos caindo”.

Em Israel, as manifestações contra o premiê Netanyahu viraram rotina. Acusam-no de sabotar os acordos de libertação dos reféns acrescentando itens inaceitáveis para o Hamas. Os protestos crescem com a adesão dos israelenses que denunciam que Netanyahu prolonga a guerra para se manter no poder, imune a dois processos de corrupção e suborno que podem condená-lo, e ainda para se livrar da responsabilidade do grande fracasso de segurança que permitiu a invasão do Hamas — logo ele, eleito como “Mister Segurança”.

Por causa das guerras em Gaza e no Líbano, mesmo que Israel não as tenha iniciado, os judeus da diáspora se sentem acuados. Uma onda de antissemitismo aflorou no mundo. Os campi universitários e ruas de vários países ficaram em favor da Palestina “do rio até o mar”. Nove embaixadores foram embora de Tel Aviv batendo a porta. O Tribunal Penal de Haia julga uma acusação de genocídio em Gaza. E Israel vai se tornando um país pária no mundo, isolado pelos excessos de sua retaliação com milhares de mortos civis, crianças e mulheres. A relação privilegiada com os EUA entrou em declínio.

Véspera do primeiro aniversário, a Inundação Al Aqsa está secando. Em Gaza, 22 dos 24 batalhões do Hamas foram dizimados. Aos sobreviventes, resta a opção de uma guerra de guerrilhas.

No Líbano, o Hezbollah foi decapitado: seu líder há 32 anos, o xeque Hassan Nasrallah, morreu soterrado sob as ruínas de 8 toneladas de bombas, depois da sequência de assassinatos de seus principais comandantes e da explosão de pagers e walkie talkies de suas tropas. Só os Houthis iemenitas, entre os membros do Eixo da Resistência criado pelo Irã, reagiram com um míssil balístico, abatido por Israel.

E no 361º, a guerra chegou à sua origem, o Irã, o patrocinador do Hamas, do Hezbollah, dos Houthis e de milicias no Iraque e na Síria: 181 mísseis balísticos disparados contra Israel. A próxima volta da espiral, com a ponta inicial em Gaza, espera a retaliação israelense. Lembra Beirute arrasada, 1982, Yasser Arafat partindo para o exílio na Tunísia, num navio chamado Atlântida, o continente perdido. A última vez que o encontrei foi em 1994, em Gaza. Ele então dizia que iria plantar uma Singapura no deserto. Era próprio dele: buscar o ideal, perdendo o possível. O meu trigal floresceu. Quando parti de Israel, no final de 1967, as espigas chegavam à minha altura.

Eliane Brum

Correspondente

de guerra.

Na Amazônia.

Este texto foi originalmente publicado na Revista Imprensa

A repórter Eliane Brum mostra de sua janela o rio Xingu, lá longe, correndo azul onde acaba o verde da floresta. Entre os dois, observador e observado, há algo em comum: a renovação constante, apesar de represados pela hidrelétrica de Belo Monte e pelo olhar condicionado do curso da vida. Mas há momentos em que ambas as comportas se abrem.

Eliane Brum aprendeu a se desprender de si própria para ver e ouvir com total atenção e isenção, como se fosse uma página em branco a ser marcada. “Sou uma escutadeira e olhadeira” —orgulha-se. Mais que uma ferramenta de trabalho de jornalista, é também uma postura de vida. Aqui pode estar uma explicação para sua produção original, única e em permanente mutação que já lhe rendeu 70 prêmios internacionais e nacionais, entre os mais cobiçados por jornalistas. E agora, ela lançou o seu nono livro, “Banzeiro Òkòtó (pronuncia-se com ^ nos ós), Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo”.

Brinquei com Eliane, em nossa primeira conversa virtual, que sabia qual era o verdadeiro segredo de seu sucesso: é que ela passou a infância bebendo água de sua cidade natal gaúcha, Ijuí, que em guarani quer dizer “Águas Divinas”. Só podia ser isso, um milagre. Ela riu. 

Eu a vi em mais de 30 entrevistas ao vivo pelo lançamento do seu novo livro. Mesmo às perguntas muito repetidas ela respondeu pacientemente,sem se incomodar, com visível laringite, audível tosse e uma coceira insistente nas costas — são os mosquitos lembrando que na Amazônia todos têm um corpo. 

Durante nossa teleconversa, surgiu um dos dois gatos, o Capitu, ou Capetu; um galo cantou várias vezes perdido em fusos horários; os três cachorros latiram muito, e o barulho de uma motosserra reinou no ar: “Você está desmatando?”, provoquei. Kkkk. Não: ela está preparando a casa em que vai viver com o marido britânico Jonathan Watts, que chega em dezembro para ficar 11 meses, em licença do jornal The Guardian, para escrever um livro. “Comprei madeira de demolição. Qualquer outra, aqui, é da floresta, mesmo que certificada, e não a uso”. Um gole no chimarrão, e ela diz: “Vou lhe mostrar a vista da janela”.

Lá longe, o Xingu…

“Sou uma escutadeira e olhadeira” 

Lá longe no tempo, Eliane, aos cinco anos, viu o pai, Argemiro Jacob Brum, ser “humilhado” pelo prefeito de Ijuí. Primeiro da família a ser alfabetizado, ele se tornou professor de Português, História, Geografia e Contabilidade, e um dos fundadores, em 1957, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FAFI), a pioneira do noroeste do Rio Grande do Sul, em 1985 reconhecida como universidade pelo Ministério da Educação. Foi “a primeira da Nova República”. Uma escola rural estava ligada à FAFI, ao tempo da ditadura. O prefeito das “Águas Divinas”, Emídio Odósio Perondi, da Arena, taxou-a de “subversiva”, porque seguia o método Paulo Freire e ainda respeitava o calendário das colheitas, e a passou para o poder municipal administrar.

“Foi a primeira vez que vi meu pai humilhado”, contou Eliane em sua maratona de entrevistas pelo lançamento de Banzeiro Òkòtó. “Pensei que tinha que fazer alguma coisa, que não podia permitir que meu pai fosse humilhado. Decidi então por fogo na Prefeitura”.

Naquela noite, Eliane não dormiu. Antes que alguém acordasse, lá foi ela para o outro lado da praça de sua casa, onde os pais a proibiam de ir. Ali ficava a Prefeitura. Um, dois, todos os fósforos, nenhum acendeu o incêndio. Ela voltou frustrada do seu “ímpeto revolucionário”, mas também aliviada. “Meu irmão depois me explicou que no cimento não dava”.

Foi aí que a primeira chama do jornalismo começou a queimar Eliane. “Descobri que jornalismo é o meu jeito de não pôr fogo no mundo. Que escrevo para não matar e morrer.” Aos oito anos, ela matou uma baratinha. Só se aliviou da culpa escrevendo “A autobiografia de uma barata”, o seu primeiro texto, guardado ainda hoje num caderno de capa vermelha. E de novo constatou: “Sempre digo que escrevo para não matar e para não morrer”. Aos nove anos, Eliane cometeu a sua primeira poesia, “muito ruim”, numa manhã de chuva supermelancólica. “Aquilo me mostrou que escrever era um ato de vida, um ato de fazer viver, de poder estar viva e de lutar pela vida e por tudo aquilo que é vivo. Essa experiência com a palavra pariu a mulher que eu sou hoje”.

