A manchete oculta

 

13_de_Março_de_2016Qual a manchete oculta nesta capa da Folha de S. Paulo, edição de 13/3, o domingo das manifestações “fora, Dilma” e contra a corrupção?

Respondo: é o avanço da publicidade sobre o editorial, na área mais nobre dos jornais, a sua capa.

Uma interferência, permitida já faz tempo, encobrindo a leitura da manchete e de outros destaques do dia. Bancada por um anunciante, a sobrecapa esconde metade do cardápio oferecido aos leitores com fome de notícias. Por um lado, rende dinheiro; mas, por outro, gera reclamações e cartas irritadas do leitorado.

Alguns responderão: é o retrato da separação entre igreja e estado, ou editorial e publicidade — dogma que a imprensa defende desde sempre para blindar sua independência e integridade. Redação e comercial não se misturam, ou não se misturavam. Houve tempo em que nem se falavam. Entre eles deveria haver um muro inexpugnável — redação num lado e departamento comercial, noutro — melhor ainda se em andar ou endereço diferentes.

Alguém poderá também responder, constatando: “Empate!” Metade da capa é da publicidade; e a outra, da redação. Há um outro tipo de sobrecapa, maior, que cobre mesmo o logotipo dos jornais, a sua identidade. “Esculacho, um deboche”, protestou o jornalista Alberto Dines, do Observatório da Imprensa, num antigo artigo. Temos ainda os anúncios em páginas internas que extrapolam seus formatos, antes bem comportados, e foram parar lá no alto, no cabeço, onde estão os títulos. Mas podem aparecer também no meio, inclinados, tortos, forçando o texto das notícias a contorná-los. Haja malabarismo, dos leitores e diagramadores.

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A invasão das capas e os anúncios esdrúxulos em páginas internas são a ponta de um iceberg, trincado de cima às profundezas, pronto a ruir em alguns jornais, ou já derretido em muitos outros. A essa montanha de gelo entre igreja e estado restaria apenas o que flutua à superfície. Nos EUA, já a dão por dissolvida, os seus escombros soterrando os milhares de jornalistas que perderam emprego no tsunami que matou centenas de jornais que apostaram só no impresso, desprezando o novo mundo de bits e bytes, e ainda se mantiveram isolados do departamento comercial.

No aniversário de 95 anos da Folha, em fevereiro (2016), o editor-executivo Sérgio Dávila defendeu de críticas o patrocínio da Odebrecht à festa e ao seminário que debateu “o que é fazer jornalismo no século 21”. Nem todos se sentiram confortáveis: quatro dos convidados não quiseram ter seus nomes relacionados ao patrocinador, investigado por corrupção na operação Lava Jato, e recusaram participar. Eram VIPs: Eurípedes Alcântara, então ainda diretor de Veja; Fausto Macedo, repórter de O Estado de S. Paulo; e os apresentadores William Waack e Renata Lo Prete, da Rede Globo.

Em nota oficial, a Folha de S. Paulo se explicou: “Toda relação comercial do anunciante com o jornal pressupõe independência do produto editorial em que o anúncio será veiculado, seja um caderno, um site ou um evento. Não há motivo para discriminar anunciante ou local onde o anúncio será veiculado.” A metáfora da igreja e estado foi relembrada por Dávila em entrevista à TV do próprio jornal.

A ombudsman da Folha na época, Vera Guimarães Martins, escreveu que preferia mais um seminário sem patrocinador. Mas se inevitável, que o escolhessem com cuidado. Ela lembrou aos concorrentes: “Todos os meios desenvolvem projetos viabilizados pelo dinheiro de grandes corporações. Para ficar apenas nos jornais, a satanizada Odebrecht patrocina o programa de treinamento da Folha (juntamente com a Friboi e a Philip Morris), de O Estado (em parceria com a Philip Morris) e do curso de jornalismo da Editora Abril (com a BRF e a Heineken). A mesma empreiteira patrocinou no final de janeiro um seminário de O Globo”. Concluindo: “Precisamos ou não falar aberta e honestamente sobre isso?”. Sim, precisamos.

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No site gawker.com, “a fofoca de hoje é a notícia de amanhã”, seu slogan, houve uma briga que bombou nas redações americanas, em 21 de julho de 2015, e que revela a dependência e capitulação ao indispensável anunciante:

“Faça então uma agência de publicidade”, protestou a editora Leah Finnegan ao fundador da Gawker Media, Nick Denton. “Diga abertamente aos leitores o que realmente somos!” — ela continuou. “Isso aqui não é mais lugar para jornalismo”.

Mas o que teria acontecido? Apenas isso: uma fofoca considerada grosseira fora tirada do ar, no site que se esmerava em ironizar a concorrência quando ela fazia o mesmo: deletar pecadilhos que ameaçavam virar processos milionários. No Gawker acrescentou-se uma outra justificativa: o temor da debandada de leitores e anunciantes. Os dois crescem e desaparecem juntos.

