A carta do chefe Seattle

Eram verdes

os peles-vermelhas?

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Washington, 1/11/1991 — Num famoso manifesto em defesa da terra que o transformou no “profeta da ecologia”, diz o Chefe Seattle: “Avistei um milhar de búfalos apodrecendo na campina, abandonados pelo homem branco que lhes atirou de um trem ao passar”. Mas os trens ainda não corriam pelos campos americanos na época do manifesto, em 1854. E o massacre dos búfalos só começou entre 1860 e 1890.

“É como descobrir que não existe Papai Noel” – comentou, decepcionado, um ecologista do grupo Sierra Club à repórter Paula Wissel, da National Public Radio dos Estados Unidos, diante das provas de que a versão mais popular do manifesto do Chefe Seattle, publicada em livros no Brasil e por todo o mundo, e filmada, e musicada, gravada em disco, teatralizada e até evangelizada, foi escrita, na verdade, por um roteirista de cinema, Ted Perry, entre 1971 e 72, sob encomenda da Comissão de Rádio e Televisão dos Batistas Sulistas.

“Que importância tem o autor do texto?” – perguntou Perry. “Fico feliz ao saber que a mensagem está sendo transmitida. Não acho que ela fica mais importante se atribuída ao Chefe Seattle”.

O pele-vermelha Seeathl, chefe das tribos Suquamish e Duwamish da costa Noroeste do Pacífico, viveu entre 1786 e 1866. Foi ele quem concluiu o Tratado de Port Elliott com os colonizadores brancos, em dezembro de 1855. Trocou seu território por uma pequena reserva e a promessa de ajuda do governador Isaac Stevens. “Cada pedaço desta terra é sagrado para o meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada areia da praia, cada bruma nas densas florestas, cada clareira e cada inseto a zumbir são sagrados na memória do meu povo” – é uma das frases do discurso atribuída a ele e traduzida por Magda Guimarães Khouri Costa para uma edição em português, Preservação do Meio Ambiente, publicada em 1987 pela Editora Babel Cultural a partir de um texto fornecido pela Seattle Historical Society.

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No rastro do

Chefe Pele-Verde

Seeathl, rebatizado Seattle pelos brancos, falava um mínimo de inglês. Mas o médico e poeta Dr. Henry Smith, que entendia o Lushotseed, a língua dos Duwamish, anotou alguns “fragmentos” do discurso, embora “sem capturar o seu charme”, e só os publicou 33 anos depois, em 1887, no jornal Seattle Sunday Star. Esta é também a versão que aparece na História de Seattle, escrita em 1891 por Frederic James Grant. As primeiras variações começaram a surgir na década de 30. O discurso “original” era encerrado com a advertência de que o homem branco deveria tratar bem e com justiça os últimos peles-vermelhas, porque “os mortos não são impotentes”, e estarão sempre por perto. Aí ganhou um acréscimo por conta de Clarence B. Bagley, na revista Washington Historical Quaterly: “Mortos – disse eu? A morte não existe. Há somente uma mudança de mundos”.

O escritor Rudolf Kaiser pesquisou a metamorfose do texto inicial do Dr. Smith como se fosse um detetive. Seguiu o rastro de versões do manifesto do Chefe Seattle que apareceram na Europa e nos Estados Unidos. Suas conclusões estão num livro de ensaios, Recuperando a Palavra, editado pela Universidade da Califórnia. Ele chegou, por exemplo, a um membro do grupo Amigos da Terra que recortou o manifesto de um jornal indígena americano que deixou de circular, e o enviou para amigos que o enviaram a outros amigos. A multiplicação foi inevitável entre os ambientalistas. Uma companhia aérea o imprimiu na revista de bordo de linhas do Oriente, Passages, que então se tornou a base para outras publicações. Mas numa reserva de índios Pueblo, nos Estados Unidos, Kaiser constatou que Seattle não passava do nome de uma cidade, e não do Grande Velho Chefe que se tornou um famoso pai da ecologia, entre ecologistas.

