Há um ano a brasileira Maria Isa morreu num presídio do Missouri, nos EUA.
Seu marido palestino morreu antes dela, em 1997, de diabetes, enquanto
esperava ser executado, no corredor da morte. Os dois mataram com
seis a oito facadas a filha de 16 anos, Palestina, porque ela os “desonrou”,
voltando-se mais aos costumes ocidentais que à Meca. O crime foi gravado pelo
FBI, que só transcreveria a fita depois. Os gritos de Palestina horrorizaram
o júri e os Estados Unidos. A familia Isa era monitorada sob suspeita de terrorismo.
Afinal, entre seus membros, havia um Hitler, um Saddam, Arafat, Hussein,
além da Palestina. E estava ligada ao grupo do terrorista Abu Nidal.
St. Louis, Missouri, 1992 — A um mês da condenação à morte ou à prisão perpétua, e no dia do segundo aniversário do assassinato da filha de 16 anos, a brasileira Maria Isa parecia feliz experimentando um novo tênis branco enquanto lamentava ser “vítima de um complô dos serviços secretos americanos” ao repórter que a visitava no presídio de St. Louis, no Missouri.
“Até que enfim acertaram meu número!” – disse Maria à guarda que esperava de pé com a caixa de tênis à mão. Ela trazia no peito, como medalhas, as fotos de seus dez netos distribuídas em três enormes botões sobre o uniforme azul de presidiária. Foi a última dos presos a entrar no corredor das visitas. E suspendeu o sorriso ao ver um estranho ao lado da sobrinha.
“Sarrafi, sarrafi” – explicou Ahlah Matias, filha de Iracema, a irmã de Maria que também vive nos Estados Unidos, em Ohio. Sarrafi quer dizer repórter, em árabe, uma presença expressamente proibida no presídio pelo diretor de Segurança Pública de St. Louis, William Kuehling. “Uma antiga política”, ele mandou dizer ao fechar a porta à imprensa. O convite partiu de Fátima Abdeljabbar, uma das filhas de Maria e Zein Isa, que está preso na cadeia do centro de St. Louis. “Entra comigo no horário de visita. Diz que é um amigo da família. Só precisa provar que mora fora do Missouri”.
Um vidro blindado separa os visitantes e prisioneiros. Alguns se beijam, e se tocam, como se ele não existisse. Mas para falar, mesmo com rostos colados, precisam de um telefone. Ahlah passa ao repórter o telefone e os 20 minutos a que tem direito. Fátima, com os quatro filhos de três meses a oito anos, espera do lado de fora a abertura das grades para a próxima sessão de 20 minutos, a última da noite. As duas filhas de brasileiras casadas com palestinos usam véu na cabeça e seguem com fervor o islamismo. Maria, não. Ela é católica. Mas aprendeu a conviver com a primeira esposa do marido, Foizia, ao mudar-se de Santa Catarina para a aldeia de Betiim, na Cisjordânia. Muitas esposas só descobrem que são mais uma no harém quando vão conhecer o Oriente Médio. Alguns homens casam até quatro vezes.
“Gostei muito da Palestina” – diz Maria, 48 anos. “Bom demais para mim. Eu trabalhava no armazém de Zein, e Foizia cozinhava. Uma vez ela veio aqui na América. Aí cozinhei para ela um dia, porque nos outros nosso marido a levou para jantar fora. É como uma grande amiga minha”. Fátima acha que os palestinos devem sentir uma certa atração especial pelas brasileiras. “São mulheres fortes”, acrescenta. “Só na aldeia de Deir Debuar, em Ramallah, viviam mais de 15 brasileiras havia nove anos. Imagina agora?” A embaixada do Brasil, em Tel-Aviv, em 1983, tinha uma lista de brasileiras que queriam ser repatriadas que “daria para lotar um Jumbo”, como dizia um diplomata.