A infância “foi um terror” para Eliane. “Escrevia para não cortar os pulsos. E ia deixando os pedaços de papel pela casa, como uma espécie de pistas que meu pai ia recolhendo. Aí, um dia, ele veio com a notícia de que ia publicar. Eu fiquei toda orgulhosa. Ao mesmo tempo, me senti nua. Depois disso parei de escrever por uns tempos, por causa desta exposição das minhas vísceras. Só voltei na adolescência. Parei quando fui mãe. E voltei quando virei repórter”.

Eliane foi mãe de Maíra aos 15 anos. “Fui uma adolescente bem terrível”, lembrou. Tantas constatações de que seria jornalista na vida, e ela acabou prestando vestibular para Biologia. Ia se inscrever também para Informática, na PUC, quando soube, na fila, que tinha muita matemática. Aí entrou para jornalismo. E fez História também.

Ainda estudante, ela escreveu uma reportagem sobre as filas que todos enfrentamos durante a vida. E aí, sem filas, ei-la catapultada para estagiar na redação do jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Só saiu de lá onze anos depois, convidada para a revista Época, onde ficou outros dez.

Muito do que se tornou Eliane não deve ser atribuído apenas às Águas Divinas. O pai, Argemiro, foi fundamental. Alfabetizado por uma professora negra, Luzia de Figueiredo Neves, a quem a família Brum deixa uma flor no túmulo todos os anos, ele não só se tornou “professor emérito” do Rio Grande do Sul, em 1992, e um dos fundadores e diretor da Universidade de Ijuí, a Unijuí, como também escreveu 40 livros, entre eles “O Desenvolvimento Econômico Brasileiro” (Vozes), reeditado 30 vezes. Morreu de AVC, aos 86 anos, em 2016.

“Quando minha família me pediu um obituário, tive de imediato uma queimação no estômago. Antes de meu pai cessar de respirar, eu me despedi dele. No final da tarde de 4 de agosto, logo depois de assistir ao jogo Brasil X África do Sul, ele teve o primeiro AVC. No hospital teve o segundo, e entrou em coma. Morreria menos de 24 horas depois. Assim, quando me despedi dele, talvez ele já não me ouvisse. Mas eu me despedi, e agradeci a ele por ter me dado a palavra. Meu pai me deu a palavra de tantas formas diferentes. E quando ele morreu senti que as palavras silenciaram em mim. Se as palavras sempre haviam sido insuficientes para dar conta da vida, como dariam conta daquela morte?”

No obituário, Eliane lembrou como Vanyr Burtet, a mãe, viu o pai quando tinha 13 anos, e decidiu: “Este vai ser meu”. E foi mesmo. “Começaram a namorar quando ela tinha 15 anos, depois que ela mandou um ‘correio elegante’ sutil como uma pedrada: ‘Se meu amor for correspondido, serei a mulher mais feliz do mundo’. E foi. Esta data é conhecida lá em casa como ‘o dia do tijolaço’. Estavam há 65 anos juntos e ainda comemoravam todas as efemérides de seu romance. No aniversário ‘de conhecimento’, a mãe ganhava rosas. O banco de praça onde namoravam foi transferido para o museu. Enquanto existiu um certo poste, o visitavam periodicamente para rememorações. Andavam de mãos dadas e dormiam de conchinha, vencendo por amor as dores na coluna.”

Outra morte que mexeu profundamente com Eliane foi a de Ailce Oliveira Souza, uma merendeira de escola, em julho de 2008. “Me arrebentou”, ela disse numa entrevista. Era uma reportagem para a Época. Por 115 dias ela acompanhou a morte se aproximando, e chegar. “O que Ailce me deu é algo para sempre. E algo raro: ela confiou em mim a ponto de me deixar testemunhar o fim de sua vida e contar uma história que ela jamais leria”. Sobre a morte de Marielle Franco, assassinada em 2018, no Rio, ela pergunta diariamente pelas redes sociais, logo ao acordar: “Quem mandou matar Marielle? E por quê?”

Ailce Oliveira Souza: 115 dias até a morte.

A melhor reportagem, para Eliane, é sempre a última. Mas se ela tiver que destacar alguma outra além dos últimos dias de Ailce, escolherá a marcha da Coluna Prestes, que refez em 44 dias, em 1993. Por 25 mil quilômetros ela entrevistou uma centena de pessoas que lhe deram uma versão até então desconhecida, a do “povo do caminho”, ou “o avesso da lenda” — não a de rebeldes, nem a de governistas. É marca dela: tirar da mesmice o singular, o novo do já conhecido. O Zero Hora soube aproveitar esse potencial de sua repórter: deu-lhe um espaço onde ela pôde contar os “meus desacontecimentos”, aos sábados. As crônicas foram reunidas no livro “A Vida que ninguém vê” (Arquipélago, 2006). E quando ela foi embora do jornal, não houve quem a substituísse.

Outro traço de Eliane é o de seguir em frente, sem se acomodar ao que já fez. Da palavra impressa, pulou para o cinema. Ela co-dirigiu três dos quatro documentários que fez: “Uma História Severina”, de 2005, premiado 17 vezes, no Brasil e exterior, e mais “Gretchen Filme Estrada”,”Laerte-se” e “Eu+1: uma jornada de saúde mental na Amazônia”. Pulou também para a palavra falada, convidada a dar palestras na Itália; em Madri; no PEN World Voices Festival, em Nova York; em dois eventos criados pelo escritor Salman Rushdie; uma série em Frankfurt, Munique e Giessen, na Alemanha; na Universidade da Flórida, em Miami; na de Dartmouth, em New Hampshire, e em Harvard, onde falou sobre “A Amazônia e a criação de futuro”.

Eliane decidiu ser freelancer, chefe dela mesma, dona dos prazos e tamanhos de seus textos, em 2010, e três anos depois começou a escrever colunas para o jornal espanhol El Pais. Mas foi em 2017 que tomou uma das decisões mais fundamentais de sua vida: a de mudar-se para o centro do mundo — para ela, Altamira, o front da destruição da maior floresta tropical do planeta. Repórter tem que estar onde está a notícia. E nada mais importante, hoje, que o colapso do clima. Ela já tinha ido a Amazônia várias vezes como enviada especial a partir de 1998, quando escreveu sobre a rodovia Transamazônica para o Zero Hora. Agora, seria como uma correspondente de guerra, e de sua trincheira avistaria o Brasil e o mundo.

Foto de Lilo Clareto

“Escolhi habitar o centro do mundo”, ela explicou. “Há anos defendo, junto com outros, a necessidade de deslocar o conceito do que é centro e do que é periferia. Num planeta em colapso climático, os centros são os enclaves naturais de vida, como oceanos e florestas tropicais, aqueles cuja sobrevivência é essencial para barrar nossa própria extinção num planeta que superaquece. É também nesses centros que estão as pessoas que por milhares de anos conviveram com a natureza sem destruí-la, sendo natureza elas também. Como jornalista, eu queria estar no centro do mundo e contar o planeta desde o centro.” Ela também é militante ativa em movimentos sociais. Foi uma das fundadoras, e participa ativamente, do Liberte, o Futuro e do Amazônia Centro do Mundo — uma parte global, com ativistas de diferentes países, cientistas, pensadores, indígenas, quilombolas, ribeirinhos etc., e outra local, no Médio Xingu, que junta diferentes organizações e pessoas avulsas. Mas ela não atua em nenhuma organização formal, porque aí seria complicado conciliar com o jornalismo.