A Historical Society of Seattle adverte, desde junho de 1990, que “o magnífico apelo à responsabilidade ecológica tem sido erroneamente atribuído ao Chefe Seattle”. O ensaio do escritor-detetive Kaiser separa três principais versões, a partir do texto básico do Dr. Smith, construído com palavras arcaicas e floreados inacreditáveis na boca de um índio. A segunda versão foi escrita por William Arrowsmith,  mais simples, com uma linguagem “mais assentada na terra”, mas ainda assim com o mesmo conteúdo. A terceira já toma distância das duas primeiras em várias direções. E se torna ecológica. É como se Chefe Seattle passasse a ser um Cacique Pele-Verde, e não vermelha.

“É possível comprar ou vender o céu e o calor da terra?” – ele pergunta. “Tal ideia é estranha para nós…Os rios são nossos irmãos, eles saciam nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e alimentam nossas crianças… O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo sopro – o animal, a árvore, o homem, todos compartilham o mesmo sopro…Isto sabemos. A terra não pertence ao homem; é o homem que pertence a terra. Isso sabemos. Todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma família. Há uma ligação em tudo”.

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Chefe Perry

na Eco-92?

A terceira versão correu o mundo. Virou até um oratório. Ela foi escrita pelo professor de cinema Ted Perry, da Faculdade Middlebury, em Vermont, como roteiro do filme Home, encomendado pela igreja Batista Sulista, que ainda acrescentou, por conta própria, uma certa religiosidade ao texto. “Escrevi o discurso como ficção”, contou numa carta a Kaiser. “Acho que parafraseei algumas sentenças da tradução do professor Arrowsmith, mas o resto é meu. Ao passar o script para os Batistas deixei claro que o trabalho era meu. Tanto eles o sabiam que me pagaram não como um datilógrafo que apenas copiou um texto”.

Perry diz ainda na carta que Kaiser cometeu “o erro de usar o nome do Chefe Seattle no corpo do texto. Não me lembro porque o fiz… Ao escrever um discurso de ficção deveria ter usado um nome fictício”. Quando ele viu o filme pela televisão, em 1972, ficou surpreso por não encontrar, no final, o rotineiro crédito: escrito por…” Fiquei mais do que surpreso; revoltado. Chamei o produtor, e ele me disse que pensou que o texto pareceria mais autêntico se não tivesse nenhum crédito. Surpresa! Cancelei meu contrato com os Batistas para um outro roteiro”.

Aos 54 anos, sem nenhum outro texto ambientalista publicado, nem filiado à qualquer organização ecológica, o professor Perry está ainda inconformado com a confusão criada pela produção do filme Home. Não que lamente a glória de um texto adotado mundialmente, mas porque acredita que os próprios índios do Noroeste dos Estados Unidos não gostariam que o Chefe Seattle ficasse conhecido como o verdadeiro autor de um discurso que não fez. “Afinal, ele não disse o que escrevi” – contou. Perry visitou o Brasil na década de 60 e o acha “maravilhoso”, com vontade de voltar. Se receber um convite, “aceitará com prazer”.

A quarta versão do manifesto do Chefe Seattle catalogada por Kaiser apareceu no pavilhão americano da Feira Mundial de 1974 em Spokane, em Washington. E ela traz outras diferenças de linguagem e estilo. A Federação dos Jornalistas do Brasil começou a preparar uma história em quadrinhos baseada no texto de Perry atribuído ao Chefe Seattle. Outras edições devem coincidir com a Eco-92, no Rio. O escritor Kaiser cita em seu ensaio uma conclusão que ouviu enquanto fazia a investigação:

“Se o manifesto não tivesse sido escrito, deveria sê-lo”.

imagesUma versão em português da carta do cacique Seattle

O grande chefe de Washington mandou dizer que desejava comprar a nossa terra, o grande chefe assegurou-nos também de sua amizade e benevolência. Isto é gentil de sua parte, pois sabemos que ele não precisa de nossa amizade.

Vamos, porém, pensar em sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará nossa terra. O grande chefe de Washington pode confiar no que o Chefe Seattle diz com a mesma certeza com que nossos irmãos brancos podem confiar na alteração das estações do ano.

Minhas palavras são como as estrelas que nunca empalidecem.