Maria gostou tanto da Palestina que à última filha chamou Palestina. “A terra perdeu o nome, e aí demos o nome à nossa filha”. Todos a chamavam de Tina. Era uma das melhores alunas da escola Roosevelt. Jogava futebol como um menino de rua do Brasil. Já trabalhava á noite no balcão do Wendy’s, um rival do Mc Donald’s. E namorava Cliff Walker, um rapaz negro de 20 anos. “Um homem pode ter quantas mulheres puder alimentar”, explica Fátima, “mas uma muçulmana só deixa os pais para casar, e com outro muçulmano, muitas vezes um primo”. Tina estava mais voltada para Nova York do que para Meca. E Maria não entende: “Nós a criamos tão bem…O pai comprava uma dúzia de roupas para revender só para tirar uma para Tina, quando moramos em Porto Rico”. Para a família, ela era uma rebelde. A prima Ahlah diz que gostaria de ter um pai como Zein, “tão bondoso, tão preocupado com as filhas”. Outra prima, Sausan Nijneh, acrescentou: “Dava tudo que ela queria. Até prometeu enviá-la para um curso de francês em Paris. Uma ingrata!”
A prima Nijneh mora na rua Delor 3757, diante do apartamento em que Palestina foi assassinada a facadas em 6 de novembro de 1989, ao voltar do trabalho no Wendy’s, durante uma discussão com os pais. A parede da sala é decorada com uma grande bandeira vermelha, preta, branca e verde da Palestina. “Vermelha pelo sangue”, ela comenta. E prevê que a paz no Oriente Médio só será concluída quando “um rio de sangue correr à altura do joelho”. O chaveirinho sobre a mesa tem as cores palestinas. A mesquita, numa foto, é a de Al-Aksa, em Jerusalém. E o nome do sobrinho de 16 anos sentado no sofá já lhe rendeu uma prisão em Israel e muitos problemas nos Estados Unidos: Hitler.
“Mas me chamam, aqui, de Hassan” – explica Hitler. “Meu pai escolheu o nome porque Hitler odiava judeus, e os judeus ocupam a minha terra, a Palestina”. Nijneh também não faz distinção entre judeus e israelenses. “São todos iguais, e oprimem nosso povo”. E ela acha que o governo americano “é judeu”. Então, nem chega a ser muito surpreendente que o FBI tenha recebido ordens de escutar a família Isa. “Para os Estados Unidos qualquer palestino pertence à Organização de Libertação da Palestina”. Ela própria não está muito pró-OLP, atualmente, por causa do diálogo iniciado com Israel, na conferência de paz de Madri. Uma vez um vizinho a procurou para advertir: “Cuidado com as paredes”. Os telefones davam sinais de que tinham ouvintes extras. O promotor-assistente Robert J. Craddick supõe que a escuta deveria ser feita perto do apartamento, talvez noutro ao lado, ou no de um andar acima, mas não ao “vivo”, por causa da mistura de português, árabe e inglês que exigia uma tradução especializada. O FBI nada comenta.
Maria diz que nunca viu o marido levantar qualquer suspeita de militância terrorista nos 27 anos em que estão casados. E o defende: “Um brasileiro deve jogar pelo Brasil. E a religião de Zein não é ruim”. Ela ficou muito revoltada com o FBI, não só por ter escondido microfones em seu apartamento, mas porque “editou” a gravação apresentada no julgamento. A transcrição a acusa de mandar Tina “calar a boca” quando grita desesperadamente por ajuda, enquanto esfaqueada pelo pai. São 7,5 minutos de absoluto horror. Veteranos do tribunal de St. Louis choraram ao ouvir. As redes de TV se negaram a por no ar. Os jurados recomendaram a pena de morte para o casal Isa. O promotor Craddick teme não se livrar do “pesadelo” que povoa agora seus sonhos “pelo resto da vida”.
“Nada disso é verdade”, assegura Maria.
– Então, o que aconteceu?
Maria: Não vi. Por isso, não sei.
– Como não viu? A sua voz está na gravação…
Maria: Meu marido gritou comigo. E caí no chão. Por isso não vi.