Não é que Eliane pula de uma missão a outra assim de repente. Ela vai se preparando, maturando a estratégia, e tem que sentir uma comichão dentro do corpo, um “incômodo”. Ela me disse que “as melhores mudanças na minha vida vieram pelo incômodo”. Hoje, talvez, a palavra mais apropriada seja banzeiro, o redemunho de “brabeza” que a atraiu no rio Xingu e que agora carrega em suas entranhas. Ela também está se “reflorestando”, identificada com a floresta. E amazonizando-se. O vocabulário denota o grau de empatia entre ela e o seu admirável mundo novo. Em contrapartida, ela vai observando que verbos como duvidar, comparar, confrontar ou testar estão sendo trocados por acreditar. “As pessoas passaram a ler a realidade da mesma forma que leem a Bíblia”, ela escreveu ao comentar o Nobel da Paz de 2021 concedido a dois jornalistas. “Destruir a linguagem é tática para ganhar o poder”, concluiu. A crise da imprensa seria sequela do rompimento da palavra, agravado pelo negacionismo. Quem acredita em Bolsonaro? Quem acreditou em Trump? A quantas mentiras gravíssimas já demos ouvidos? 

Eliane estava andando com a psicanalista e amiga Ilana Katz por Altamira, em 2016, quando lhe disse, “sem saber de onde vinha aquela voz”: “Vou me mudar para Altamira”. E lá veio ela, de mala e cuia de chimarrão. Quem largou tudo para segui-la foi seu parceiro fotógrafo Lilo Clareto, que “se encantou em onça” ao morrer de Covid-19, em abril. 

Lilo, o que “se encantou em onça”.

Banzeiro Òkòtó tem uma dedicatória a Lilo e traz uma galeria de suas fotos da Amazônia. Eliane responsabiliza Bolsonaro, diretamente, pela morte dele e de grande parte dos mais de 600 mil mortos, por causa do negacionismo que equiparou a pandemia a uma “gripezinha”, ofereceu cloroquina como antídoto, pregou a desobediência ao distanciamento social, à máscara e ao confinamento, e ainda espalhou que a vacina provocava Aids. Ela defende que Bolsonaro seja julgado por extermínio, na população geral, e por genocídio, no caso dos indígenas, especialmente pela pesquisa realizada em mais de três mil normas federais, cuja conclusão é de que o presidente e seu governo executaram um plano de disseminação do vírus para obter imunidade de rebanho.

Além de se reflorestar, Eliane também se tornou a voz da Amazônia gritando “socorro!” O desmatamento (recordista em outubro), incêndios, grileiros, garimpeiros, a hidrelétrica de Belo Monte (a licença por renovar) e a mineradora canadense Belo Sun, que projeta a maior mina de ouro a céu aberto do mundo, na Volta do Xingu, estão levando a Amazônia ao ponto de não retorno. É “o minuto antes da meia-noite” — declarou o primeiro-ministro britânico Boris Johnson na abertura da recente COP26, em Glasgow, para governantes de 197 países. “Estamos cavando nossas próprias covas” — arrematou o secretário-geral da ONU, o português António Guterres. 

Banzeiro Òkòtó “é um chamado à maior luta da trajetória de nossa espécie na única casa-planeta que temos, uma luta contra a autoextinção que só poderá ser vencida se formos capazes de nos tornarmos outro tipo de gente…”

Quando teleconversamos, Eliane vestia uma blusa com fotos da pintora mexicana Frida Kahlo. As duas se parecem, inspiradas na natureza e no questionamento de gênero, classe, raça e identidade, uma com traços, outra com palavras. Disse-lhe que temia por sua vida, afrontando tantos poderes, grileiros e garimpeiros, em defesa de povos-floresta, quilombolas, ribeirinhos e refugiados de Belo Monte, hoje miseráveis na periferia de Altamira. Lembrei de Chico Mendes e Dorothy Stang, ambos assassinados. Ficou em silêncio por um momento, depois concordou: “Eu sei que corro risco. Mas também sei que o meu risco é infinitamente menor do que de todas essas lideranças que estão com seus corpos na linha de frente na floresta”. O tempo mais perigoso do ano está começando agora na Amazônia: o Ministério Público Federal, Defensorias (da União e do Estado) e as ONGs vão se esvaziando pelo recesso do Natal e ano novo. Para quem está marcado para morrer, a alternativa é procurar refúgio, porque a bandidagem corre solta. Os grileiros chegaram ao poder. Estão nas prefeituras. Estão no executivo. Seus crimes foram legalizados.

Numa entrevista ao vivo, o jornalista Breno Altman, do Ópera Mundi,perguntou se a emergência social não seria maior que a climática. Para Eliane “não há nada superior à emergência climática. Ela não está acima, ou abaixo de nada. Atravessa tudo. Jornalista, hoje, é um jornalista climático, ou não é jornalista”. E dá o exemplo da grande imigração em massa de refugiados climáticos. O refugiado dirá que está fugindo da fome ou da violência. Mas, se questionado um pouco mais, vai explicar que o clima mudou, veio a seca — e com ela a fome e a violência. Uma frase da sueca Greta Thunberg volta-lhe sempre à memória: “Nossa casa está pegando fogo”. E nós? “Nós ficamos sentados no sofá”. O veterano jornalista Ricardo Kotscho considera Eliane “a melhor repórter do Brasil, embora escreva num jornal espanhol, El Pais”. E acrescenta: “De lá, do meio da selva amazônica, ela consegue enxergar melhor do que nós o que está acontecendo no país…”

Pergunte-se a Eliane o que, afinal, é òkòtó, e ela prefere que a resposta seja encontrada no livro. Com meu espaço no fim, pulo para a última pergunta que fiz a Eliane: se ela, como as outras vezes em que estava perto de uma mudança, não estaria sentindo agora um “incômodo”, o banzeiro a puxando para um novo desconhecido. Ela respondeu “não”, porque “estou longe de completar meu processo de reflorestamento e tenho um monte de planos. Estou só no início”.


Livros de Eliane Brum

Uma breve história dos mercenários

Grupo de mercenários na África

São mercenários. Foram soldados, veteranos de guerras que continuam na luta, agora por dinheiro, contratados por empresas privadas que os alugam para missões especiais em vários países, como golpes de estado, proteção a multinacionais em regiões hostis, a navios em águas com piratas e a bilionários inseguros. Até grupos terroristas os contratam.

A atriz e ex-Embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas, Mia Farrow (foto), planejou enviar mercenários para pôr fim ao genocídio em Darfur, no Sudão, em 2008, mas não concluiu o acordo que negociava com a empresa americana Blackwater, e afinal limitou-se a arrecadar dinheiro para um socorro humanitário.

O aluguel de mercenários é um negócio que cresce muito no mundo. Duas empresas, a americana DynCorp International, e a britânica Armor Group, têm até ações nas bolsas de Wall Street e da London Stock Exchange. Difícil estimar quanto vale esse mercado, certamente bilionário, porque as transações orbitam paraísos fiscais, ou usam criptomoedas — e muitas vezes os pagamentos são em ouro ou diamantes, como nos países africanos em que reina hoje uma poderosa contratante russa de mercenários, a Wagner.

