A crise que produziu uma safra de enforcados

Essa crise econômica só começando

remeteu-me a outra, em 1995, há 20 anos,

em que 19 endividados de Irecê, na Bahia, foram

encontrados balançando em umbuzeiros.

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Foto de um enforcado em umbuzeiro em Saloá, PE, feita pelo vereadorwellingtonfreitas.blogspot.com

ireIRECÊ, Bahia (23/10/1995) — Como frutos dos umbuzeiros da caatinga, balançam os corpos dos enforcados. A safra dos suicidas é alarmante: 19 corpos já foram colhidos em cinco meses pela Delegacia Regional de Irecê, no médio São Francisco, a 474 km de Salvador. A maioria, 14, pendia como imbus, presa aos galhos por cordas de sisal ou por um cipó.

“Aqui jaz o Plano Real” — diz em Irecê o vereador e agricultor Indolécio Vanderlei Soares.

“Vivemos uma crise muito grande” — explica o prefeito Henrique Sobral.

“A maioria dos suicidas é agricultor ou tem algum elo com agricultura” — constata o delegado-regional Carlos Laranjeira.

“Três anos consecutivos de seca, somados às dificuldades geradas pelo Plano Real, com elevadíssimas taxas de juros e a falta de crédito agrícola, mergulharam no mais completo e absoluto caos os 19 municípios da microrregião de Irecê – até pouco tempo o maior celeiro de grãos do Nordeste, responsável pela produção de 20% do feijão consumido no Brasil” — protestou na Câmara, em Brasília, o deputado Cláudio Cajado (PFL-Bahia).

O ÚLTIMO – Do monte de sisal beneficiado, José Evaristo Cunha tirou um feixe. Foi para a roça no interior de Canarana, onde morava com a mulher e cinco filhos, a 46 km de Irecê. Ao camponês que o viu entrando na caatinga, avisou: “Vou buscar um jegue”. Procurado mais tarde, tanto que demorava a voltar, lá estava ele, balançando num umbuzeiro.

Morreu no dia em que nasceu, 18 de outubro, com 54 anos. Vestiu-se com uma roupa velha, porém limpa, e cobriu a cabeça com um chapéu. Amarrou-se na árvore escolhida apoiando-se num balde. Chutou-o, então, e à própria vida. A família passou com o corpo por Irecê, para autópsia, e prosseguiu viagem para o enterro em Conceição do Coité, a uns 100 quilômetros de Feira de Santana. O escrivão e repórter policial Ezequias Dourado inaugurou  o item “Canarana” em sua lista dos suicídios.

Dois cunhados de Evaristo explicam o suicídio com motivos contraditórios. O que o ajudou a recobrar-se do Plano Collor, dando-lhe um motor para beneficiar o sisal, Deraldo da Cunha, o Vavá, lamentava na sexta-feira: “O finado foi vítima de dois planos econômicos”. Lembrou: “Ele estava começando a se organizar de novo”. Até emprestava dinheiro a juro, dois anos e oito meses depois de trabalhar como servente em Salvador. “Mas, com a crise, ninguém estava podendo lhe pagar…” Nico acrescenta um sintoma visível do suicídio em gestação: “Vivia sem assunto, arredio”.

Dona do restaurante e hotel “Volte Sempre”, em Canarana, Durvalina Araújo Carneiro concorda com Vavá: “Evaristo não caçava conversa com ninguém”. Só que sua explicação não é a crise econômica, mas a mental. “Ele achava que tinha uma doença que lhe inchava o rosto”, nunca inchado. Cunhada, e também prima, ela o lembra com “uma pessoa de ouro”, que “pagava todo mundo direitinho para morrer sem dívidas”.

Foto: acopaccaldeiraoaraci.blogspot.com

Irecê (foto: acopaccaldeiraoaraci.blogspot.com)

Na informal “bolsa de valores” de Irecê, onde reina a comerciante Edna Paes Cunha entre produtores de cenoura, feijão, mamona, beterraba e cebola, não se faz segredo da agiotagem desastrada de Evaristo. “Seis devedores lhe deram o calote”. E numa safra de indiscutíveis suicídios econômicos, tornou-se mais um na relação oficial da 19a Delegacia Regional. Simples raciocínio: “A situação econômica pode ter agravado a cisma com o inchaço, levando-o à forca no imbuzeiro”.

COM A CAMISOLA – “O pai estava com os olhos abertos e a língua de fora” — conta Josemar, seis anos. Foi quem primeiro o viu. O corpo balançava na cozinha do barracão inacabado, suspenso por uma camisola enrolada. Os outros três irmãos pequenos tinham ido para a casa do vizinho com a mãe, enxotada aos gritos: “Saía, vai ver TV”.

Por três vezes, Maria Lúcia enfrentou o marido, Edilson José Leite, dizendo-lhe “não”. Mas ele ia se tornando cada vez mais furioso. Então, ela pegou Elimara, de oito meses, e saiu. Foi seguida por Jocimara, três anos, e Edmar, oito. Só Josemar ficou, escondido: “Gostava muito do pai”. Todos o apreciavam no miserável povoado de São Gabrielzinho, a nove quilômetros de Irecê, queimado pela seca.