– O júri recomendou para você e o marido a sentença de morte…
Maria: Isso não está certo. Querem apenas castigar meu marido. A gravação foi fabricada e não deveria ser ouvida pelos jurados.
– Você acha que será executada?
Maria: Espero que me expulsem para o Brasil.
Fátima e Ahlah ficaram surpresas com a esperança da mãe. Não a tinham ouvido até então. Mas não acham que exista alguma perspectiva de deportação. A mobilização da opinião pública brasileira “não adiantará neste caso”, como antecipa o promotor Craddick. “Não há nada que o Brasil possa fazer”. Para ele, o sangue na roupa de Maria prova que ela segurou a filha enquanto o marido a esfaqueou seis vezes. O advogado de defesa, Charles M. Shaw, explica o mesmo sangue de outra forma: a mãe superprotetora colocou-se entre o pai e a filha. E conclui: “Maria não é culpada de nada, só de ser casada com Zein Isa”.
Maria contou que está em campanha contra o FBI dentro do presídio. “Agora que falo melhor inglês, explico a todo mundo o que fizeram comigo”. No tribunal, chorou quando o júri recomendou que ela e o marido sejam executados. Mas agora “não sofre mais”, como acrescentou. “Minha mãe talvez venha me ver. E acho que vão me tirar da pena de morte, porque Zein assumiu toda a responsabilidade pela morte de Tina”. A Sra. Jacunaima Magani Matias, de 70 anos, nunca saiu do Mato Grosso nem viajou de avião, mas talvez esteja em St. Louis até antes do dia 13 de dezembro, quando o juiz Charles A. Shaw, xará do advogado de defesa, anunciará a sentença.
Zein, 60 anos, está com quatro úlceras na perna e é diabético. Ele também contesta a gravação do FBI. Nela não aparece um detalhe que ele acha muito importante: Tina lhe pediu US$ 5 mil, e com uma faca na mão. O namorado, Cliff Walker, estaria na rua esperando. Foi só então que o pai pronunciou a ameaça que provocou arrepios entre os jurados: “Você vai morrer esta noite”. E conta: “Forcei a faca na direção dela, e ela caiu. Lutamos no chão”. Aí ele pôs o pé na boca de Tina para calar os gritos. Não se lembra quantas vezes a apunhalou, talvez seis, ou oito vezes. O FBI examinou a transcrição das conversas da família Isa depois do assassinato. O promotor Craddick imagina um cenário cinematográfico: um detetive abre o jornal e vê que ocorreu um crime numa casa “grampeada”. Vai pesquisar, e encontra tudo gravado. “Esse foi um caso excepcional”, ele acrescenta. “Uma escuta sempre é dirigida. A polícia só pode ouvir o que um juiz autorizou. Se está a procura de drogas e surpreende uma trama para um assalto, não pode intervir”.
Quem ouvisse as conversas telefônicas entre Zein, Maria e as filhas casadas não teria dúvidas de que Tina estava condenada à morte. Uma frase do pai, por exemplo: “Ela se tornou uma mulher queimada, uma p… negra, e a única forma de limpá-la será através de seu sangue”. Outra: “Se Tina morrer, vou alegar legítima defesa. Colocarei uma faca em sua mão depois que ela cair”. Um comentário de Fátima, uma irmã: “Se Deus me der um desejo, vou enterrá-la num caixão”. Outra irmã, Soraia Salem, sugeriu que Tina fosse acorrentada no porão, e seu passaporte enviado para a Palestina. O pai completou: “Vou é mandá-la dentro de um caixote”. Toda a família sentiu-se desonrada com o namoro e o trabalho de Tina. “Foi um sacrifício”, concluiu a promotora Dee Joyce-Hayes. Mas ela pediu que os jurados não justificassem o crime com a religião. “Muitas coisas ruins já foram feitas em nome do cristianismo ou do islamismo”.