Desde o governo Bill Clinton a Casa Branca tem preferido os mercenários aos próprios soldados. Entre 2007 e 2012, o Departamento de Defesa gastou 160 bilhões de dólares com exércitos privados.

O professor de Estratégia da Faculdade Internacional de Assuntos de Segurança, do Departamento de Defesa dos EUA, Sean McFate, ex-paraquedista e ex-chefe de uma empresa privada de mercenários na África (foto), explica que um batalhão de infantaria custa 110 milhões de dólares por ano, enquanto o equivalente alugado sai por 99 milhões de dólares. Com uma diferença: em tempos de paz os soldados continuam recebendo o soldo, mas os mercenários, não.

O grupo sul-africano Executive Outcomes, já extinto, recebeu 1,2 milhão de dólares por mês para acabar com uma rebelião em Serra Leoa, na África Ocidental, e o conseguiu, enquanto a ONU pagava 47 milhões de dólares para uma força de paz inoperante. Teve dois mil combatentes quando treinava as forças armadas de Angola para encerrar décadas de conflito com o grupo guerrilheiro angolano UNITA. Implodiu por corrupção, em 1993.

Exército de aluguel tem outra vantagem: os mortos não vão ensacados para os países que os contrataram. São estrangeiros. Governos os ignoram e jornalistas não os encontram para entrevistas, “mídia-fóbicos” e clandestinos. Não existem para as Convenções de Genebra, que tratam das leis internacionais de Direito Humanitário. O silêncio beneficia a todos e mantém o negócio atrativo e em ascensão. Os americanos só souberam que havia mais mercenários na guerra do Iraque, 53 mil, do que soldados, 35 mil, quando um grupo da empresa Blackwater matou 17 civis na praça Nisour, em Bagdá — um massacre que escandalizou o mundo. Soldados de aluguel, em inglês, são chamados de “soldier of fortune”, “hired gun” e “contractors”.

Guerras na Crimeia, em dois tempos distintos.

Desde a tomada da Criméia pela Rússia, em 2014, mercenários de 50 países se enfrentam na Ucrânia. No terceiro dia da atual invasão russa, o chanceler ucraniano Dmytro Kuleba publicou um apelo a voluntários no Twitter. Em pouquíssimo tempo, cerca de 20 mil estavam inscritos para a “Legião Internacional de Defesa Territorial da Ucrânia”, a maioria da Europa, com mil alemães e 200 croatas, e Estados Unidos, 500 da República de Belarus, alguns japoneses e até brasileiros.

Voluntários, não mercenários, eles têm que pagar as próprias passagens. Os veteranos de guerras foram direto para o front. Outros, sem nenhuma experiência, para campos de treinamento, ou para tarefas logísticas e funções civis de ucranianos mobilizados para o exército. Como não falam a língua, são separados em grupos em que predomina o inglês, o francês, o espanhol, russo e alemão.

Um dos brasileiros que se inscreveram, Tiago Rossi, instrutor de tiro em Maringá, no Paraná, disse a agência pública de radiodifusão alemã Deutsche Welle que “estava a caminho” e que atuaria como franco-atirador. Em grupos de WhattsApp e Telegram muitos brasileiros lamentam não ter dinheiro para a viagem, algo em torno de 7 mil reais até a Polônia, e pedem doações. Alguns são até qualificados, como ex-soldados da força de paz no Haiti, ou ex-policiais militares.

Do lado da Rússia não foi preciso anúncio para reforçar as tropas na Ucrânia. O presidente Vladimir Putin pediu a seu ministro da Defesa, Sergei Shoigu, em reunião do Conselho de Segurança transmitida ao vivo por TV, em 11 de março, que fosse encontrar “no meio do caminho aqueles que estão querendo ajuda para chegar à frente dos combates”. Chamou-os de “voluntários”, mas, na verdade, seriam mercenários, já que pagos. O “Movimento de Libertação da Ucrânia” foi formado por veteranos da guerra na Síria, os sírios que defenderam o presidente Bashar al-Assad contra rebeldes, mais os fiéis do Estado Islâmico unidos a iranianos e soldados do Hezbollah. Talvez por isso várias cidades ucranianas ficaram muito parecidas com as devastadas Idlib, Aleppo e Douma, na Síria.

A Rússia também conta com um poderoso grupo de mercenários, Wagner, ligado a militares russos e ao oligarca Yevgeny Prigozhin, amigo de Putin procurado pelo FBI por interferir na eleição presidencial de 2016 para a Casa Branca. Nele há chechenos, sírios e líbios — uma tropa de 6 mil combatentes. Tornou-se conhecido quando soldados franceses deixaram o Mali, o sétimo maior país africano, em 2020. Em Bamako, a capital, foi recebido com cartazes “Amamos Wagner” e “Obrigado, Wagner”, e fotos do maestro e compositor Richard Wagner coladas nos muros. O nome teria sido inspirado no apelido da artilharia da era soviética: “a orquestra”.

Wagner é mais temido do que apreciado. Na República Centro-Africana, seus homens combateram uma rebelião com massacres, tortura e sequestros, segundo relatório da ONU. Em troca, obtiveram licenças para exploração de minas de ouro e diamantes. Na Líbia, eles cometeram execuções sumárias em apoio a chefes tribais que ambicionavam o governo. No Sudão, sufocaram, violentamente, as manifestações contra o ditador Omar Hassan al-Bashir.

A história dos mercenários começa na Bíblia. Em 1Crônicas 19:7 está descrito: “Alugaram trinta e dois mil carros e seus condutores, contrataram o rei de Maaca com suas tropas, o qual veio e acampou perto de Medeba, e os amonitas foram convocados de suas cidades e partiram para a batalha.”

E mais, em 2Reis 7:6: “Pois o Senhor tinha feito os arameus ouvirem o ruído de um grande exército com cavalos e carros de guerra, de modo que disseram uns aos outros: “­Ouçam, o rei de Israel contratou os reis dos hititas e dos egípcios para nos atacarem!”

O professor Sean McFate lembra os primeiros que se armaram de mercenários depois do Velho Testamento: o Rei Shulgi, de Ur (2029-1982 AC); Xenofonte, militar discípulo de Sócrates, contratou um exército de gregos que batizou de Dez Mil (401-399 AC); Cartago os usou nas Guerras Púnicas contra Roma (264-164 AC), incluindo 60 mil guerreiros de aluguel sob comando de Hannibal. Quando Alexandre o Grande invadiu a Ásia, em 334 AC, acrescentou cinco mil estrangeiros às suas tropas, e enfrentou as forças persas que contavam com 10 mil gregos. Foram mercenários alemães que salvaram Júlio César na batalha de Alésia contra os gauleses, em 52 AC.

Guerras Púnicas

Os mercenários continuaram guerreando por toda a Idade Média. Reis, famílias ricas, a Igreja, Papas — todos os tiveram para defesa da honra, sobrevivência, deus, roubo e vingança. Usou-os até mesmo o filósofo, diplomata e escritor Thomas More para proteger a sua República utópica. Curioso é que, por essa época, os mercenários eram chamados de condottieri, italiano para contractors, o atual nome deles em inglês.