Como podes comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia nos é estranha. Se não somos donos da pureza do ar ou do resplendor da água, como então podes comprá-los? Cada torrão desta terra é sagrado para meu povo, cada folha reluzente de pinheiro, cada praia arenosa, cada véu de neblina na floresta escura, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados nas tradições e na consciência do meu povo. A seiva que circula nas árvores carrega consigo as recordações do homem vermelho.

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O homem branco esquece a sua terra natal, quando – depois de morto – vai vagar por entre as estrelas. Os nossos mortos nunca esquecem esta formosa terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia – são nossos irmãos. As cristas rochosas, os sumos da campina, o calor que emana do corpo de um mustang, e o homem – todos pertencem à mesma família.

Portanto, quando o grande chefe de Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra, ele exige muito de nós. O grande chefe manda dizer que irá reservar para nós um lugar em que possamos viver confortavelmente. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto, vamos considerar a tua oferta de comprar nossa terra. Mas não vai ser fácil, porque esta terra é para nós sagrada.

Esta água brilhante que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas sim o sangue de nossos ancestrais. Se te vendermos a terra, terás de te lembrar que ela é sagrada e terás de ensinar a teus filhos que é sagrada e que cada reflexo espectral na água límpida dos lagos conta os eventos e as recordações da vida de meu povo. O rumorejar d’água é a voz do pai de meu pai. Os rios são nossos irmãos, eles apagam nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e alimentam nossos filhos. Se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar e ensinar a teus filhos que os rios são irmãos nossos e teus, e terás de dispensar aos rios a afabilidade que darias a um irmão.

Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um lote de terra é igual a outro, porque ele é um forasteiro que chega na calada da noite e tira da terra tudo o que necessita. A terra não é sua irmã, mas sim sua inimiga, e depois de a conquistar, ele vai embora, deixa para trás os túmulos de seus antepassados, e nem se importa. Arrebata a terra das mãos de seus filhos e não se importa. Ficam esquecidos a sepultura de seu pai e o direito de seus filhos à herança. Ele trata sua mãe – a terra – e seu irmão – o céu – como coisas que podem ser compradas, saqueadas, vendidas como ovelha ou miçanga cintilante. Sua voracidade arruinará a terra, deixando para trás apenas um deserto.

Não sei. Nossos modos diferem dos teus. A vista de tuas cidades causa tormento aos olhos do homem vermelho. Mas talvez isto seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que de nada entende.

Não há sequer um lugar calmo nas cidades do homem branco. Não há lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem na primavera ou o tinir das assa de um inseto. Mas talvez assim seja por ser eu um selvagem que nada compreende; o barulho parece apenas insultar os ouvidos. E que vida é aquela se um homem não pode ouvir a voz solitária do curiango ou, de noite, a conversa dos sapos em volta de um brejo? Sou um homem vermelho e nada compreendo. O índio prefere o suave sussurro do vento a sobrevoar a superfície de uma lagoa e o cheiro do próprio vento, purificado por uma chuva do meio-dia, ou recendendo a pinheiro.

images (1)O ar é precioso para o homem vermelho, porque todas as criaturas respiram em comum – os animais, as árvores, o homem.

O homem branco parece não perceber o ar que respira. Como um moribundo em prolongada agonia, ele é insensível ao ar fétido. Mas se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar que o ar é precioso para nós, que o ar reparte seu espírito com toda a vida que ele sustenta. O vento que deu ao nosso bisavô o seu primeiro sopro de vida, também recebe o seu último suspiro. E se te vendermos nossa terra, deverás mantê-la reservada, feita santuário, como um lugar em que o próprio homem branco possa ir saborear o vento, adoçado com a fragrância das flores campestres.

Assim pois, vamos considerar tua oferta para comprar nossa terra. Se decidirmos aceitar, farei uma condição: o homem branco deve tratar os animais desta terra como se fossem seus irmãos.

Sou um selvagem e desconheço que possa ser de outro jeito. Tenho visto milhares de bisões apodrecendo na pradaria, abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem em movimento. Sou um selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser mais importante do que o bisão que (nós – os índios) matamos apenas para o sustento de nossa vida.

O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Porque tudo quanto acontece aos animais, logo acontece ao homem. Tudo está relacionado entre si.