Maria saiu da solitária em que permaneceu durante o julgamento para um salão onde dorme com outras 50 mulheres. Sua pena seria comutada por prisão perpétua. “Só tenho aqui dentro uma inimiga, uma policial que me xinga o tempo todo. Os outros me tratam muito bem”. Quando for sentenciada, dentro de um mês, ela poderá ser removida para o corredor da morte do sistema penitenciário do Missouri. Mas ela diz que não está “sofrendo” com a antecipação: “Sou a única a fazer o rosário aqui”, ela conta, orgulhosa. Em sua cela, no centro da cidade, Zein também reza as cinco orações do dia voltado para Meca, na Arábia Saudita. A família espera a sentença pronta para se mudar para a Palestina assim que ela for criada. “A Palestina é a coisa mais importante em nosso coração”, diz Fátima.
Por trás de cinco grades de uma superprotegida cadeia está o homem que espera a morte por ter matado a filha. E o palestino-brasileiro-americano Zein Isa diz que só quer mais um favor da vida: “Não executem minha mulher, Maria”.
Ele repete várias vezes, com o sotaque que troca “p” por “b”: “Boubem Maria, boubem Maria. Ela deve ser debortada bara o Brasil. Eu só matei Balestina, porque ela me atacou com uma faca”. Palestina, 16 anos, nascida em Cáceres, no Mato Grosso, foi enterrada aqui, em St. Louis, no Missouri, há dois anos, mas num cemitério católico, porque uma muçulmana não pode “levantar a mão contra o pai sem desonrá-lo”, e vestida toda de branco, com um véu de noiva.
A metade do rosto de Zein Isa, 61 anos, é visível pela janelinha da última e pesada porta de ferro da Cadeia Municipal do centro de St. Louis, uma cidade embranquecida pela neve que caiu durante toda a noite. Está num cubículo, e mal pode dar um passo atrás para ficar com o corpo inteiro à mostra. Ele diz que sofre com quatro úlceras numa perna. Manca, e pede o fim da visita mesmo de filhas porque “dói muito manter-se em pé”.
Até chegar aqui, um visitante passa por um exame de documentos, revista pessoal que extrai da roupa até a carteira, um vistoria no sapato, e uma, duas, três e quatro portas gradeadas pesadas que vão se abrindo por controle remoto ou manualmente. Um policial está sempre por perto. Os jornalistas não podem entrar.
Zein Isa repete o que Maria contou numa entrevista em seu presídio fora de St. Louis. Palestina era “a filha mais querida” entre os seis filhos de suas duas esposas. A outra mulher, Foizia, está em Betiim, na Cisjordânia, onde a família viveu por algum tempo, mas infeliz com a ocupação israelense. A nova geração vai carregando nos nomes o protesto contra Israel. A filha morta era Palestina. Um sobrinho de Isa foi batizado de Hitler. Um neto, de Saddam, “o único que acertou os judeus”, com os misseis Scud durante a guerra no Golfo. Outro primo que vive em Ohio, filho da brasileira Iracema, é Arafat, em homenagem ao líder da OLP. E ainda há mais um prêmio á Saddam, um outro sobrinho de Ohio chamado Hussein. Dentro das casas o que enfeita as paredes são bandeiras vermelhas, verdes, brancas e negras da OLP, fotos das mesquitas de Jerusalém e mapas árabes de Israel.
Zein Isa, porém, nega qualquer ligação com algum grupo terrorista palestino. “Basta ser palestino para se tornar um suspeito nos Estados Unidos”, ele diz pelas três pequenas aberturas abaixo da janelinha na porta de ferro. A família Isa demonstra uma desconfiança recíproca com os judeus. “Você chama Mussa (Moisés, em árabe)? Ainda bem que você é brasileiro, porque não confiamos nos judeus…” E judeu, para as filhas de Isa, fervorosas islamitas, pode ser até mesmo o governo americano, quando ele se inclina a favor de Israel. O FBI manteve a família sob vigilância durante dois anos, com microfones em suas casas.
A morte de Palestina, com seis facadas, há dois anos, foi uma tragédia cultural. Zein Isa não concordava com que a filha trabalhasse, namorasse e fosse independente, ao contrário das irmãs que se casaram com palestinos. “O namorado era negro, mas podia ser branco, marrom, amarelo. Foi um caso de honra”, diz a família. Fátima, ali na cadeia com o pai, ainda acrescenta: “Mas como o juiz foi negro, aqui nos Estados Unidos logo se atribuiu o assassinato a um preconceito racial”.