As guerras mudaram no século 17, as armas mais destrutivas e superbatalhas que incluíam até 50 mil combatentes. Os mercenários ainda predominavam, lembra o professor Sean McFate. “O conceito de patriotismo não estava relacionado ao serviço militar. Isso só viria mais tarde, com o crescimento do nacionalismo, Napoleão e a guerra convencional”. Em 1648, com a paz de Vestefália, que encerrou a Guerra dos 30 Anos (1618-1648), líderes de todos os lados resolveram acabar com o mercado livre de mercenários, responsabilizados pela devastação na Europa central. Para os exércitos privados, quanto mais guerras, mais salários. A paz não era um bom negócio. O florentino Nicolau Maquiavel opinava que os condottieri transformavam os guerreiros em animais, e os cidadãos, em covardes.

Aconteceu que os mercenários sem guerra, desempregados, passaram a cercar cidades e a exigir resgate em dinheiro para libertá-las. E, quando partiam, despediam-se: “Até o ano que vem”. A cidade toscana de Siena pagou a extorsão 37 vezes, entre 1342 e 1399. A última participação conhecida de mercenários, até o final do século 20, foi em 1854, na guerra da Crimeia, onde de novo estão lutando, hoje, nos dois lados da invasão russa da Ucrânia.

As Convenções de Genebra I e II, em 1977, baniram a figura do mercenário. E determinaram que ele “não tem o direito de ser um combatente ou prisioneiro de guerra”. Mas aos poucos eles foram voltando, com a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria. O mercado se abriu com conflitos nos Bálcãs, guerras estourando no Mali, Congo, Iêmen, os carteis de drogas na América Latina, Al Qaeda e Estado Islâmico, no Oriente Médio. Os Estados Unidos passaram a contratar exércitos para suas guerras no Iraque e no Afeganistão. Foram 50 mil soldados terceirizados, em 2018, segundo o próprio Departamento de Defesa.

O professor Sean McFate ia buscar seus mercenários entre filipinos, colombianos e sul-africanos que tinham lutado em forças especiais. “São como camisetas, baratas nos países em desenvolvimento. É a globalização da força privada”. Alguns grupos sublocavam tarefas aos nativos dos locais em que trabalhavam, daí formando subgrupos que assumiam o lugar deles quando partiam para outras missões. Assim, hoje, há pequenas empresas privadas em vários países, como a Mister White e Mister Pink, no Afeganistão, herança da empresa britânica ArmorGroup.

Os exércitos privados oferecem pilotos de helicópteros, tanquistas, militares familiarizados com vários sistemas de defesa antiaérea, sabotadores, agentes treinados em extrair prisioneiros, soldados para o deserto ou para florestas — um supermercado de produtos para qualquer missão. O que não existe é mulher mercenária. McFate afirma que nunca encontrou uma sequer.

Mercenários colombianos presos depois do assassinato do presidente do Haiti

A empresa de aluguel de mercenários CTU Security, em Miami, recrutou militares da reserva das forças especiais colombianas, em maio e junho de 2021, e os mandou ao Haiti para proteger alguns dignitários locais. Aos poucos, a missão foi mudando. E em 7 de julho o grupo invadiu a residência do presidente Jovenel Moïse e o matou na cama dormindo com a mulher, Martine, que ficou ferida. Como eram “protetores”, passaram pelos soldados haitianos sem problemas. Depois do assassinato, 18 dos 26 mercenários colombianos foram presos, e outros três, mortos. Um escapou, talvez o comandante: Mario Palacios, 43, que integrou a força Delta de combate aos narcotraficantes na Colômbia. Ele conseguiu entrar na vizinha Jamaica, onde acabou preso por violar leis de imigração. Foi então que aceitou cooperar com o FBI, desvendando a operação para matar o presidente haitiano, em troca de ser deportado para Bogotá. Mas, numa escala no Panamá, o destino dele mudou: voou para a prisão em Miami.

Um dos donos da CTU Security, Arcangel Pretelt, oficial da reserva das forças especiais colombianas, afirmou que os Estados Unidos sabiam que o presidente Moïse seria morto e substituído por um antigo juiz da Corte Suprema do Haiti, Windelle Coq-Thelot. Ele foi desmentido. E desapareceu.

Em 3 de maio de 2020, um grupo de mercenários americanos desembarcou numa praia venezuelana. Missão: matar o presidente Nicolas Maduro. Horas depois, quem não estava morto, estava preso. O fracasso foi assumido por Jordan Goudreau, antigo soldado dos Boinas Verdes dos EUA e chefe da Silvercorp, na Flórida. Inevitável lembrança: a tentativa frustrada de invadir Cuba, em 1961, com o desembarque de exilados cubanos anticastristas na Baía dos Porcos, treinados e dirigidos pela CIA e com apoio das Forças Armadas dos EUA.

Um dos mais famosos mercenários de todos os tempos, “Mad Mike” Hoare morreu ao completar 100 anos, em 2019, em Durban, na África do Sul. Era um soldado britânico que serviu na Índia e em Myanmar durante a segunda Guerra Mundial. Em época de paz, trabalhava como contador, em Londres — mas, ao mesmo tempo, organizava safaris na África, que desbravou em motocicleta, quando buscava a lendária cidade perdida no deserto de Kalahari.

O espírito de aventura e o conhecimento da África o tornaram mercenário. Sua primeira missão, contratado pela CIA, foi sufocar uma rebelião no Congo, considerada uma ameaça pelos Estados Unidos. A imprensa americana o glorificou, embora existissem provas de que ele e seus homens tivessem cometido roubos, estupros, tortura e assassinatos.

“Eu gostaria de ter nascido na época de Sir Francis Drake”, ele disse ao jornal The Washington Post, lembrando o capitão inglês e corsário condecorado pela rainha Isabel I como cavaleiro, em 1581. “Sim, velejando, roubando os espanhóis, e quando trouxesse o butim para a Rainha Elizabeth, ajoelhado, ela me faria um cavaleiro. Me tornaria respeitável — mesmo sendo um ladrão.”

“Mad Mike” era racista: só contratava brancos, e mais de uma vez disse que “os africanos eram animais”. Essa impressão ficaria mais forte ao lutar contra o rebelde congolês Moise Tshombe, em 1961, e ter três de seus mercenários canibalizados. Sua tropa, apelidada de Gansos Selvagens, liquidou as forças da tribo Simba, mais numerosas, mas menos treinadas, e que acreditavam que um feiticeiro as tivesse blindado contra balas. A partir daí, os Gansos ficaram famosos como “Gigantes Brancos”. E recebiam 300 mil dólares por mês de Mobutu Sese Seko, que governou a República Democrática do Congo, antigo Zaire, por 30 anos sangrentos.

Em outro encontro com Simba, em Kisangani, em novembro de 1964, os Gigantes Brancos libertaram 1.600 missionários europeus e americanos feitos reféns.

O ator Richard Burton atuou no papel de um mercenário inspirado em “Mad Mike”, no filme que em inglês tinha o título de Gansos Selvagens, mas que, em português, ficou sendo Selvagens Cães de Guerra.

O filme o tornou mais famoso ainda, lançado em 1978, e coincidiu com sua primeira grande derrota ao tentar derrubar o governo socialista das ilhas Seychelles. Ele e 40 homens disfarçados de jogadores de rúgbi desembarcaram no aeroporto de Mahé, mas um dos fuzis AK-47 que levavam escondidos foi descoberto na alfândega. Houve um tiroteio, com um morto de cada lado, e “Mad Mike” sequestrou um avião da Air Índia na pista e voou cerca de sete mil quilômetros, até Durban, onde ele e os Gansos foram presos.