“Negócios sujos são feitos por toda parte” — reagiu Denton. “Sua atitude, sua ingenuidade, a revolta quando você descobre que é assim que o mundo funciona, não deixa de ser natural. Fizemos o que deveríamos fazer como empresa”. Ele ainda escreveu em memorando à equipe: “Nossa capacidade para financiar jornalismo independente é crítica. Se não retirássemos o post teríamos perdido, provavelmente, uma quantia de sete algarismos em anúncios”.

As reuniões no Gawker são praticamente públicas. Os presentes tuítam o que debatem, sem problemas. A fofoca tirada do ar envolvia o top executivo financeiro da poderosa editora Condé Nast (New Yorker, Vogue, GQ, Vanity Fair, Traveler, Glamour), David Geithner, flagrado com um ator gay de filmes pornográficos. O caso continha ainda lances de extorsão e fotos. Além do mais, a vítima e personagem principal ainda era irmão de um ex-secretário do Tesouro dos EUA até 2013, Timothy Geithner. Ninguém desmentiu a fofoca, bem apurada e documentada.

Até então, a muralha entre igreja e estado, na Gawker, como na China, ainda estava de pé. Os tempos mudaram.

(Quando pus o ponto final neste texto, recebi um alerta digital do NY Times. Era uma notícia sobre o Gawker, condenado por um júri na Flórida a pagar US$ 115 milhões ao lutador aposentado Hulk Hogan, 62, exposto em vídeo enquanto transava com a mulher de um amigo.)

 

Sem dinheiro, não tem jornal. A regra agora é reunir jornalistas e publicitários na busca conjunta de produtos que rendam lucro. Talvez um caderno especial para o dia das mães? Natal, dia dos namorados? Quem sabe algum artigo para um anunciante? A redação o fará e ele será publicado com a etiqueta de “informe publicitário”. Já se usa uma palavra para isso: advertorial, mescla de advertising (publicidade) e editorial. Em português está criado o eufemismo publieditorial, selo usado nos encartes de oito páginas sobre o Aedes aegypti inseridos nas revistas semanais, pagos pelo governo de SP. Nem se trata mais de experiência. No Times, a editora Trish Hall analisa artigos e projetos em gestação com potencial de atrair patrocinadores, ou agregar valor a marcas como Google, Dell, Netflix, Shell, etc..

Como diretor de um jornal por 11 anos, até 2014, muitas vezes me submeti, docilmente, aos desígnios do setor comercial. Precisava de verba. Senão ela, corte de pessoal. Nunca, porém, recebi algum pedido indecoroso. Durante a safra de balanço legal era comum, e continua sendo, as agências especializadas promoverem um leilão para chegar ao menor preço. Alguns jornais saiam da disputa ao atingirem o deadline de fechamento. Se não rodassem no horário, perderiam os voos que levariam a primeira edição para vários estados e Distrito Federal. Aí o prejuízo não compensaria o ganho.

Pelas 22 horas, ou até mais tarde, martelo batido, o jornal vencedor tinha que alterar a sua programação na gráfica e na redação para acolher uma porção de páginas inesperadas, embora bem-vindas. Quando anunciantes impunham espaços em branco nos balanços para que a redação os preenchessem com noticiário, tornando-os mais atraentes, o trabalho dobrava, fazia-se um mutirão. Valia a pena: R$ 3 milhões por ano.

Até o anúncio legal, hoje, está com os dias contados. Um ex-ministro me contou, justo num velório, que a presidente Dilma deve assinar uma autorização para que a safra dos balanços seja plantada doravante na internet, onde as empresas nada pagam pelo espaço, mas de onde os jornais não colherão lucro algum. Alguns morrerão, porque vivem apenas para eles, de safra em safra.

“Os Diários Oficiais fecharão?” – perguntei. Por eles a mudança sempre foi vetada. Agora, não mais: “Foram todos digitalizados” – respondeu o ex-ministro.

O The New York Times já passou a tratar notícia como produto — combinação de conteúdo editorial, monetização e tecnologia. A metáfora da igreja versus estado perdeu o sentido. Para o editor da página de editoriais, Andrew Rosenthal, o importante, nesta nova fase, é “a soma de julgamento bem fundamentado da redação e sensibilidade comercial”. Será que o jornal permitiria à Apple ou Samsung patrocinar uma coluna sobre smartphones ou computadores? “Eu não gostaria” — disse o editor-executivo Dean Baquet. “Não faremos nada que comprometa nossa credibilidade”.

Estrelas em ascensão no novo mercado de mídia, principalmente Vox Media e Buzzfeed, criaram seus próprios departamentos de publicidade nativa (native advertising). Produzem conteúdos sob encomenda, pagos, que se confundem com artigos e reportagens, mas com um pequeno detalhe diferenciador: trazem um selo que os identifica como anúncios. Revistas tradicionais como a Forbes, Atlantic, New Yorker e Economist também já entraram na era advertorial.