Zein Isa concorda fazendo sim com a cabeça. Palestina estava comprometendo “a honra dela própria, da mãe, do irmão, de todo o mundo, até dos netos”. Fátima não tem dúvidas de que a única vítima do assassinato da irmã foram os pais. “Fazia anos que o FBI nos escutava. Desde 1987 vigiavam. Por que não foram sacudir essa guria que queria acabar com papai? Não, não. Deixaram meu pai matar a filha apenas para pegá-lo, apenas porque achavam que ele tinha conexão com a OLP”.
A família Isa, em Betiim, é conhecida. Quando o pai de Zein morreu, “toda a cidade chorou”. Um homem assim tão respeitado não pode ser desonrado. “Na Arábia não é feio um pai matar a filha”, diz outra irmã de Palestina, Aziza. “Aqui nos Estados Unidos as moças podem andar na rua, bebem droga, bebem bebida alcoólica, fumam, fumam marijuana e dormem com outros rapazes antes de casar. Ficam grávidas. Vendem filhos para comprar drogas. Nos somos gente árabe, que tem cultura e que tem honra…”
Fátima interrompe a irmã Aziza para perguntar: “Você sabe o que é honra para o americano? Vou lhe dizer: honra é não mentir para o Imposto de Renda”. E ela acrescenta: “Se meu pai tivesse matado Tina no Oriente Médio o máximo de cadeia que pegaria, se pegasse, seria uns cinco anos. Muita gente pediria a Deus para lhes dar um pai como o meu pai. Tina tinha o melhor dos pais. Ele a encheu de roupas caras. Uns sete mil dólares só de roupa. E para o enterro ainda lhe compramos um vestido de noiva de 750 dólares”.
Zein Isa diz pela janelinha: “Não me breocupo em morrer”. Está magro, foi operado da perna uma vez no ano passado, mas as úlceras o atacaram de novo. Passa o tempo solitário, lendo o Corão e fazendo cinco orações diárias curvado para Meca. Depois do julgamento, com a condenação a morte que deve ser confirmada dia 13 de dezembro, ele passou a ter pressão alta. Em sua casa de Betiim, na Cisjordânia, que “vale 77 mil dólares”, ainda vive um filho pediatra e a outra esposa. Se pudesse voltaria agora para a Palestina, de onde saiu porque não encontrava trabalho e se indignava em viver sob ocupação israelense.
Aziza e o pai aproveitam o final dos 20 minutos da visita para falar em árabe. O assunto é o destino de Maria. A família está em campanha para transformar em prisão perpétua a recomendação dos jurados para que seja também executada. Outra possibilidade que vem sendo explorada é a de uma eventual deportação para o Brasil. Ela optou por se manter brasileira, ao contrário do marido, naturalizado americano, e só tem como documento um passaporte brasileiro. “Ajudem Maria”, apela Zein Isa. “Ela não me ajudou a matar Tina. Eu sozinho a matei. Ela apareceu com uma faca na minha frente…Foi legítima defesa”. Na gravação do FBI, porém, a voz de Maria é audível entre os gritos da filha. Num momento ela até diz: “…vai tarde”. Na transcrição oficial não consta esta frase, considerada “inaudível” pela tradutora do português.
Os 7,5 minutos de gravação foram a principal prova contra Zein e Maria, no julgamento. Cada um foi defendido por um diferente advogado, com a esperança de que fossem julgados separadamente. Mas houve um só júri, e uma recomendação única: pena de morte. As crianças da família Isa aprendem que “os avós estão presos, e às vezes surgem na televisão, por causa de uma filha desobediente, Tina”. Fátima contou a seus filhos: “Tina levantou a mão contra o avô. E o avô bateu nela. E ela morreu”. É o que aprenderam também os filhos de Aziza: “A menina que mancha a honra da família deve ser punida”. A desonra de Palestina foi a de querer se tornar uma adolescente americana, e não muçulmana. A de namorar um rapaz que não a queria em casamento, mas só para um namoro de adolescência. A de querer trabalhar e ser independente numa família em que as meninas são criadas para se devotar aos maridos e filhos.