Condenado a 10 anos de prisão, Mike Hoare serviu três anos, beneficiado por uma anistia presidencial. Mudou de vida, ao sair: foi para a França, onde passou 20 anos estudando uma seita cristã conhecida por Cathars, sobre a qual escreveu um romance histórico. Voltou em 2009 para a África do Sul. Teve cinco filhos em dois casamentos, e oito netos. Quando lhe perguntaram o que o levou a ser mercenário, “Mad Mike” respondeu:

“A mística é inexplicável – a mística sobre o soldado com homens fortes. É algo mais do que apenas soldado por dinheiro. O momento da verdade vem às 3 da manhã em um buraco. Seu amigo foi morto ou ferido, e nenhum dinheiro pode compensar…  Mas há uma alegria indescritível de ser parte de uma unidade bem disciplinada…





SEM PALAVRAS

Cada desenho do artista israelense Yuval Robichek vale mais que mil palavras atribuídas a uma foto. Nem legendas requerem. A fonte de inspiração dele é o cotidiano, relacionamentos, crianças… Vejam esta seleção. Quem quiser mais, Robichek está no instagram e boredpanda. Nota curiosa: não vi desenho algum dele com tema de guerras, tensão — a rotina em Israel.

Rosental, Rosentelex, Rosentalcom.

(Este perfil de Rosental Calmon Alves foi publicado na revista Imprensa de set/out 2021)

O "Grande Guru", segundo o jornal El Pais.

Do “Rosental, repórter policial de O Jornal”, ao “Rosentelex” e atual “Rosentalcom”, o professor Rosental Calmon Alves deixou um rasto de inovações fundamentais para o jornalismo — e não só o brasileiro. Lá está ele, via zoom, em sua casa em Austin, no Texas, bebericando uma taça de Malbec rosé argentino, depois de um dia de trabalho no Knight Center for Journalism in the Americas. “Está um calor danado”, ele comenta.

(Aviso: somos amigos, mas não nos víamos há muitos anos.)

O jornal espanhol El País descreveu Rosental: “Grande teórico do jornalismo na web, grande guru ibero-americano do advento da internet, homem adiantado a seu tempo”. Que o Guru releve que o publiquemos em papel, primeiro, e na internet, depois. Deveria ser o contrário. Ainda não cometemos o “midiacídio”, palavra que ele inventou, no longínquo 1999, para prescrever que só a morte do sistema de fazer jornalismo da Era Industrial abriria as portas para o novo mundo do jornalismo da Era Digital. “Somos a geração da transição.”

O Guru também receita surpreender os leitores. Tento agora, com uma informação pouco conhecida: Rosental Calmon Alves ia ser padre, frequentou seminário jesuíta. Abandonou-o, mas continua católico aos 69 anos. A religião importa, porque “todo mundo tem que ter um norte na vida.” Outra recomendação do Guru: dialogar com os leitores, que não são mais passivos, e contar como é o trabalho para produzir um artigo. Então, conto que Rosental me deu muito trabalho. Tentei entrevistá-lo por duas horas, mas pulularam lembranças de coberturas em que nos encontramos, rivais em jornais concorrentes: voamos com P.C. Farias de Bangcoc para SP; estivemos na crise que levou à invasão americana no Panamá; em El Salvador; em reuniões do FMI e Banco Mundial; no primeiro lançamento de um ônibus espacial após o desastre da Challenger, e o dia a dia em Washington na época da moratória brasileira, encontros Reagan-Gorbachev, a queda do Muro de Berlim, eleições americanas… Digna de nota dessa época foi a declaração do nosso embaixador nos EUA, Marcílio Marques Moreira, ao saber que o Rosental não tinha morrido no Bateau Mouche, no réveillon de 1988: “Muito desagradável ter sido dado como morto”. Ele passava o réveillon navegando defronte a Copacabana, mas em outro barco.

O que mais define Rosental é o adjetivo primeiro. Ele foi o primeiro brasileiro a receber uma bolsa de estudos da Fundação Nieman, da Universidade de Harvard, em 1987. Em 1991, ele criou o primeiro serviço de notícias em tempo real do Brasil — uma parceria entre o Jornal do Brasil e a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Quatro anos depois, 1995, foi o primeiro a pôr na internet um jornal brasileiro, o JB online, um dos pioneiros na América Latina. Em 1997, deu o primeiro curso de jornalismo online na Universidade do Texas, em Austin. Depois, em 1999, idealizou e organizou o Simpósio Internacional de Jornalismo Online (ISOJ, em inglês), uma conferência anual que organiza até hoje. Com um financiamento de dois milhões de dólares da Knight Foundation, em 2002, ele estabeleceu o Knight Center for Journalism in the Americas. E aí vieram, com sua ajuda determinante, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), o Fórum de Jornalismo da Argentina (FOPEA), do Paraguai (FOPEP) e várias outras similares (a mais recente, a Ajor, Associação de Jornalismo Digital, que reúne dezenas de startups jornalísticas no Brasil, fundada em maio de 2021). E em 2012, ele formatou o primeiro programa de curso aberto online massivo (MOOC, em inglês), único no mundo especializado em jornalismo, pelo qual já passaram 250 mil estudantes de 200 países até agosto deste ano. Claro que, diante disso tudo, Rosental entrou para o Hall of Fame da Associação Nacional de Jornalistas Hispânicos, em 2018.

O início da trajetória que o levou até à taça de Malbec rosé, às vezes branco, do nosso reencontro, foi o ano de 1968, quando ele tinha 16 anos. Já dava os primeiros sinais de pioneirismo: ia fundar uma Associação Estudantil de Imprensa, não fosse detido antes, com alguns companheiros. A ditadura estava no auge. Era “O Ano Que Não Terminou”, descrito por Zuenir Ventura em livro. Rosental estagiou na redação de O Jornal, no Rio, e logo se mudou para Vitória, em 1969, onde morou com o irmão e outras cinco pessoas, entre elas Gerson Camata, senador que seria assassinado 49 anos depois, aos 77 anos.

“Como Camata acordava cedo para fazer um programa de rádio às 7 horas, eu comecei a ir com ele e me ofereci para trabalhar de graça”. Dias depois, numa barbearia, Rosental conheceu o jornalista capixaba Rubinho Gomes, que o convidou: “Apareça lá nO Diário”. Mais que aparecer, deve ter sido uma aparição: terno, gravata, um enorme gravador pré-cassete Philips à mão

“Comecei como repórter e me pagavam 100 cruzeiros em vales semanais (o salário-mínimo era de CR$ 150,00), e sem carteira assinada.” Ele já tinha recebido, antes, o primeiro dinheiro como jornalista, dez cruzeiros, com a venda de uma entrevista com o diretor do Serviço de Proteção ao Índio, “O que há com nossos índios”. Queria guardar a nota com a foto de Getúlio Vargas como lembrança. Mas a gastou no bar Britz, o preferido dos jornalistas de Vitória, na época.