Em antigos jornais brasileiros funcionava o que ainda hoje é conhecido por Editoração. Aqui eram preparados pequenos anúncios para microempresários que não podiam recorrer a agências de publicidade. Às vezes, queriam publicar um quadradinho igual ao seu cartão de visita, apresentando-se ao mercado. Escolhiam o tamanho, ditavam os dizeres, ou deixavam um cartão como modelo, e recebiam a primeira prova já no dia seguinte. A Editoração agora cuida do tratamento de fotos, da qualidade do PDF das páginas que irão para a gráfica, de balanços legais e, raramente, monta algum anúncio fúnebre. Advertorial também é uma palavra antiga em inglês. Está no dicionário Oxford desde 1916.

Os jornais mudaram nos últimos cinco anos mais do que em 500 anos. A questão que enfrentam agora nem é se devem ou não cruzar a fronteira entre igreja e estado, mas, sim, qual a melhor forma de fazê-lo, unindo as duas pontas que, para a Folha do século 21, ainda não se encontram. Os anunciantes estão arredios. Com o advento dos adblockers, softwares gratuitos que bloqueiam anúncios pululando diante dos navegantes da net, cerca de US$ 22 bilhões em publicidade evaporaram no ano passado. Já são 200 milhões os internautas vacinados contra os anúncios on-line. Bom para eles, mas e para os sites? Alguns estão abrindo seu conteúdo só para quem permitir banners, os popups.

91Zy18In8IL._SX342_O jornal Boston Globe ganhou o prêmio Pulitzer e deu o Oscar ao filme Spotlight com a sua investigação sobre casos de pedofilia na igreja católica. Sua extensão on-line, Crux, lançada em 2014, foi fechada em 1º de abril, por não se sustentar. Ótimo produto, comprovado, mas zero em publicidade.

A revista Time derrubou o muro entre igreja e estado em 2013, sob pressão financeira. Foi a mudança mais radical da imprensa americana: sua equipe de jornalistas foi posta sob comando da área de negócios. Mais que extinguir a separação, promoveu, na verdade, um casamento. Que ambos os lados se conhecessem melhor, aprendendo como trabalham. A independência editorial se manteve, preservada. É possível? Tem sido, até agora, porque o comercial não pautou a redação nem uma vez, e nem o fará. A união produziu trocas de informações e cooperação “com honestidade”, resultando em nova postura ante o mercado anunciante.

Algumas empresas jornalísticas celebraram casais de três. Aos dois liberados da muralha que os separava, editorial e publicidade, juntou-se a área de tecnologia, fundamental nos novos tempos em que o jornal de papel tem sua obrigatória versão digital, mais site de notícias 24 horas/dia, TV e rádio on-line, twitters, noticiário para celulares, fóruns, vídeo, blogs e reportagens interativas, que usam recursos de ponta e terceira dimensão. O trio tem mais chances de sucesso do que duplas.

O perigo de pautas conjuntas com a área comercial é a abertura à influência de um anunciante ao conteúdo. Aconteceu com o inglês Daily Telegraph, que estava de rabo preso com o banco HSBC, por contrato publicitário, quando foi acusado de ter conduzido 100 mil clientes à lavanderia de dinheiro da Suíça. A cobertura omissa e tão suave levou o seu articulista político, Peter Oborne, a se demitir e a denunciar publicamente o jornal.

Um editor da revista inglesa Style, do Sunday Times, contou que há cerca de 20 anos foi chamado à sala do editor-chefe, onde o esperava uma carta do costureiro fashion Giorgio Armani reclamando não ter sido incluído numa recente cobertura de moda. A ordem que recebeu o surpreendeu. Que ele escrevesse de volta ao estilista um protesto pela sua “audácia de pretender interferir nas decisões editoriais do jornal”, fosse ou não anunciante.

No Estadão, quando nem existia departamento de publicidade, e quem quisesse anunciar que se dirigisse ao balcão de anúncios no térreo do jornal no centro de São Paulo, um amigo publicitário me procurou com uma proposta: a agência para a qual trabalhava compraria uma página inteira de classificados, que poderia ser revendida para lotar de classificados reais, contanto que, no meio dela, bem pequenino, sobrasse espaço para um só anúncio de área verde à venda, que deveria sair verde em meio a vizinhança preto e branca. Fomos juntos ao diretor da área que incluía publicidade, depois que um agente já havia rejeitado a proposta. Ele ouviu a lábia do publicitário, refletiu um momento, e então declarou, solenemente:

“Não, não podemos aceitar. É a nossa ideologia do preto e branco”.

 

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Nota do autor: apesar de endossar a fusão das áreas editorial e comercial nas empresas jornalísticas, este artigo não tem patrocinador. Quem quiser republicá-lo, porém…

 

 

 

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