“A menina muçulmana é como uma flor”, explica Aziza. “Se as pétalas caem, ela não vale o vaso de cristal”. Tina se tornou o exemplo da desobediência na família Isa. No segundo aniversário do assassinato, ninguém foi visitar o seu túmulo. Na véspera, as filhas visitaram a mãe, Maria. E depois Zein, o pai. Choraram muito ao sair, porque o superintendente do presídio comunicou o corte das visitas aos domingos, e manteve apenas duas por semana, na terça e sexta-feira. Amparada pelos filhos, o rosto contorcido de dor, Fátima explicou: “Acharam que três visitas são um privilégio para quem logo será transferido para o corredor da morte”.
O namorado esperava
Palestina na rua.
Mas ela não voltou.
O rapaz acusado de “virar a cabeça” da adolescente brasileira Palestina Isa, pivô da “desonra” lavada com um brutal assassinato, contou que os dois “nunca tiveram uma relação íntima”, nem estavam pensando em se casar. “Ela tinha 16 anos…Só queria um amigo para ir ao cinema, dançar”, disse Cliff Walker, o namorado negro de Tina, através do promotor Robert J. Craddick.
As irmãs de Palestina continuam acusando Cliff Walker: “Tina era uma menina muito boa até que conheceu esse rapaz preto. A Tina bonita que amávamos morreu um ano antes da morte, um ano antes de ser enterrada” – disseram Fátima e Aziza, que defendem os pais, Zein e Maria, pelo assassinato. E Fátima ainda repetiu ontem: “Se meu pai vai morrer porque defendeu a honra de Tina e da família, terá um grande prazer. Se vão executá-lo porque ele é palestino, terá muito orgulho. Para meu pai será um prazer morrer como um homem honrado”.
Cliff Walker, hoje com 20 anos, não quis aparecer pessoalmente para uma entrevista. O promotor Craddick explicou que ele “está procurando superar o doloroso passado, recomeçar a vida”. Saiu da escola Roosevelt, trabalha meio período e procura um emprego de tempo integral. “Mas aqui, em St Louis, um adolescente negro tem 50 por cento de chances de conseguir uma boa colocação”.
Fátima o chama de “vagabundo”. Diz que ele agora está namorando Mariane, a melhor amiga de Tina. E que os dois sumiram sob proteção policial, “porque pensam que estejam ameaçados de morte”. E acusa: “Esse rapaz não é nenhum homem. Se fosse, teria ido salvar aquela menina”, ou “aquela guria”, como tem chamado a irmã, evitando um nome sagrado como Palestina. Tina entrou em casa em 6 de novembro de 1989, após a primeira noite de trabalho num restaurante, esperando uma recepção tão ruim dos pais que pediu ao namorado, Cliff: “Espere um pouco. Se ouvir gritos, voltarei”.
Tina não voltou. Foi esfaqueada seis vezes pelo pai, Zein, enquanto a mãe, Maria, a mandava “calar a boca”, segundo a transcrição da escuta feita pelo FBI no apartamento da família Isa, sob suspeita de ligações com grupos terroristas palestinos. O trabalho fora, o namoro e a americanização de Tina entre fervorosos muçulmanos somaram-se para a decisão anunciada por Zein: “Ouça, minha querida filha, você sabe que este é o seu último dia? Esta noite você vai morrer…” Maria já tinha ido á escola Roosevelt avisar que Tina não mais a frequentaria como “um castigo pelo namoro”. E para o pai “a honra da família só poderia ser lavada com sangue”, com um sacrifício.