Deves ensinar a teus filhos que o chão debaixo de seus pés são as cinzas de nossos antepassados; para que tenham respeito ao país, conta a teus filhos que a riqueza da terra são as vidas da parentela nossa. Ensina a teus filhos o que temos ensinado aos nossos: que a terra é nossa mãe. Tudo quanto fere a terra – fere os filhos da terra. Se os homens cospem no chão, cospem sobre eles próprios.

De uma coisa sabemos. A terra não pertence ao homem: é o homem que pertence à terra, disso temos certeza. Todas as coisas estão interligadas, como o sangue que une uma família. Tudo está relacionado entre si. Tudo quanto agride a terra, agride os filhos da terra. Não foi o homem quem teceu a trama da vida: ele é meramente um fio da mesma. Tudo o que ele fizer à trama, a si próprio fará.

Os nossos filhos viram seus pais humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio, envenenando seu corpo com alimentos adocicados e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos últimos dias – eles não são muitos. Mais algumas horas, mesmos uns invernos, e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nesta terra ou que têm vagueado em pequenos bandos pelos bosques, sobrará, para chorar sobre os túmulos de um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso.

Nem o homem branco, cujo Deus com ele passeia e conversa como amigo para amigo, pode ser isento do destino comum. Poderíamos ser irmãos, apesar de tudo. Vamos ver, de uma coisa sabemos que o homem branco venha, talvez, um dia descobrir: nosso Deus é o mesmo Deus. Talvez julgues, agora, que o podes possuir do mesmo jeito como desejas possuir nossa terra; mas não podes. Ele é Deus da humanidade inteira e é igual sua piedade para com o homem vermelho e o homem branco. Esta terra é querida por ele, e causar dano à terra é cumular de desprezo o seu criador. Os brancos também vão acabar; talvez mais cedo do que todas as outras raças. Continuas poluindo a tua cama e hás de morrer uma noite, sufocado em teus próprios desejos.

Porém, ao perecerem, vocês brilharão com fulgor, abrasados, pela força de Deus que os trouxe a este país e, por algum desígnio especial, lhes deu o domínio sobre esta terra e sobre o homem vermelho. Esse destino é para nós um mistério, pois não podemos imaginar como será, quando todos os bisões forem massacrados, os cavalos bravios domados, as brenhas das florestas carregadas de odor de muita gente e a vista das velhas colinas empanada por fios que falam. Onde ficará o emaranhado da mata? Terá acabado. Onde estará a águia? Irá acabar. Restará dar adeus à andorinha e à caça; será o fim da vida e o começo da luta para sobreviver.

Compreenderíamos, talvez, se conhecêssemos com que sonha o homem branco, se soubéssemos quais as esperanças que transmite a seus filhos nas longas noites de inverno, quais as visões do futuro que oferece às suas mentes para que possam formar desejos para o dia de amanhã. Somos, porém, selvagens. Os sonhos do homem branco são para nós ocultos, e por serem ocultos, temos de escolher nosso próprio caminho. Se consentirmos, será para garantir as reservas que nos prometestes. Lá, talvez, possamos viver o nossos últimos dias conforme desejamos. Depois que o último homem vermelho tiver partido e a sua lembrança não passar da sombra de uma nuvem a pairar acima das pradarias, a alma do meu povo continuará vivendo nestas floresta e praias, porque nós a amamos como ama um recém-nascido o bater do coração de sua mãe.

Se te vendermos a nossa terra, ama-a como nós a amávamos. Preteje-a como nós a protegíamos. Nunca esqueças de como era esta terra quando dela tomaste posse: E com toda a tua força o teu poder e todo o teu coração – conserva-a para teus filhos e ama-a como Deus nos ama a todos. De uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus, esta terra é por ele amada. Nem mesmo o homem branco pode evitar o nosso destino comum.

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2 comentários sobre “A carta do chefe Seattle

    1. Prezado José Caroça: o nome da tradutora está no texto, Magda Guimarães Khouri. Não foi a única. São inúmeras versões, em vários idiomas. Eu a escolhi porque ela se baseou na carta arquivada pela Seattle Historical Society.

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