Rosental também teve sorte em sua ascensão. Em busca de um disco-voador, em Marataízes, com um grupo d’O Diário, que afinal não passava de um balão meteorológico, ele encontrou Carlos Imperial, conhecido produtor artístico. “Pedi uma entrevista e ele me convidou para ficar na casa dele, porque estava dando uma festa que tinha, entre os convidados, o tricampeão mundial Tostão, saído de uma operação em Houston”. Outro exemplo de sorte, anos depois, em 1996: só um brasileiro deve ter visto na revista The Economist o anúncio classificado de um concurso na Universidade do Texas. Foi ele. O resto dependeu, é claro, de competência: disputou com 200 candidatos e conquistou a cátedra John S. e James L. Knight. “O segundo presidente daqui gostava muito dessa história. Numa festa de Natal, ele me pediu: -Conta aí como você veio parar aqui…” O próprio Rosental considera “sorte muito grande” ter sido convidado para dar aula na Universidade Federal Fluminense, aos 21 anos. “Eu era mais jovem que meus 55 alunos”. Um ano depois, acumulou o cargo de professor na Universidade Gama Filho. E ele ainda estudava jornalismo.

Rosental zanzou pelas rádios Tupi e Nacional, ao voltar de Vitória para o Rio, até que se fixou no Jornal do Brasil, o seu sonho desde sempre, em 1973 e até 1995, com uma interrupção de um ano em que foi editor-assistente da revista Veja.  A carreira de correspondente internacional começou em 1979, quando foi fazer freelance para a IstoÉ e o Jornal do Brasil em Madri, mas o JB o contratou como correspondente em Buenos Aires, em seguida para o México e as guerras da América Central — e, depois de um segundo período em Buenos Aires e um ano em Harvard, finalmente, o JB o mandou para Washington. Nessa época os colegas correspondentes já o conheciam como Rosentelex, pela facilidade com que dedilhava seus textos no telex, plugado com a redação, enquanto a maioria dos repórteres datilografava nos quartos de hotéis e depois entregava os originais no correio, ou em agências de notícias, ou os lia por telefone para cabines em seus jornais, soletrando palavras.

“Em 1988, eu tive meu momento Aha!” — lembra Rosentelex na transição para Rosentalcom. Foi num seminário do MIT Media Lab em que aprendeu o que estava por vir com a revolução digital. O mundo começou a mudar. E Rosental foi com ele, com a audácia de sempre se atirar nos alvos de sua intuição. É aprender fazendo. Ele cita o poeta andaluz don Antonio Machado Ruiz: “Caminante no hay camino, se hace camino al andar”.

Hoje, jornal de papel ele só lê um, regularmente: o New York Times de domingo. Para se manter informado, bastam-lhe as newsletters, “um grande fenômeno”. Elas superam “um dos grandes problemas do jornalismo online — o saco sem fundo de um fluxo interminável”. Do Brasil ele lê o Meio, lançado pelo jornalista Pedro Dória, que elogia muito; e o Poder Drive e o Poder360, do jornalista Fernando Rodrigues, a quem ele mandou uma mensagem cinco minutos depois de saber que a Folha de S. Paulo o havia demitido: “Foi a mão de Deus”, escreveu. É que “ele estava totalmente equipado para criar a um site para cobertura de Brasília similar a um de sucesso nos EUA, o Político. “E ele fez melhor do que eu faria”, em termos estratégicos, ao lançar primeiro uma newsletter paga e depois o site aberto. No seu cardápio matinal, Rosentalcom inclui ainda a Nexo, “muito boa também”. No final da tarde em Austin, já noite no Brasil, ele assiste o Jornal Nacional, pela Globo Internacional: “Eu acho que o (William) Bonner tem feito um trabalho excelente”.

Quando foi para os EUA, Rosental prometeu à mulher, Cláudia, que não ficariam mais do que quatro anos. Os quatro filhos do casal se tornaram adultos, se formaram em universidades americanas, e 25 anos se passaram. Ele vai completar 70 anos em dezembro. Tem “tenure”, ou estabilidade, o que lhe dá mais vantagem que os ministros do STF: não pode ser demitido e a universidade não lhe fixa prazo algum para se aposentar. “Um professor daqui, hoje com 99 anos e ainda na ativa, ganhou o Prêmio Nobel em 2019, aos 97. Ele criou a bateria que permitiu a popularização dos celulares e recentemente criou a bateria que permitirá a popularização dos carros elétricos. O professor John Foster Dulles, que o Elio Gaspari chama de O Primeiro Brasilianista, morreu aos 95 anos de idade, quando preparava as aulas para mais um semestre na nossa universidade”.

Rosental é um workaholic,um trabalhador compulsivo. Poderia trabalhar sete meses e meio por ano, indo à universidade duas vezes por semana. Mas não: ele se dedica muito mais, e até se cria funções extras. Uma delas é o Knight Center, que ele diz ser um labor of love — um trabalho de amor, “uma forma de ajudar meus colegas jornalistas na transição digital”. Outro é participação em projetos jornalísticos, como o Texas Tribune, jornal digital sem fins lucrativos, e que se tornou um grande sucesso. “Faz anos que vou a conferências de jornalismo mundo afora e ouço o Texas Tribune ser citado como um exemplo a seguir”. Ele ainda faz parte de 15 Conselhos Administrativos e Conselhos Consultivos importantes, entre eles o American Journalism Project, Nieman Foundation, na Universidade de Harvard, e o Conselho Reitor da fundação criada por Gabriel Garcia Marquez, que dá os Prêmios Gabo de Jornalismo. É também o presidente do conselho da Universidade de Columbia, que concede o Maria Moors Cabot, o prêmio de jornalismo internacional mais antigo do mundo.

O repórter Rosentelex foi sempre furão. Agora, ele dá furos no universo acadêmico, onde se coloca como um “repórter infiltrado”. Chamam-no de “doutor”, e ele corrige: “Não sou do doctorland, mas do journalismland”, um “evangelizador digital”. Ele começou a ensinar jornalismo online quando tinha que explicar aos alunos, primeiro, o que era internet. Hoje, todos são “jornalistas” — tuiteiros, blogueiros, youtubers , publicam no Facebook, no Instagram e participam de infindáveis listas no WhatsApp, e daí o naufrágio numa perigosa cacofonia, um ecossistema fértil para fakenews e formação de tribos virtuais, um fenômeno que em inglês tem um nome, homophily, “a tendência a se relacionar apenas com pessoas que pensam como você”. É a infodemia, a infoxicação. Por essa confusão toda, Bolsonaro tem uma live toda quinta-feira, e o presidente de El Salvador, candidato a ditador, diz que o jornalismo não precisa existir mais. Donald Trump tinha 80 milhões de seguidores no Twitter, 30 milhões no Facebook e 20 milhões no Instagram. A vacina para essa nova pandemia é a alfabetização jornalística, a explicação, para a população, qual a diferença entre jornalismo e o que parece ser jornalismo. Rosentalcom inverteu a frase “meios de massa” para “massa de meios”. De um sistema mídia-cêntrico para outro, “eu-cêntrico”. A pós-cacofonia poderá até valorizar o trabalho jornalístico, realçando a busca da verdade e baseado em princípios éticos e deontológicos, como está demonstrando a cobertura da Covid-19 em alguns jornais: “O jornalismo está salvando vidas”.

O jornal impresso se tornou subproduto do digital, mas muitos estão afundando devido à ruptura de seus modelos de negócio.

Exceção dos três grandes jornais dos EUA: o New York Times, com a maior redação de sua história, 1.700 jornalistas, e 8 milhões de assinantes em sua plataforma digital; e o Washington Post e o Wall Street Journal, que bombam com o paywall, uma porta que se abre aos que pagam assinatura.