O promotor Craddick falou com Cliff Walker: “O que nos parece é que a família Isa continua tentando desculpar o que fez. Acusaram primeiro Tina, porque ela agiu sozinha. Agora acusam Cliff. Ele é que teria virado a cabeça de Tina. Isso é tendencioso. Estão sempre alegando que o assassinato ocorreu porque foram provocados. Cliff não fez nada com Tina. Ele nunca a influenciou a desrespeitar a família. Os dois sempre entenderam muito bem a diferença de culturas que os separavam. Tina só queria fazer o que as outras garotas faziam. Ter controle do próprio dinheiro, e foi por isso que começou a trabalhar. E namorar”.
A família Isa desmente que os problemas com Cliff surgiram porque ele é negro. “Podia ser marrom, branco, amarelo”, explicou Fátima. “Uma muçulmana não tem namorado”. Mas o promotor Craddick constrói uma frase curiosa para discordar: “Não aceitavam que Tina namorasse ninguém, e muito menos um negro”. Ele também desmente que Cliff tenha recebido uma oferta de um dote de US$ 5 mil para casar com Tina. “Isso simplesmente não aconteceu porque os dois não contemplavam um casamento. Nem eram íntimos…”
Tina não era “sexualmente ativa”, acrescenta Craddick, baseado em Cliff e no depoimento feito por amigas durante o julgamento. “Temos razões para acreditar que Tina era virgem”. O namoro nunca evoluiu para uma relação mais profunda. A família a enterrou como uma noiva, toda vestida de branco, e não voltou mais ao túmulo, nem nos dois primeiros aniversários da morte. Convidada a ir ao cemitério, Fátima respondeu: “Eu, não. Pra que? Mas se você for, ore por ela, que tanto faz sofrer nossos pais”.
Cliff não namora Mariane Paladino, a melhor amiga de Tina, como denunciou Fátima. Ela também não quis aparecer pessoalmente para uma entrevista. O promotor Craddick, que a conhece “muito bem”, explicou: “Você pode imaginar que as duas pessoas mais próximas de Tina tiveram que testemunhar no tribunal. E ficaram muito próximos. Foram vistos muitas vezes na sala da promotoria. Mas não são namorados. Mariane não se recuperou psicologicamente a ponto de namorar ninguém. Ela está passando, realmente, por um tempo muito difícil”. Os dois também não estão sob proteção policial, “embora tenham medo da vingança de uma família que foi capaz de matar a própria filha”, desde que a desmentiram no julgamento.
Fátima foi avisada de que o Ministério da Justiça no Brasil se proclamou impotente para tomar qualquer iniciativa pela brasileira Maria. Mas insistiu que vai ainda escrever uma carta ao consulado brasileiro em New Orleans. Ela quer uma opinião oficial contra o julgamento único para os pais numa tentativa de levar a mãe, sozinha, diante de outro júri. Zein confessou o assassinato, alegando legítima defesa. Pela sua versão, ele é que foi atacado por Tina com uma faca. Maria diz que desmaiou, e não viu nada. A gravação com a voz dela pedindo á filha para se calar “foi fabricada pelo FBI”. Os jurados recomendaram a pena de morte para os dois. E um juiz deve confirmá-la no dia 13 de dezembro.
“Aqui, geralmente, o juiz aceita a sentença pedida pelos jurados” – prevê Craddick. E ele só terá duas opções: a pena de morte ou a prisão perpétua. Só depois do veredicto é que os advogados de defesa terão 25 dias para apelar.
A gravação do assassinato da adolescente Palestina Isa pelos pais pode ser parte de uma investigação do FBI sobre lavagem de dinheiro, e não somente uma precaução contra a eventual militância da família em grupos palestinos terroristas.
O FBI não dá nenhuma pista dos objetivos que o levaram a instalar sofisticados instrumentos de escuta na casa de Zein Isa, em 1987. Mas uma fonte ligada ao processo do assassinato de Palestina, na Corte Municipal de St. Louis, disse ontem que “a família trabalha em armazéns que podem servir para lavar pequenas quantias de dinheiro”.