“As crianças sofriam; ele sofria” — explica “o grande amigo” Edmilson Gomes dos Santos. A estiagem secou também os empregos. Sem irrigação, nada se planta e ninguém trabalha. “Meu marido ficava agoniado com a falta de dinheiro”, diz Maria Lúcia. Jovem, 28 anos, ela está agora sozinha com uma filha no colo, e três outros filhos pequenos em volta. “O povo vai nos dando coisinhas”, consola-se. Do barracão inacabado a família passou para um quartinho em frente, “melhor porque tem luz”. E sob uma cruz branca de madeira, no próspero cemitério do povoado, ficaram enterrados os problemas de Edilson, 35 anos.

VIDA CIGANA – No mesmo dia em que o ex-rico agricultor José de Diva se enforcou numa imburana de sua fazenda em João Dourado, na região de Irecê, “um cigano” apareceu para cobrar um cheque de R$ 5.400, parte de uma dívida de R$ 110 mil.

A dívida e a vida venceram em 5 de julho para Diva. Ele amarrou a corda de sisal, tirou o óculos, descalçou os sapatos, e se enforcou. Um empregado o viu de longe. E avisou a família. A mulher e os sete filhos não sabiam do empréstimo com “os ciganos”. Como diz Josielda Souza Marques, 25 anos: “Meu pai já foi homem de comprar 15 tratores”. Mas agora que sabem, “vou honrá-lo”, embora achem que “filhos herdam bens, não débitos”.

Diva tinha 57 anos. Plantava feijão, cenoura e beterraba. “Foi um grande produtor”, lembra-se na bolsa de valores de dona Edna, em Irecê, com muita surpresa ainda hoje. “O pai vinha mal desde o Plano Collor”, explicou Josielda, contendo-se para não chorar. “Com o real de Fernando Henrique Cardoso, ele piorou”. E passou a sofrer muita pressão dos agiotas, ciganos que vivem em Utinga, a 150 km, na rodovia BA-142, ao sul da Serra do Tombador.

Plantação na seca (acopaccaldeiraoaraci.blogspot.com)

Plantação na seca (acopaccaldeiraoaraci.blogspot.com)

“Se tivesse nos contado, poderíamos lutar juntos para pagar as dívidas”, lamenta Josielda. A imagem que fazia do pai não mudou com o suicídio, embora ele próprio menosprezasse os suicidas. “Eu o admiro muito; orgulho-me de ser sua filha”. Ela também o compara a Jesus Cristo: “Morreu pelos filhos”. Todo dia às 6 horas da tarde ela sente um aperto no coração: era a hora em que o pai voltava da fazenda para casa.

MATA-SE O COVEIRO – O repórter Levi Vasconcelos, do jornal A Tarde, de Salvador, encontrou em João Dourado um coveiro entre seis camicases do Plano Real. “A mulher dele me disse que já não tinham nem mais um grão de arroz”.

A lista do escrivão Ezequias Dourado contabiliza seis suicídios em João Dourado, sete em Irecê, um em São Gabrielzinho, dois em Juçara, um em Cafarnaum, um em Canarana e um em Ibipeba. “Mas houve outros suicídios, como o de um policial militar que não podia tratar o filho doente, e de um menino que não conseguiu pagar R$ 10 que devia de uma bicicleta”, lembra o delegado Laranjeira. Em 11 meses, cerca de 100 pessoas foram demitidas no comércio de Irecê. Uma loja que vendia 120 tratores por ano está vendendo apenas seis.

“Muita dívida”, comenta Janete, recepcionista no hotel Caraíba. Todos sabem da onda de suicídios que brotou da nova seca de três anos. “Notícia ruim corre rápido”, comenta-se na praça principal. Alguns acham que os mortos já chegam a 30. Na bolsa de valores de dona Edna uma certa esperança renasce com a primeira chuva de umbu, que molhou há poucos dias a terra queimada. “O mar está mais quente, sinal de muita chuva”, diz o agricultor Ermenito Dourado, que brinca: “Por enquanto, a situação está pecuária” (ao invés de precária).

A única solução para a microrregião de Irecê, com 19 municípios e 400 mil habitantes, é a irrigação. A terra fértil se cobrirá de frutas, feijão, milho, soja, beterraba e cenoura. “Será o fim dos suicídios”, espera o produtor Edmarcos Messias Paiva, 26 anos. E ele o prova: sua plantação de cenoura, irrigada, está verdejante. “Vou passar a plantar um hectare por semana”, promete.

Umbuzeiro dos suicidas (www.onordeste.com)

Umbuzeiro dos suicidas (www.onordeste.com) 

A esperança do vereador Indalécio está plantada na perenização de rios temporários. “Mas o governo privilegia mais o Sul do que o Nordeste”, ele reclama. O prefeito Sobral já garantiu R$ 42 milhões do Banco do Nordeste para projetos de irrigação. A solução a longo prazo, porém, só virá com a construção do canal do rio São Francisco, a 100 km. No curto prazo, a prorrogação da dívida dos agricultores, anunciada na semana passada, “só produzirá resultados se seguida de abertura de crédito”.

No gabinete do prefeito Sobral há uma foto do presidente Fernando Henrique em Irecê. Ele mostra o polegar. “… O dedo da agricultura”, brinca um assessor. O visível borrão ao lado apaga um opositor, que aparecia sorrindo. “Existe saída para tudo”, comenta-se. “Como a prorrogação da dívida dos agricultores, que pode estancar a onda de suicídios”.

“Mas o último suicídio coincidiu com o anúncio da rolagem da dívida para pequenos e médios produtores” – alguém comenta.

“… Que o suicida não tinha sido avisado” – outro acrescenta.

“Na garganta, só cerveja; corda, não: É o que se diz agora em Irecê” – conta  o prefeito Sobral.

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