“Mas os paywalls não são uma solução mágica que serve para todos”, avisa Rosentalcom. “Podem, sim, ser parte da solução”. Cerca de 2 mil jornais fecharam nos últimos 15 anos, nos EUA, principalmente os locais. Mas brotam, atualmente, por toda parte, novos modelos de empresas jornalísticas nativas digitais, incluindo muitas sem fins lucrativos. Como membro do Conselho de Diretores do American Journalism Project, Rosental participa de um esforço de 50 milhões de dólares para ajudar jornalistas a criar jornalismo local sem fins de lucro. “É muito simples. Você forma uma organização jornalística como se fosse uma empresa, só que ela não tem donos para receber eventuais lucros. Se gastarmos menos do que faturamos, chamamos o que sobra de superávit e, em vez de usá-lo para distribuir dividendos aos acionistas, o reinvestimos na operação ou formamos um fundo de reserva para os períodos de vacas magras”.

Para Rosental, “entramos numa outra Era Gutenberg e estamos num momento de ruptura e de transição. Não dá mais para continuar fazendo jornais do mesmo jeito”. Ele receitou, numa

entrevista recente: “Precisamos, todos, fazer uma urgente autocrítica. E a primeira reflexão nos leva a depor as armas da arrogância e assumir a batalha da humildade. A comunicação, na família, nas relações sociais e no jornalismo, não é mais vertical. O diálogo é uma realidade cultural. Os oráculos morreram. É preciso ouvir o leitor. Com respeito. Com interesse real, não como simples jogada do marketing. O leitor não pode ser tratado como um intruso.”

Ao leitor informo, seguindo a recomendação de Rosentalcom, que o fim, aqui, é determinado pelo espaço. Fim.

Lembranças do Golã

Assim estava o Golã em 1968

Em 11 de março de 1982, atendi o telefone, em Tel-Aviv, e era Jânio Quadros. Ele tinha ido conversar com Muamar Kadafi, na Líbia, e na escala em Lisboa, voltando ao Brasil, um diplomata o aconselhou: “Você não pode visitar um país árabe, no Oriente Médio, e não passar por Israel”. Então, aqui estava ele.
Já conhecia o ex-presidente. Tinha sido enviado ao exílio com ele em Corumbá, no Mato Grosso. Eu, repórter; ele, punido. Agora era um reencontro: Jânio queria conhecer as colinas do Golã. E lá fomos nós no meu carro.
Duas horas de viagem, Jânio teve tempo apenas de me falar de Kadafi, antes de cair no sono. Não viu a Galiléia, quase primaveril. Nem o lago Tiberíades. Parei num café para acordá-lo porque já íamos subir para o topo do Golã ocupado por Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967.
Morei um tempo bem perto do Golã, no kibutz Dafna. Fins de semana, amarrava cervejas e as colocava para gelar na corredeira do rio Dan, que descia das geleiras sírio-líbano-israelenses do Monte Hermon. Subimos uns dois mil metros, até um lugarejo chamado Banias. Um córrego passava por baixo do restaurante em que sentamos. Já sem ressaca, Jânio me pareceu extasiado com a paisagem. Lá em baixo, o Mar da Galiléia, o vale do rio Jordão; no planalto, uns 30 quilômetros adiante, Damasco, a capital da Síria, estava visível.


Golã, 1968, arquivo pessoal

Um ano antes, em 1981, Israel tinha anexado o Golã, com lei aprovada no Parlamento. Um ato isolado, não reconhecido pela ONU. Mas para devolvê-lo, em troca de acordo de paz, como aconteceu com o Sinai, a maioria dos 120 deputados terá que ser a favor. Nas encostas, israelenses começaram a produzir um vinho ótimo, que muitos países jamais importaram porque originário de território ocupado. Os habitantes das colinas são drusos, muitos dos quais amigos de Israel, alguns tão amigos que servem o exército israelense. Os que não são amigos, também não são inimigos de pegar em armas, ao contrário dos palestinos na Cisjordânia e em Gaza. Um druso armado sempre me acompanhava quando arava a terra ao lado de Gaza, no kibutz Reim, no deserto do Neguev.
Levei Jânio a um posto de observação de soldados israelenses. Não havia ainda rebeldes sírios, guerrilheiros do Hezbollah e guardas iranianos que só chegaram com a guerra civil síria, agora nos estertores, depois de sete anos e quase meio milhão de mortes. Ali reinava o silêncio; o perigo era apenas uma lembrança de quando os sírios disparavam nos kibutzim israelenses na planície. Ao estudar a topografia e a distância, Jânio exclamou:
-Mas daqui, com uma passarinheira, acerto qualquer um lá embaixo!
Jânio voltou para o Brasil no dia seguinte. Hoje, 37 anos depois, o presidente Donald Trump reconheceu o direito de Israel às colinas do Golã. Um presente eleitoral para Bibi Netanyahu, que quer se reeleger mais uma vez, em 9 de abril. Outro reforço eleitoral será dado pelo presidente Bolsonaro, que visita Israel no fim deste mês. 

Salvador, 14º lugar mundial

O jornal The New York Times publica sua lista anual dos 52 lugares do mundo que merecem a visita de turistas este ano de 2019. O primeiro “paraíso” é a ilha de Porto Rico, recuperada do furacão Maria que a devastou no ano passado. O segundo lugar coube a Hampi, na Índia, uma das mais ricas cidades do mundo no século XVI. Lá estão mais de mil monumentos preservados, incluindo templos hindus. Santa Barbara, na Califórnia, ganhou o terceiro lugar. Salvador, na Bahia, o 14º, é o único destino brasileiro recomendado. Paris? Não. Na França, o quente deste ano são Lyon e Marseille. Para mim, a surpresa é o Irã, recomendado apesar do perigo de guerra ou conflito interno permanentes. Vale a pena dar uma olhada: texto bom, fotos ótimas. Link: /www.nytimes.com/interactive/2019/travel/places-to-visit.html?em_pos=large&emc=edit_tl_20190112&nl=travel-dispatch&nlid=33543102edit_tl_20190112&ref=headline&te=1

Trump trabalhou para os russos?

(O FBI está investigando, segundo o The New York Times de hoje).



Um livro a cada 12 minutos

Entrou na APPStore um programa que resume livros a 12 minutos de áudio. O resumo pode vir em texto também. Os comentários de quem baixou o “12min” são, até agora, elogiosos. Logo teremos uma geração que leu todos os clássicos, mas dessa forma, rasteira.

Novo na Banca

Dando bandeira

Esta Bandeira do Voto Popular foi desenhada pelo programador Toph Tucker (ex-Businessweek, Twitter, GituHub, Medium…) com um algoritmo que decide o tamanho das estrelas e das listras segundo o número de habitantes dos 50 estados (estrelas) e das 13 colônias originais (listras) que declararam independência do Reino Unido. (via Kottke.org)

Criar asas, e partir.

Aproveito a ideia do escritor japonês Sebuyama, para a revista Kakaku, e crio asas para voar em férias por dez dias. Pousarei num local sem wifi e sinal celular. Até a volta.

Galeria

Fotos de drones campeãs

Este foi o quinto concurso de fotos tiradas com drones. Dronestagram, o seu nome. Mais fotos podem ser vistas aqui: http://www.dronestagr.am/