Aziza, uma das filhas de Zein e Maria, explica que o seu marido é empregado num armazém, e que os maridos das irmãs Fátima e Soraia trabalham em armazéns próprios, em St Louis e Kansas City. O armazém do pai foi vendido para pagar as despesas dos advogados de defesa, US$ 30 mil até agora, mas a comunidade palestina local e os amigos da aldeia Betiim, na Cisjordânia, doaram outros US$ 15 mil. O que sobrar vai ser usado para as despesas com o apelo previsto logo depois que sair o veredicto, no dia 13 de dezembro.
A suspeita de atividade terrorista pode ser justificada pelo radicalismo dos Isa, mas um líder da grande comunidade judaica de St. Louis contou que não se lembra de nenhum problema com os imigrantes palestinos. O promotor Robert J. Craddick confirma: “Não estou sabendo de nenhuma ação da OLP por aqui, mas o FBI considerou os Isa muito importantes para os ouvir permanentemente”.
Aziza lembra como a família ficou sabendo que estava sendo espionada. “Em 1987, um rapaz que trabalhava no conjunto de apartamentos em que morávamos foi ao bar do meu cunhado, e revelou que alguns policiais entraram em nossa casa e puseram aparelhos de escuta dentro. Os agentes do FBI tinham alugado um apartamento em frente, de onde monitoravam a escuta. Minha irmã Soraia revirou sofás, móveis…todos os lugares em busca dos microfones, e nada encontrou. Papai brincou: querem escutar minhas filhas brigando umas com as outras? Tudo bem, fiquem à vontade”. Para ela, a única explicação possível é a de que são palestinos. “E palestinos, para o FBI, são todos terroristas”.
Fátima interrompeu várias vezes uma conversa telefônica para perguntar: “Está ouvindo? Eles estão na linha…” Ela ainda denunciou que sua correspondência é aberta. E lembrou-se de algo ocorrido há cinco anos, sem estabelecer nenhuma ligação com a vigilância do FBI. “O irmão da caixa que trabalhava no armazém de meu cunhado matou outro homem por causa de droga. E a casa dele, da mãe e dos irmãos passaram a ser também escutadas”. Mas o pai nunca se envolveu com drogas, ela acrescentou. “Acontece que todos os árabes são vigiados. Podem vigiar o quanto quiserem…Não estamos fazendo nada contra a lei, nem contrabando”.
Quem administra o dinheiro que sobrou da venda do armazém de Isa é um cunhado, que vive em Chicago. “O pai confia muito nele”, diz Aziza. “É o genro mais velho”. A família tem uma trajetória considerada também interessante pela mesma fonte que levantou a suspeita de que a escuta do FBI pode ser parte de uma investigação sobre lavagem de dinheiro. Zein e Maria se casaram em 1962, no Brasil, e desde então vivem viajando. Já estiveram em New Jersey, depois na Carolina do Norte, e então se mudaram para Porto Rico, para a Cisjordânia, voltaram ao Brasil, de novo a Porto Rico, até que se instalaram em St. Louis. Só depois se descobriram as ligações de Zein com o grupo terrorista de Abu Nidal, responsável por ações espetaculares dentr e fora do Oriente Médio.
“Deve ser lavagem de dinheiro, mas coisa pequena”, acrescentou a fonte. Ela teve acesso a várias transcrições das gravações do FBI, mas “só quis saber o que se relacionava com o assassinato de Tina”. Os gritos que Tina deu enquanto morria foram fulminantes para a decisão unânime dos 12 jurados. E um reexame cuidadoso da gravação demonstrou que a brasileira Maria não pode ter desmaiado enquanto a filha era esfaqueada, porque ela comenta bem claramente: “…já vai tarde”.
Veja também: a brasileira que ajudou matar um soldado israelense.
quantos excessos cometidos em nome da religião!
achei essa história por um acaso garimpando na internet.
pobre Tina!
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só uma observação: essa senhora podia ser tudo, menos católica.
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Mas era católica. Eu a vi numa audiência do tribunal de St Louis.
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história trágica. essa história nos ensina o quão perigoso é o fanatismo/fundamentalismo.
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